Tutoras:
Helainy Andrade
Vânia Viana
Alunos:
Andreza Moreira[1]
Camila Mendes[2]
Franciele Carneiro[3]
Julia Setubal [4]
Marcelo Caregógui[5]
Omar Raad[6]
Tainara Barbosa[7]
William Araújo[8]
Trabalho de Conclusão do 2º Semestre Curso Fundamental: de Freud a Lacan – 2023
É fato que, ao longo da história, todas as Revoluções Industriais desencadearam avanços substanciais em diversas áreas da produção. Evidentemente, a partir de tais progressos, esses eventos também trouxeram desafios de natureza social, econômica e ambiental.
Ao analisar os escritos de autores como William O. Henderson (1979) e Eric J. Hobsbawn (2000) sobre a primeira e segunda revoluções industriais que se desenrolaram entre 1760 e 1914, fica claro que esses períodos foram marcados, dentre outras transformações, pela automatização de processos, incrementos na produção e na eficiência, assim como no crescimento urbano e em avanços tecnológicos.
Com a chegada da terceira revolução industrial (1960-2000)[1], a sociedade se deparou com a automatização e com avanços das tecnologias de informação e de comunicação, impulsionando ainda mais a produtividade. Nesse período, a popularização da Web e do PC (Personal Computer) permitiu que o mundo experimentasse as transformações decorrentes de uma globalização acelerada. Do outro lado da moeda deste progresso, vale destacar o desemprego estrutural, que é aquele que ocorre quando as habilidades dos profissionais disponíveis são incompatíveis com os empregos ofertados, principalmente pela falta de qualificação, de localização e de reestruturações internas das empresas. Além desses, outros impactos consistem nas invasões à privacidade por meio do acesso facilitado aos dados pessoais, gerando vazamento de dados e outros incontáveis riscos à segurança cibernética.
Na atualidade, a sociedade está imersa na chamada “quarta revolução industrial”[2], na qual empresas como Microsoft, Apple, Facebook, Instagram e Google introduziram a inteligência artificial (I.A.) no cotidiano das pessoas. Um exemplo contemporâneo dessas tecnologias inteligentes é o ChatGPT, uma inteligência artificial desenvolvida pela startup de pesquisa em aprendizado de máquina OpenAI, a qual teve Elon Musk como um dos seus fundadores.
Sobre isso, o psiquiatra e psicanalista Jorge Forbes chama atenção para um aspecto que diferencia a atual revolução das outras: as revoluções anteriores trouxeram modificações para facilitar a vida das pessoas, enquanto a atual traz mudanças na própria vida humana.
É a primeira revolução que mexe com a nossa espécie, que nós, humanos, estamos agindo sobre a nossa espécie. Essa revolução foi sintetizada em quatro elementos que os Americanos deram o nome de NBIC. O N de Nanotecnologia; o B de Biotecnologia; o I de Informática; o C de Cognitividade, e são a possibilidade de compreender tudo isso e agir coerente a essas novas modificações. O eixo da impotência atualmente é fortíssimo, porque muita coisa que a gente não podia, devido a impotência, hoje em dia a gente pode. Isso quer dizer que a gente pode tudo? Isso não quer dizer que a gente pode tudo. Isso quer dizer que vamos ter novos problemas éticos. Se podemos modificar a espécie humana, precisamos saber de que maneira iremos fazer isso e como é que vão ser as definições das nossas escolhas.
(Forbes, 2020-2021 – Grifos nossos)[3]
Forbes também destaca que o uso excessivo dessas novas tecnologias coloca a sociedade diante de uma série de desafios éticos, especialmente quando se trata da interseção entre tecnologia e ciência. Segundo Jorge Forbes[4], há três agrupamentos importantes que nos auxiliam na compreensão das mudanças dos efeitos da tecnologia sobre o ser humano. O primeiro é o NBIC mencionado na citação acima. O segundo consiste na diferenciação entre inteligência artificial fraca e forte. Por último, mas não menos importante, temos o terceiro grupo, que diz respeito às diferentes visões, sendo elas a transumanista, pós-humanista e bioconservadora.
A tendência da maioria das pessoas é considerar que a I.A., por si só, é forte, por ter levado em 2021 uma nave a Marte, por exemplo. É evidente que a inteligência artificial pode fazer muitas atividades, desde uma cirurgia até a operação dentro de uma célula, no entanto, para uma inteligência artificial ser considerada forte ela precisaria conseguir pensar por si mesma.
De acordo com Luc Ferry, no livro “A Revolução Transumanista”, o transumanismo não enfrenta a inteligência artificial com temor, nem antevê a substituição do ser humano. A abordagem transumanista, na verdade, se concentra na complementaridade entre humanos e inteligência artificial. Portanto, prevê-se que, embora algumas profissões possam desaparecer, outras surgirão como resultado dessa cooperação.
Segundo Forbes,[5] os pós-humanistas são os que pensam que, em um dado momento, a biologia humana será transformada, surgindo uma nova raça: “a raça pós-humana”, que poderá escravizar e destruir a espécie anterior. Esse dito perigo que ameaça a humanidade é fortemente salvaguardado pelos bioconservadores, os quais teorizam e pedem o recuo de um progresso tecnológico e defendem, por exemplo, a restrição das pesquisas com células cancerosas.
Os avanços tecnológicos são inegáveis e não há como retroceder nesse aspecto. Médicos radiologistas foram ultrapassados em sua capacidade de ler imagens, mas isso quer dizer que o médico será substituído pela I.A.? No que diz respeito a rapidez na leitura de exames, não temos dúvidas, mas no que toca a questões voltadas à subjetividade[6], cremos que não. Nossa aposta volta-se para a lógica de que o médico é insubstituível no que tange aquilo que põe de subjetividade no tratamento de seus pacientes, habilidades que vão para além da técnica teórica minuciosamente aprendida.
Nesse contexto de avanços relacionados à I.A., vale a pena explorar também o cenário distópico pós-humanista apresentado no filme “O Doador de Memórias”, de 2014, dirigido por Phillip Noyce. A trama, que possui o personagem Jonas como seu protagonista, descreve uma pequena comunidade que aparentemente atingiu a perfeição e onde todos vivem em uma constante felicidade. Nessa comunidade, as memórias foram banidas, e qualquer tipo de diferença é proibida; o uso de uma linguagem precisa e previamente acordada entre todos, juntamente com a ingestão diária de vitaminas para evitar oscilações de humor durante o dia, garantem a ordem e a harmonia. A consequência dessa uniformidade acaba sendo a ausência de emoções, de amor, de contato físico, de paixões e de fé, que foram banidos em prol da estabilidade.
Porém, nas palavras de Jonas, “por que alguém iria querer se livrar das emoções?”. Esse jovem é escolhido para receber as memórias do passado e para aprender a história secreta do mundo. Ele fica proibido de compartilhar essas memórias, já que quando as pessoas tiveram liberdade para escolher, escolheram errado, segundo os assépticos anciões da comunidade e idealizadores daquela sociedade. No entanto, com o desenrolar da experiência de acesso às memórias do passado, Jonas começa a se questionar sobre quem ele é e percebe que alguma coisa foi roubada dele. Este é um momento de tropeço com o Real, podemos dizer com Forbes que pontua: “O encontro com o Real é o momento em que o sujeito tropeça em suas certezas. Resumidamente, diríamos que é o momento em que uma harmonia é quebrada, rompida, em que um mal-estar se estabelece” (Forbes, 1988, p.3). No texto, “Os Caminhos lógicos da psicanálise: O Nome próprio”, Forbes complementa o conceito de Real como “aquilo que não cessa de não se escrever, estamos dizendo que o Real é o impossível de se escrever”. Essa é uma definição que nos será importante, mais adiante no contraponto com a I.A..
À medida que Jonas vai sendo apresentado a essas memórias, ele começa a sonhar, a conhecer o amor e a dor. Jonas começa a acessar o seu inconsciente e aquilo que diz respeito ao seu desejo. Nesse sentido, quem é Jonas? Ele foi escolhido como recebedor de memórias por dispor dos seguintes atributos: inteligência, integridade, coragem e a capacidade de ver além, posteriormente conjugada com a capacidade de ouvir além, isto é, de ser capaz de escutar aquilo que o chama por dentro.
Podemos questionar, a partir do filme. Seria a I.A. capaz de nos “curar” do Real? Há toda uma clínica, aquela que corresponde aos últimos anos do ensino de Jacques Lacan que se orienta por esse Real. Os analistas que a sustentam poderiam ser substituídos pelas máquinas e seus softwares? Segundo Jorge Forbes, não. “Como a essência humana é vazia, ela não é capturável pelo algoritmo. Nossa essência é vazia ou esburacada, nas palavras de Lacan” (Forbes, 2023). Assim, para que uma inteligência artificial substitua um humano, ela precisaria alcançar o que nós, com “nossa inteligência”[7], fazemos: nos angustiar, duvidar, errar, perceber, inventar, mudar. Precisaria pensar por si mesma, o que, para alguns, é algo que ainda não alcançou e que, para outros, nunca alcançará.
No texto “Para que Serve Isso?” (2023), Forbes defende que “o desejo persiste e que somos animais históricos”. O analista é aquele que não se preocupa em tudo saber e que transmite ao seu analisando aquilo que é da ordem do impossível. Do encontro com o Real não há como se livrar, por mais que se organize todo um modo de funcionamento de uma sociedade, tal como em ‘O Doador de Memórias’, com a lente de aumento que a arte nos propicia. A psicanálise, como elucida Forbes, se ocupa do silêncio que a medicina, e assim também podemos incluir, o ChatGPT e a I.A., tentam preencher, em uma rapidez excepcional e à distância de apenas um clique. A ética da psicanálise ilumina o que há de ilusório em tudo que aponta para a direção de uma normalidade subjetiva. A psicanálise não tampona o que claudica e nem propõe a cura daquilo que não cessa de não se escrever.
Dito isso, o analista é aquele que suporta a existência do Real, e é a sua recusa em ocupar o lugar de tudo saber que possibilita uma análise. O tratamento analítico se ocupa do incompleto, da essência vazia do humano e do desejo. O encontro com o analista não recobre tal ausência inominável, mas lança luz sobre ela, evidenciando, assim, a diferença absoluta de cada um; isso permite, dentre outras coisas, que cada qual não seja sempre o mesmo, como pontua Forbes em “Efeitos das tecnociências nas famílias”, texto de 2017: “somos sempre outros, daí criativos”.
Ainda nesse texto, Forbes comenta: “Se Freud descobriu o inconsciente, discute-se. Porém, com certeza ele descobriu, melhor, inventou o psicanalista, como ressaltou Lacan.” E é ao sustentar isso que é da ordem do impossível de se escrever, que o analista pode atuar como aquele que implica o sujeito “na sombra que se renova frente a qualquer avanço tecnocientífico” (Forbes, 2017) que gera sempre um novo não saber. Aqui nos valemos da música, da palavra poética, de Chico Buarque e Milton Nascimento que também apontam para aquilo do humano que não se escreve. Eles cantam “Que será que me dá? [..] Que me bole por dentro [..] Que dá dentro da gente [..] Que não têm remédio, nem nunca terá. O que não têm receita”, o que não tem palavra. Como a I.A. poderia capturar o “que não tem nome nem nunca terá”?
O contraponto que visamos fazer entre a I.A. e o Real da psicanálise nos leva à constatação de uma diferença radical entre ambas: a inteligência artificial, diante de cada demanda, responde para tratar: ela não cessa de escrever. Enquanto a psicanálise trata sem responder, porque lida com aquilo que não cessa de não se escrever. Nesse sentido, o analista é aquele que se oferece como suporte para a demanda, mas não responde a nenhuma, já que respondê-la é fazer calar o desejo.
REFERÊNCIAS
Andrade, H. O Futuro da Medicina é a Psicanálise? Instituto da Psicanálise Lacaniana. 2022. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/o-futuro-da-medicina-e-a-psicanalise/> Acesso em novembro de 2023.
Ferry, L. A Revolução Transumanista. São Paulo: Manole, 2018.
Ferry, L; Forbes, J. A Revolução Transumanista. Instituto da Psicanálise Lacaniana. 2018. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/a-revolucao-transumanista/> Acesso em novembro de 2023.
Forbes, J. Pra que serve isso? Instituto de Psicanálise Lacaniana. 2023. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/pra-que-serve-isso-provocacoes/> Acesso em novembro de 2023.
Forbes, J. A análise e seus fins: até onde vai uma análise lacaniana hoje? In: Psicanálise: a clínica do Real. São Paulo: Manole, 2014, p. 385-400.
Forbes, J. Efeitos das Tecnociências nas Famílias. Instituto da Psicanálise Lacaniana. 2017. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/efeitos-das-tecnociencias-nas-familias/> Acesso em novembro de 2023.
Forbes, J. Inconsciente e Responsabilidade: Psicanálise do Século XXI. São Paulo: Manole, 2012.
Forbes, J. Os caminhos lógicos da psicanálise: O nome próprio. Texto referente ao desenvolvido pelo autor na conferência do mesmo nome que abriu o Seminário “Acolhida do Campo Freudiano: Amanhã, a Psicanálise”, na Sociedade Psicanalítica de São Paulo, realizada no Auditório da Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo, em 13 de outubro de 1988. Disponível em: <http://jorgeforbes.com.br/assets/files/Os-Caminhos-logicos-da-psicanalise3.pdf>
Henderson, W. O. A Revolução Industrial: 1780-1914. São Paulo: Verbo e Ed. da USP, 1979.
Hobsbawm, E. J. A Era das Revoluções: 1789-1848. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
Lacan, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 869-892.
[1] Fala do Professor Miguel Fernandes na disciplina IA para negócios – Growth Intelligence, Faculdade Exame, 2023.
[2] Ibidem
[3] Fala de Jorge Forbes na disciplina Nascer e Morrer: Cardápio de Múltipla Escolha. FAAP, 2020-2021.
[4] Ibidem
[5] Ibidem
[6] Na psicanálise, utilizamos o termo subjetividade para nos referir a um aspecto singular da pessoa.
[7] Com a expressão “nossa inteligência”, não estamos nos referindo à inteligência no sentido de intelecto, mas sim numa concepção mais ampla que inclui o sujeito desejante, disposto a inventar uma resposta singular frente ao imprevisível.
[1] Pedagoga pela Faculdade Anhanguera Sbc/Sp. Pós-Graduada em Psicanálise do Séc. XXI pela FAAP – São Paulo. E-mail: msandreza12@gmail.com
[2] Psicóloga Clínica e da Saúde pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB), com especialização em Psicologia da Saúde e Hospitalar pela UnePós (DF, Especialização em Psicanálise Freudiana (IFAR). E-mail: mendes.camilav@gmail.com
[3] Psicóloga pela UFSJ – Universidade Federal de São João Del Rei. MBA em Gestão de Pessoas com Ênfase em Estratégia pela Fundação Getúlio Vargas. Psicanalista Clínica e Empresarial. E-mail: franciele.bridgeconsutlt@gmail.com
[4] Psicóloga Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Aprimoramento pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo da Infância e Adolescência – CINAPSIA.
[5] Psicólogo pela FEPI-Itajubá MG. Mestre em Gestão de Pessoas pela UNITAU – Taubaté – SP. Pós-graduado em Psicanálise pela FAAP – São Paulo – SP. E-mail: caregogui@gmail.com.
[6] Economista pela FAE Curitiba PR. MBA em Gestão Estratégica de Empresas pela FGV – PR. Pós-graduado em Psicanálise do Séc. XXI pela FAAP – São Paulo – SP. E-mail: omartraad@gmail.com
[7] Psicóloga Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Pós-Graduada em Clínica Psicanalítica na Atualidade: Contribuições de Freud e Lacan pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. E-mail: tainarafbarbosa@gmail.com
[8] Médico Psiquiatra pelo SUS-SP. Professor Universitário da UniMAX – Centro Universitário Max Planck do Grupo UniEduK. Pós-Graduado em Educação Médica e de Saúde com Ênfase em Metodologias Ativas de Ensino-Aprendizagem. E-mail:drwilliamaugusto@gmail.com
Trabalho de Conclusão do 2º Semestre Curso Fundamental: de Freud a Lacan – 2023
AUMAN, Z. Vida líquida. Málaga: Ediciones Paidós, 2021.