Sexualidade: a infinitude significante no ser falante 03/03/2022

A. Oliveira
D.Oliveira
F. Bulle
G. Rivera
L. Queiroz
M. Boscolo
P. Vianna
P. Rolim
R. Baboni
R. Escobar
S. Ferreira
T. Cruz

1. A contemporaneidade

Ao refletir sobre questões existenciais complexas, Jorge Forbes (2020) diz: “sinto muito que […] [eu] não tenha uma resposta de bom senso para acalmar nossas aflições subjetivas” [1]. Partindo do mesmo princípio de Forbes, de que o bom senso – se equivalente ao senso comum – é apenas um tapa-buracos, nós também não apresentaremos uma resposta apaziguadora à pergunta que nos foi colocada.

“O que é um homem e o que é uma mulher?” não encontra resposta no mundo pós-moderno, onde fica “em evidência que, à diferença de todos os animais, não temos um determinismo biológico que nos oriente com segurança inquebrantável” [2]. Nesse mundo horizontal que Forbes chamou de TerraDois, não temos mais padrões ou moldes rígidos.

Isso também se aplica aos papéis de “homem” e “mulher”. Se o sexo biológico é relevante na primeira infância, determinando o nome do bebê e a experiência da castração, ao longo da vida, a associação entre biologia e funções sociais perde o sentido em TerraDois. Sobre isso, Henrique Lopes (2020) nos diz: “hoje nota-se que homem e mulher são significantes que não mais vestem alguns seres falantes. Na linha de fronteira cada vez mais borrada entre as meninas que usam rosa e os meninos que usam azul, temos os corpos que vestem ‘gravata e unha vermelha’” [3].

Por outro lado, os significantes “homem” e “mulher” parecem sobreviver como locais de referência, já que muitas estruturas sociais ainda partem dessa distinção básica como pressuposto. É o que nos diz François Leguil (2020) na entrevista que deu a Jorge Forbes: “Tudo na linguagem, nas imagens, na vida, na relação com a realidade coloca que há homens e mulheres, que os homens se definem como não sendo mulheres e que mulheres se definem como não sendo homens” [4].

Diante dessa complexidade, o laço social de TerraDois parece fugir das definições universalizantes. E assim, perante a falta de respostas, ele nos oferece a possibilidade de sermos responsáveis pela singularidade de nossas formas de viver. Tal singularidade pode ser observada nitidamente na maneira como hoje se vive a sexualidade, revelando que as relações sexuais também já não determinam “homem” e “mulher”.

2. Sexualidade

         Segundo o Dicionário amoroso da Psicanálise, a diferença entre sexo e gênero foi feita pela primeira vez, em 1964, pelo psiquiatra Robert Stoller, designando por gênero “o sentimento da identidade sexual, ao passo que o sexo define a organização anatômica da diferença entre macho e fêmea” [5]. Tal conceituação demarcou uma cisão radical entre a anatomia e a psique que persiste até hoje.

          Não que Freud, muito antes, não tivesse vislumbrado certo distanciamento entre instâncias biológicas e psíquicas. Referia-se raramente às categorias homem e mulher, preferindo falar em masculino e feminino. Essa abordagem de Freud é recordada por Lacan (1998) nos Escritos: “[…] talvez esta seja uma oportunidade […] de reconhecer, ao mesmo tempo, que o analista está tão exposto quanto qualquer outro a um preconceito relativo ao sexo, a despeito do que lhe revela o inconsciente. Estaremos nós lembrados da recomendação, que Freud repete com frequência, de não reduzirmos o suplemento do feminino para o masculino ao complemento do passivo para o ativo?” [6].

          Nessa perspectiva de que a realidade anatômica não dita as regras de como viver e gozar, a transexualidade – transição social (somática ou não) do masculino para o feminino e vice-versa – surge como uma evidência. Os avanços científicos, inclusive, têm permitido diversas adequações físicas nos indivíduos transexuais que optam pelas cirurgias e/ou tratamentos hormonais. A intersexualidade também escancara a insuficiência dos significantes. Sendo a condição de indivíduos que nascem com mais de um genital ou com genital indefinido, ela exemplifica como a própria biologia pode conter “furos” e deixar o destino “em aberto”.

Daí que Néstor Yellati (2018) fale que “a diferença entre os corpos excede as diferenças imaginárias e a determinação simbólica. Em última instância, é uma diferença entre os gozos” [7]. O simbólico não dá conta do nosso desejo e nem da nossa identidade sexual. Tratar das siglas, por exemplo, permite o reconhecimento dos direitos civis, indiscutivelmente necessários. No entanto, a nossa sexualidade vai além de siglas, ela é vivida em condição singular, de preferência, inventando respostas e responsabilizando-se por elas.

3. A Clínica hoje

As questões mencionadas até aqui resultam em angústia e “desbussolamento”, estando presentes em muitos dos que recorrem à psicanálise. Jorge Forbes, na referida entrevista com Leguil, cita o exemplo da homoparentalidade, sobre a qual diz ser constantemente questionado. Leguil, então, comenta o tema, recordando o papel político que o psicanalista deve cumprir nesse caso, abandonando os alertas de “cuidado” e informando sobre a ausência de evidências que justifiquem a deslegitimação da parentalidade de casais homossexuais.

Embora a pergunta aqui trabalhada não permita ainda um posicionamento de semelhante clareza, Eliane Costa Dias (2021) diz que a clínica deve “abrir-se às soluções sinthomáticas de cada sujeito”, ideia que reforça citando uma fala de François Ansermet, em 2018, no XI Congresso Mundial da AMP: “É preciso entrar na língua particular de cada um e seguir as vias singulares, de invenção, que não deixam de surpreender-nos, mas que protegem o sujeito de um real impossível de suportar” [8].

Chegando ao fim, evocamos como conclusão a palavra poética, que, em TerraDois, é a que mais obtém sucesso na tentativa de dizer algo:

Conversa entre dois amantes (e François Leguil)
Por Fernanda Bulle

Você tem o falo?
Não, só falo

Então você é uma mulher
Depende para quem eu falo
E se depende
Então posso ter o falo
E aí, sou homem?

Depende
Se eu for homem
Isso faz de você uma mulher

Por que não tenho pênis? 
Por que posso ser mãe?

Nem um nem outro
Muito mais porque eu existo

Mas assim fico muito insegura
E as funções?
Homens e mulheres têm funções distintas

Tinham
Hoje homens amamentam
Trocam fraldas e até usam saias
Mulheres são Chefes de Estado

E Deus? Ele criou a mulher e o homem
Homem mulher
Mulher homem
Diferentes
Mas iguais

Deus já se aposentou
E seu legado não está
Dando conta do recado
Homem e mulher iguais somente perante a lei
No “modo de viver” não
Ora um ora outro
Ora outro ora um
Ora homem ora mulher
Ora falo ora sem falo

Silêncio

Trabalho final do Curso Fundamental do IPLA 2021 apresentado por: Aline Carla de Oliveira, Denis A. De Oliveira, Fernanda C. Bulle, Gabriel Guerra Rivera, Ludmylla F S de Queiroz, Mariana Boscolo, Paula de Godoi Vianna, Pedro Paulo Rolim, Renata Baboni, Rogéria Escobar, Sheila Ferreira e Tassiane Cruz.

Tutoria: Elza Mendonça de Macedo e Teresa Genesini

Referências

[1] FORBES, J. O ser humano não é para principiantes. Jorge Forbes – Clínica e pesquisa em psicanálise, São Paulo, 12 nov. 2020. Disponível em: jorgeforbes.com.br/br/artigos/o-ser-humano-no-para-principiantes.html. Acesso em: 16 nov. 2021.

[2] FORBES, J. Estamos desbussolados. Jorge Forbes – Clínica e pesquisa em psicanálise, São Paulo, 8 mar. 2020. Disponível em: jorgeforbes.com.br/br/artigos/terradois-euforia-novas-possibilidades.html. Acesso em: 16 nov. 2021.

[3] LOPES, H. A. O queer e a crise das nominações na contemporaneidade. In: 1ª JORNADA DA SEÇÃO LESTE-OESTE (EM FORMAÇÃO), 9-10 out. 2020, Brasília. Como se forma um analista. Brasília: Escola Brasileira de Psicanálise, 2020, p. 46-48. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/1eNOHMmDTXkTQZDPc3_23fzipQ7sKFiXn/view?usp=sharing. Acesso em: 16 nov. 2021.

[4] LEGUIL, F. Entrevista concedida a Jorge Forbes, no Curso da TerraDois, do IPLA, São Paulo, 2020. 

[5] ROUDINESCO, E. Dicionário amoroso da psicanálise. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2019. p. 306. 

[6] LACAN, J. Diretrizes para um congresso sobre a sexualidade feminina, 1960. In: LACAN. J. Escritos. São Paulo: Zahar, 1998. p. 740.

[7] YELLATI, N. Intersexualidade, a anatomia é o destino? Tradução: Gustavo Ramos. Lacan XXI – Revista FAPOL Online, v. 2, out. 2018. Disponível em: lacan21.com/sitio/2018/10/22/intersexualidade-a-anatomia-e-o-destino/?lang=pt-br. Acesso em: 16 nov. 2021.

[8] DIAS, E. C. A diferença entre transexual e transgênero: de que se trata para a psicanálise? Correio Express – Revista Eletrônica da Escola Brasileira de Psicanálise, São Paulo, 29 jun. 2021. Disponível em: https://www.ebp.org.br/correio_express/2021/07/29/a-diferenca-entre-transexual-e-transgenero-de-que-se-trata-para-a-psicanalise/. Acesso em: 26 nov. 2021.