Uma viagem pelo “Sintoma” a partir de Jacques Lacan em seu primeiro ensino. 28/10/2021

Trabalho do 3º bimestre 2021 do Curso Intermediário de Freud a Lacan

Marianne Meni

[…]
Uma parte de mim
é só vertigem;
outra parte,
linguagem.
Traduzir-se uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?”
– Ferreira Gullar

Nesse bimestre, continuamos nossa jornada de onde havíamos parado, partimos então em direção a mais uma etapa e já não somos mais os mesmos (será que um dia já fomos?). Assim como os conceitos psicanalíticos, que não são lineares e estão em constante transformação ao longo dos ensinos de Freud e Lacan. Pudemos acompanhar de perto seu desenvolvimento e nesse momento em que nos encontramos, Jacques Lacan lapida um pouco mais a “pedra” que Freud descobriu. A psicanálise, assim como o homem, é fruto do seu tempo. Sendo assim, Lacan procura fazer um retorno ao que ele entende que existe de mais interessante na invenção de Sigmund Freud.

Seguimos muito bem orientados pelo corpo de formação do IPLA, que estruturou o curso de maneira primorosa, nos levando pela mão a passear por conceitos complexos aprofundando a cada aula e nos auxiliando no entendimento de forma leve e bela. A começar pela aula inicial, brilhantemente ministrada por Letícia Genesini, introduzindo-nos a Saussure e seu Curso de Linguística Geral que é também o ponto de partida de Lacan em seu desenvolvimento. Aqui pudemos apreender a arbitrariedade do signo linguístico e que o nosso mundo é em si um artifício de linguagem.

Logo na segunda parada, fomos direto para o texto que pode ser considerado um marco inicial do ensino Lacaniano; “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”, onde Lacan se apropria da noção de significante da linguística de maneira peculiar — introduzindo a ideia de que o significante tem primazia sobre o significado e conectando isso aos conceitos e textos de Sigmund Freud. Por esse motivo, o primeiro período de seu ensino é conhecido como um “retorno a Freud”.

Compreendendo o motivo pelo qual Lacan parte da linguística para formular que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, pois ela própria é uma experiência linguageira. Numa análise, tratam-se dos sintomas a partir da fala e, portanto faz-se necessário trabalhar com conceitos relativos ao campo geral da linguagem. Precisamos da palavra o tempo todo para estruturar nosso pensamento e de nossa fala para dizer o que desejamos e estamos sempre às voltas com isso, o que consequentemente traz uma angústia imensa.

A partir das leis de funcionamento do inconsciente formuladas por Freud, Lacan as transpõe considerando os eixos da linguística – metáfora e metonímia, logificando assim o inconsciente e se distanciando do ideal do ego, muito presente em outros pensamentos psicanalíticos da época, e incidindo na palavra a partir da lógica do desejo que está em Freud.

Trazendo as categorias de Simbólico, Real e Imaginário, nesse primeiro momento de seu ensino, pensando o inconsciente como uma função simbólica, Lacan afirma: “é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas”. Somos seres construídos e ordenados pela cultura e pela linguagem, que é sempre uma fonte de mal-entendido. Há sempre algo que nos escapa. E esse algo que escapa se transforma em sintoma – sintoma esse que é metáfora de um desejo. O sintoma é parte do jogo de significantes e, portanto, é ordenado por suas leis. Nesse sentido “todo fenômeno analítico, todo fenômeno que participa do campo analítico, daquilo com que lidamos no sintoma e na neurose, é estruturado como linguagem”.

A psicanálise dispõe de apenas um meio para se orientar: a fala do paciente. Essa fala, direcionada ao analista, é portadora de sua própria verdade, que só poderá surgir quando é escutada (e lida) de um modo específico. A esse respeito, Lacan afirma: “a arte do analista deve consistir em suspender as certezas do sujeito até que se consumam suas últimas miragens. E é no discurso que deve escandir-se a resolução delas”.

O que diferencia o sintoma das outras formações do inconsciente é que ele é permanente e nos acompanha ao longo de toda a nossa vida.  É através da fala direcionada ao analista que somos capazes de encontrar um novo modo de lidar com nosso sintoma. A verdade do sintoma é uma verdade construída, como Forbes comentou em sua conferência de abertura deste curso, “não existe uma verdade minha, existem várias verdades minhas.”

O analista deve, através do bisturi da palavra, operar sobre o sintoma singular de cada um de nós, pois a ética da psicanálise é a de escutar o sujeito em sua radical singularidade, abrindo assim para o analisando a possibilidade de criação de realidades outras, de invenções de si mesmo. É através da escuta da letra do analisando que o analista pode incidir, criando também palavras e consequentemente silêncios, que podem gerar outras palavras e coisas que tocam o Real, quebrando sentidos fechados e produzindo efeitos simbólicos outros, além somente da repetição do mesmo.

Busca-se, portanto, que a palavra “surja”, por meio da transferência, e é nesse momento que o sujeito pode se implicar com o motivo de seu sofrimento, se dando conta de sua responsabilidade em sua queixa, assumindo assim sua história e se (re)inventando. Pois é a invenção que faz com que a pessoa se liberte das expectativas do olhar do outro.

Como já dizia Freud: Qual a sua responsabilidade na desordem pela qual você se queixa? Hoje mudamos a posição de Freud explica, para Freud implica (Jorge Forbes). E é nesse ponto que está a instância da letra — nessa coisa tão material, que está lá inscrita no corpo, que não pede explicação, mas implicação, para que as coisas enfim se ressignifiquem.

De nossa parada no texto “Ler um sintoma” Jacques-Alain Miller nos conta do estatuto do inconsciente, que é ético e isso é, precisamente, dizer que é relativo ao desejo – mas em primeiro lugar, relativo ao desejo do analista que trata de inspirar o analisando a assumir também o seu desejo.

Fechamos essa etapa da jornada com chave de ouro na companhia de Teresa Genesini, que nos ilustra com um belíssimo caso clínico do Centro do Genoma Humano, e nos questiona sobre o desejo e a formação do analista. Por que fazer uma análise? Uma análise leva a algo diferente e é esperado que o sujeito marque essa sua diferença e singularidade. O analista não compreende o analisando, e justamente por isso, dá a ele a chance de se explicar e implicar no Real da própria vida. Essa aula trouxe lembranças do início dessa jornada, onde Jorge Forbes, em sua conferência nos conta sobre o poeta: o poeta diz “mais vasto é meu coração”, já o analista diz: mais vasto é meu desejo.

Finalizo mais uma fascinante etapa dessa viagem psicanalítica dando voz ao poeta Mário Quintana, que ilustra um pouco do meu sentimento em relação à psicanálise, Freud e Lacan:

No começo eu era só certezas.
No meio eu era só dúvidas.
Agora é o final
e eu só duvido.

Marianne Meni é designer e aluna do Corpo de Formação do IPLA.