O sinthoma e a responsabilidade sexual 09/12/2021

A. Barra, K. Simplicio, L. Batistão, L. Silva, M. Meni, V. Casado

“Digo: o real não está na saída nem na chegada,
ele se dispõe para a gente é no meio da travessia”

— Guimarães Rosa

Partimos da citação de Guimarães Rosa, extraída da obra Grande Sertão: Veredas, para tentar articular o sinthoma e a responsabilidade sexual na segunda clínica de Jacques Lacan. Se em Freud, sustentado no referencial falocêntrico e parafraseando Napoleão*, tivemos que “a anatomia é destino” (1923-1925, p. 188), nos perguntamos se, apoiados na lógica subversiva de Lacan, não podemos dizer que, no laço social da TerraDois, a anatomia é a partida e o destino é o sinthoma. Isto porque, conforme nos ilustra Rosa, o real, aqui tomado como o furo da sexualidade (a saber: a castração) ou, “o destino”, pode não coincidir com a chegada, mas (dis)por-se na travessia, na via(gem) que é tomar assento na partilha dos sexos.

Assim, com a finalidade de dar contorno e traçar a rota da articulação que nos propomos, tomamos, como exemplo, o relato da observação despretensiosa do processo do que chamamos de tomada de assento na partilha dos sexos, vivenciado por uma pessoa jovem universitária:

Fabi é um jovem estudante, de vinte anos de idade, que num primeiro momento, ao se apresentar, identifica-se como homem trans e pede explicitamente para que sejam utilizados pronomes masculinos no trato com ele. Passadas algumas semanas, Fabi refuta sua transmasculinidade e pede que sejam usados pronomes neutros, pois passou a identificar-se como “pessoa não-binária”. Finalmente, num terceiro momento, após relatar que começou a fazer análise, diz que se entendeu como mulher cis e que pode ser chamada de Fabiana e utilizados pronomes femininos.”

O relato ilustra uma questão extremamente candente, refletindo o que é esse momento de tomada de posição na partilha dos sexos em TerraDois, um tanto errante, uma vez que o laço social, não sendo mais pai-orientado, ou seja, deixando de ser regulado apenas pela lógica falocêntrica, promove um giro e, por conseguinte, uma quebra no antigo regulador no que toca à sexualidade humana. Da fissura desse regulador e num contexto histórico de maior liberdade, emerge a possibilidade de ser aquilo que se quiser ser — “hoje, podemos mais do que queremos”, diz Jorge Forbes —, o que por um lado, produz desbussolamento** e intensifica a angústia, mas, por outro, possibilita (e é no que apostamos) o passo no caminho da responsabilização, a partir do que cada um vai buscar e pôr de si para situar-se no mundo: singu(lar)izar-se.

Em TerraDois ocorre a diminuição da orientação por um saber supostamente garantido como quando se operava a partir da primazia dada ao significante do nome do pai. Isso porque, na sociedade horizontalizada, o sujeito se confronta com os excessos pulsionais, daí a necessidade de uma nova clínica – uma clínica que trate do Real – que considere a pluralidade das versões do pai, para dar conta das novas expressões sintomáticas no seu desmedido pulsional.

Na psicanálise a questão não recai sobre o gênero, mas sobre a sexualidade. São dois sexos que demarcam a diferença sexual e a castração como sendo isso que faz limite, humaniza, uma vez que retira o sujeito de um estado pleno de gozo, e o convida a se colocar na dimensão da linguagem e haver-se com a dimensão do desejo. A psicanálise toma a diferença sexual como um dado da estrutura da experiência do ser falante.

Durante conferência no curso da TerraDois, no ano de 2020, ao receber a questão de Jorge Forbes sobre quem inventou essa coisa de “homem” e “mulher” e por que o mundo insiste com isso, François Leguil responde, brincando, que foi Deus, com Adão e Eva, mas que “faz tempo que Deus foi autorizado a pleitear seus direitos à aposentadoria”.

Ainda nesta ocasião, retomando Lacan, Leguil lembra que “homem” e “mulher” são significantes que nos são oferecidos pela linguagem e que por baixo desses significantes, o significado é essencialmente movediço, tanto quanto o modo de viver nos nossos tempos. E que o fato de os significantes “homem” e “mulher” serem aqui primeiros e dominantes, não diz absolutamente nada da variedade sem limites do modo com que cada um vive em sua singularidade o que é ser um homem e uma mulher.” Daí a invenção: o sinthoma, como sendo essa resposta singular que cada um é convocado a dar.

Podemos acompanhar Jorge Forbes (2012, p. 165) na explicação sobre os três tempos do sintoma: no primeiro tempo, o sintoma aparece como algo decifrável; no segundo, vemos o sintoma como gozo; já no terceiro – e esse é um dos pontos essenciais de nosso texto – é o sintoma como um resto indecifrável do gozo. Este é o sintoma do final da análise; intratável e relacionado à identidade essencial da pessoa. Nas palavras de Forbes (ibid): “É um aspecto da pessoa e do qual ela não consegue se desvencilhar, nem pela compreensão de seu sentido, nem pela tentativa da igualdade ou equivalência aos outros. É um sintoma que identifica alguém pelo fato de não poder deixar de ser.” Para distinguir esse sintoma do terceiro tempo ao do primeiro, Lacan decide optar pela grafia “sinthoma” (em francês sinthome).

Como algo intratável, o sinthoma — conforme mencionado anteriormente — deve nos levar à invenção; é a ideia de não mais resgatar algo que foi perdido, que deve ser decifrável e recuperado do passado, mas, sim, inventar o futuro. O que leva Jorge Forbes a escrever o texto: Jacques Lacan, o analista do futuro (2001). E essa invenção deve estar, consequentemente, ligada à responsabilidade. Responsabilidade que, para a psicanálise, é sexual, pois está atrelada à forma de satisfação de cada um, à autenticidade, à marca singular do sujeito indicada no sinthoma.

Diante das considerações feitas é impossível não nos perguntarmos como as relações entre os sujeitos impactam na construção da subjetividade. Mais especificamente, retomando o exemplo de Fabi/Fabiana, citado no início do texto, é de se questionar a contribuição de um movimento parental, que tem surgido como uma possível tendência: a de não nomear o sexo da criança, sugerindo a ela ao longo das interações uma “neutralidade de gênero” (se é que isso é possível) nas nomeações sobre si e suas identificações, para que posteriormente ela possa escolher por si mesma. Embora consideremos que tal aposta possa dizer muito mais da angústia dos pais frente à sua própria sexualidade, e um certo grau de ingenuidade, como nos lembra Leguil, somos impelidos a perguntar qual o impacto que esta opção terá no posicionamento e no reconhecimento do sujeito. Ao nos depararmos com conflitos similares ao relatado nesse breve exemplo, perguntamos qual a consequência de não nomear o sexo da criança, evitando aliená-la e marcá-la com palavras que distinguem seu sexo, não dando a ela parâmetros para reconhecer-se. E nesse sentido, trazemos alguns outros questionamentos.

Deixar um sujeito sem parâmetros iniciais seria o mesmo que deixá-lo em um limbo? Um limbo simbólico? Qual o impacto do Real neste contexto? Tal escolha dos pais não angustiaria mais do que auxiliaria na entrada na linguagem, gerando situações análogas à do exemplo citado? E como se coloca a questão da responsabilidade, que não é outra senão sexual, para este sujeito? Nossa resposta é a de que caberá somente a ele se implicar e ”saber fazer” com seu sinthoma. O modo como cada indivíduo viverá a sua sexualidade, como homem, mulher, não binário, trans, inter, Fabi ou Fabiana, e com quem ou com o que se relacionará, o modo como tomará para si o gozo da relação com o outro, convida sempre à responsabilização, a bancar perante os outros a posição que se toma no gozo da vi(d)a. Afinal, como diz Jorge Forbes (2013), “é na sexualidade que a pessoa se surpreende com o que não sabe, com o inconsciente” e é convidada a inventar uma nova forma de se colocar no mundo. São novos tempos, novos modelos de relações e novos desafios para a psicanálise e para o sujeito diante do ‘responsabilizar-se sobre o sinthoma‘. Estamos todos convidados!

Trabalho final do Curso Intermediário do IPLA 2021 apresentado por: Aline Barra, Karyna Simplicio, Larissa Batistão, Leandro Paschoal da Silva, Marianne Meni, Vito Casado.

Tutoria: Elza Macedo, Liége Lise e Teresa Genesini

_________________

NOTAS DE RODAPÉ

*Segundo informa a nova edição francesa, a frase de Napoleão foi: “Le destin,

c’est la politique”.

**Termo cunhado por Jorge Forbes.

____________

Referências bibliográficas

FORBES, J. (2012). Inconsciente e responsabilidade: Psicanálise do século XXI. Editora Manole

_________. (2001). Jacques Lacan, o analista do futuro. Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/artigos/jacques-lacan-analista-futuro.html. Acesso em novembro de 2021

_________. (2013). A legitimidade do inconsciente. Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/entrevistas/a-legitimidade-do-inconsciente1.html

Acesso em novembro de 2021.

FREUD, S. (1923-1925/2011). Obras completas, volume 16: O eu e o id, “autobiografia” e outros; tradução Paulo César de Souza. Companhia das Letras

LEGUIL, F. Entrevista concedida a Jorge Forbes, no curso TerraDois, do IPLA, São Paulo, 2020.

ROSA, J. (1956/1994). Grande sertão: Veredas. Editora Nova Aguilar