Psicanálise e Transmissão 22/09/2024

Jorge Forbes, 1982*

Era uma vez, há 100 anos, que se dava encerrado um tratamento de um caso de histeria, que ficaria na história; na nossa também.

Com 21 anos de idade, uma moça bonita e de inteligência notável, recebe a visita, em sua casa em Viena, de um médico, o Dr. Josef Breuer.

A moça sofria. Uma tosse nervosa lhe acompanhava, paralisia de três extremidades, conturbações na vista e na fala, incapacidade para alimentar-se, etc.

Por dois anos, tendo-a tomado como paciente, o Dr. Breuer iria acompanhá-la.

Marcou, esse caso, o que nele aconteceu e o que daí se passou, todo o desenvolvimento daquilo que anos mais tarde, viria a se chamar Psicanálise.

Não foi como uma simples história, ou como simples conversa, que o jovem neuro-anatomista de 26 anos, Sigmund Freud, o ouviu relatado por seu amigo Breuer, no dia 18 de novembro de 1882.

Cinco meses já se haviam passado, do dia em que Breuer se tinha afastado do caso.

Ana 0, ou Bertha Pappenheim, era este seu nome, não totalmente restabelecida de seus sintomas, se tornaria a primeira Assistente Social da Alemanha.

A história de seu tratamento, relatado por Breuer a Freud, ficaria muito presente neste, tendo sido motivo de comentário seu com Charcot, três anos depois, em sua ida à Paris. E Charcot não lhe deu ouvidos, nos conta Freud em sua autobiografia.

Ouvido lhe emprestou Freud, como também havia emprestado Breuer à sua jovem paciente, nos dois anos de tratamento. Ouvido que lhe permitiu calar, no momento que ela lhe disse: – Por favor, não fale, estou limpando a minha chaminé, estou fazendo a cura pela conversa (talking cure).

Breuer calou e ouviu, num momento onde talvez outros falassem.

“Limpar a chaminé” poderia ser classificada de uma alucinação; “não fale” poderia ser uma arrogância ou mesmo presunção. Falar sem ser interrompida seria talvez uma perda de tempo, ou no mínimo algo mais próprio dos discursos das babás, que ninam as crianças, fazendo-as dormir, que na boca de uma paciente, que deveria bem informar seu médico sobre seus tormentos, para que ele sobre esse decidisse qual a melhor conduta. Para que assim ele prescrevesse o tratamento.

Afinal, o hábito marcava muito bem as posições que definiam; ao paciente o lugar da dor e da ignorância e ao médico o do saber e da cura.

Saber traduzir uma linguagem leiga, que descreve seu mal-estar, em uma linguagem estruturada, própria do saber médico, que ao diagnosticar uma síndrome, um sintoma, uma moléstia, prescreve a correlata terapêutica.

Breuer calou, e assim fazendo, sem a precipitação surda do “furor curandi”, deixou espaço para que algo novo falasse. Se por um lado já bem sabia da operatividade do seu saber, calando encontrou-se com outro, com outro saber.

Que espanto talvez lhe tenha acometido, ao ver que palavras soltas podiam, tomar arranjo próprio, constituir-se em um saber e sanar a dor.

Um espanto sim, pois, afinal de contas, como poderiam as palavras por si mesmas, construir algum saber? Não seriam as palavras meros instrumentos de veiculação de algo anteriormente pensado, do qual só se constituía mensagem? Como poderia a criação suplantar, ou desmentir o criador? Como pensar que o falar livremente, a semelhança do ócio, seria produtivo, quando o útil estava jogado na negação do ócio, no negócio?

Se em 1882, Breuer ousou experimentar esse algo novo, tendo a parceria do amigo Freud, em suas discussões posteriores, só bastante tempo após, 34 anos passados, em 1916, é que muitos mais viriam a participar dessa descoberta, já que agora aparecia cientificamente formalizada pelo linguista Saussure, três anos depois de sua morte, data da publicação, por seus discípulos, do livro “Curso de Linguística Geral”.

E neste livro que se encontram formalizadas as leis de combinação dos Significantes, bem como a explicação de que não é a mensagem que cria a ordenação dos significantes, mas que, pelo contrário, é deste dependente.

Significante, em “lato sensu”, é aquilo que por si só não tem sentido, vindo a tê-lo ao se combinar a outro Significante.

Saussure possibilitou pôr em evidência, ressalta-nos Lacan em seu trabalho intitulado: “Instância da letra no Inconsciente ou a razão desde Freud”, o que Freud na “Interpretação dos Sonhos” descobrira.

Não é com muita dificuldade, que ao abrirmos a página 678 do Vol. V, da obra completa de Freud em português, que o encontraremos extasiado ao descobrir “relações mágicas”, no material onírico de seu estudo.

Depois de Freud uma nova razão, um novo saber. A psicanálise nascia: no sonho ela nascia, este século ela acordava.

1900 é a data da publicação da “Interpretação dos Sonhos” por Freud. Esse é o texto ao gual quase todos se referem, inclusive seu autor, como o do início da psicanálise, porém, a concordância por muitos em sua importância, não é correlativa à concordância sobre o que de seu ensinamento.

Se por um lado, como há pouco vimos, nele encontramos o primeiro estudo exaustivo da lógica do inconsciente, levando-nos a pensar em sua estrutura como a de uma linguagem, para outros, o que foi ressaltado, foi una existência de fantasias infantis, primitivas e associais, que deveriam ser domadas à semelhança de um adulto maduro ideal. Seria esse o inconsciente estruturado por fantasias.

Aonde colocar a ferida narcísica da humanidade tantas vezes imputada a Freud, em seguida às de Copérnico e Darwin? A descoberta de uma sexualidade infantil, como o “mass midia” se preocupou em propagar, ou a descoberta deste Saber, Saber esse avisado por Ana 0, que ultrapassa os limites do sujeito, dizendo-lhe respeito apesar dele e não por causa dele.

“Je est un autre”, eu é um outro, é o verso de Rimbaud que Lacan recupera para exemplificar, em seu Seminário II, o descentramento do sujeito, a revolução de Freud, anunciando de passagem que os poetas, mesmo quando não se dão conta, descobrem as coisas antes dos outros.

•Je est un autre” que podemos colocar de par a uma outra frase, bastante conhecida:- “Je pense donc je suis”, eu penso logo eu existo, nos diz Descartes em seu “Discurso do Método”.

Também esse eu é um outro. Esse eu que pensa não é o eu sede da sapiência, dos afetos, da vontade, etc. Este é o eu esvaziado dessas características. Ele é pontual e evanescente.

É este o sujeito da Ciência. Ele não fala de uma significação, fala de uma articulação, fala de uma lei.

A lei, por exemplo, anunciada por Newton, dos movimentos dos astros.

Kepler já havia chegado perto, porém Kepler não pôde sabê-la, pois para tanto teria que se recusar pensar a existência de somente órbitas circulares.

Afinal, astros tão perfeitos poderiam ter outro movimento senão a perfeição do círculo, do centro. Koyré interpreta Kepler.

Kepler não pôde ouvir. Havia nele um obstáculo epistemológico, que, na definição de Bachelard, é tudo aquilo que impede o aparecimento do novo, pois o novo põe em questão o já sabido.

Como primeiro obstáculo epistemológico considera Bachelard a opinião, dizendo: “a opinião pensa mal, ela não pensa; ela traduz as necessidades em conhecimentos.”

Bachelard nos coloca a diferença de conhecimento e ciência.

O conhecimento sendo da ordem da opinião e esta uma tentativa de suprir as necessidades, é imaginário. Se há necessidade é porque há a falta. O conhecimento tenta descobrir o que falta, melhor dito o que complementa, o que.sossega.

Há na base do conhecimento a ideia de complementação da falta, da possibilidade de conaturalidade, – “connaissance” – entre sujeito e objeto.

A ciência, por sua vez, é a ausência de complementariedade. Se ela se vale da opinião, se ela se vale do sentir, se ela se vale da visão, é para sobre esses operar, em sentido oposto ao do imediato, em sentido de corte; o corte epistemológico.

A ciência não mostra complementariedade de sujeito e objeto. Diz-nos Jacques-Alain Miller, em suas conferências Caraquenhas que: “o discurso da ciência só se constitui a partir da extinção da significação, a partir da construção de redes sistemáticas de elementos em si mesmos desprovidos de significação, porém coerentes entre 81”.

Não fala a ciência da suplementação da falta. Não cala a ciência a falta: ao contrário, fá-la operar.

Nisto está implicado a possibilidade da psicanálise.

O discurso da ciência foi condição do surgimento do discurso da psicanálise.

Newton foi por alguns acusado de loucura, quando da publicação de sua lei gravitacional. Perguntavam-lhe se ele estava supondo que os astros conheciam matemática. Em que escola tinham estudado? Outros o acusavam de estar retornando ao pensamento pré-cartesiano, pois deveria entender que um Deus estava por trás de tudo, para tão bem organizar esse saber.

Tanto em uma ou outra acusação vemos a presença de um obstáculo epistemológico e este é como imaginar, como conceber ou, mais simplesmente, como suportar a existência de um saber,- os astros sabem se organizar -, sem que um sujeito, sem que alguém seja por isso responsável.

Al está uma ferida narcísica. Se falamos de um saber sem determinarmos o alguém por ele responsável, o seu possuidor, apresenta-se a impossibilidade de virmos nós a ocuparmos esse lugar.

Admitir um saber que não seja por alguém determinado é difícil a suportar, pois impede meu acesso ao domínio desse saber e o não domínio é correlativo, por sua vez à dominação e ao eventual.

E essa dificuldade que aponta Freud, em “Futuro de uma ilusão”, como motor da religião, ou seja, a colocação de um Deus como o responsável por esse saber e nossa consequente imagem e semelhança, não sem interesse.

O mesmo podemos pensar em relação à análise. O fato da Associação Livre acordar esse saber faz com que o analisante, adscreva-o ao analista, que um dia ele almeja – ser. Ele supõe que embora ele não saiba, o analista sabe.

O analista, é o Sujeito Suposto Saber. Infelizmente, o convite contínuo dos analisandos acaba convencendo certos analistas de seu parentesco divino, passando esses a entender que nada extrapola o “Aqui e Agora”.

Podemos ver uma simetria entre o que sucedeu a Kepler e Newton, com o que se passou com Breuer e Freud.

Foi a Breuer que Ana O relatou que os significantes livres, que a Associação Livre, era capaz da construção de um saber. Os significantes sabiam se organizar. Foi Freud quem pode aí aprender, e no seu livro dos sonhos mostrar esse movimento dos significantes, como o da condensação e do deslocamento, posteriormente relido por Lacan, com auxílio de Jakobson, como metáfora e metonímia.

Freud permitiu-se ser o agente do corte epistemológico, que inauguraria a Psicanálise.

Essa podemos dizer que é a primeira lição da Transmissão da Psicanálise. Se falamos de formação em Psicanálise, é às formações inconscientes que nos referimos.

O fato de ser a análise pessoal sempre colocada como fator essencial à transmissão, é porque é aí que, prioritariamente, se revela a presença desse saber, com maior – vigor; é al que, no exercício da quebra do narcisismo, na retificação da opinião e do sentir, pode o ouvido abrir passagem para que o novo ponha em questão o estabelecido e que sua presença movimente o saber estruturado, apontando a polifonia de soluções.

O psicanalista se forma, portanto, na Escola das Formações do Inconsciente.

A teoria psicanalítica é o resultado da simbolização da suportância desse saber advindo da Associação Livre, do saber da ciência que não tem sujeito, mas só suposto, que opera na transferência.

A transferência que já nos referia Freud, desde o início, que leva a uma espera confiante, que diz respeito a uma atitude que proporciona o saber se pronunciar.

Para concluir, dividiremos a teoria que se faz da Psicanálise em duas: os discursos sobre a Psicanálise e os discursos da Psicanálise.

Como discursos sobre a Psicanálise entendemos aqueles que se preocupam em aplicar um certo método sobre a produção de um autor ou de um conjunto de autores, com fim de estudar determinado corte, como por exemplo a evolução de um conceito, as diferenças entre escolas, Psicanálise e cultura, etc.

Como discursos da Psicanálise entendemos aqueles de retorno. Retorno no sentido que Lacan o dá quando fala em seu retorno a Freud, que não é o de uma regressão, mas sim do movimento – “après-coup” que possibilita nova articulação, produtora do novo.

Newton relê Kepler. Lacan relê Freud que relê Breuer.

Surge a pergunta, será que só eles releem, só eles produzem?

Sim e não.

Sim, se pensarmos que seus seguidores preferiram se acomodar ao modo de parecer, evitando o modo de estar.

Modo de parecer, ou seja, por exemplo pensando nos seguidores de Lacan, houve agueles que buscaram na suposta imitação de seu estilo, na pertinência à sua Escola, a Freudiana de Paris, e na enunciação de um discurso hermético, não coerente com a dificuldade do tema e sim com escamoteamento daquele que o profere, um atributo identificatório que respondesse mais a um mercado, que ao desenvolvimento da Psicanálise.

Lacan a esses respondeu, quando da dissolução da sua escola.

A segunda carta da Dissolução, datada de 15 de janeiro de 1980, tem como primeira linha: “Je suis dans – le travail de L’ inconscient”. “Eu estou no trabalho do inconsciente”.

Esta é a escola, podemos concluir.

Assim pensando, vamos ao não.

Não só Freud e Lacan releem, mas se a eles nos referimos com tanta insistência, não é por serem possuidores de uma verdade absoluta, frente à qual nada mais restaria senão aludir, abrindo as portas à uma erudição – estagnante; mas sim porque com maior força se puseram a trabalhar, propiciando com o peso de suas dúvidas, fazer com que a inércia fosse deslocada, deixando espaço que em sua companhia o saber desabroche.

Entendemos que os autores que ficam não são aqueles que mais exaustivamente forneceram respostas, mas sim os que mais ousaram perguntar.

São suas dúvidas, suas inquietações, sua presença no corte epistemológico, que convidam a uma parceria – produtiva.

Diz um epistemólogo que a melhor produção cientifica não é a que fica intocável, mas a que mais se permite rearticulações, por ser a mais fecunda.

É isso que possibilita que nos aproximemos de seus textos e que, na sua convivência, nos seja facilitado o pensar.

Se o retorno é possível, o é pela riqueza das novas articulações que propicia.

Aí está o ensinamento, aí está a transmissão. Antes de mais nada, o que se transmite é uma postura. A postura de uma escuta. Seja Newton, Kepler, Lacan, Freud, Breuer, Rimbaud, Ana 0 e tantos mais.

Também aqui o poeta já havia falado.

Bilac nos disse:

– E preciso saber: Ouvir estrelas.



*Trabalho Publicado na revista Estudos – Centro de estudos Freudianos, nº2, 1982


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