O mágico do real 12/09/2012

Por Claudia Riolfi

ESCLARECIMENTOS ESPETACULARES:

Após ler o trabalho que ora apresento, por favor, NÃO :

1) Tente fazer isso em casa, pode ser perigoso para sua saúde;

2) Tente imitar o mágico quando estiver no seu consultório, pode apresentar riscos para a integridade física de seus pacientes;

3) Confunda uma analogia − metaforização de um determinado fazer − com o uso denotativo da linguagem;

4) Espere encontrar no pequeno ensaio que se segue um desenvolvimento completo da extensa e complexa teoria do real lacaniano;

5) Deixe de lembrar que, via de regra, aqueles que se apaixonam pela aventura chamada psicanálise costumam seguir o exemplo de Freud;

6) Tema inspirar-se neste pioneiro que abdicou da segurança de rastejar por terreno conhecido e navegou por mares pouco tranqüilos, onde podemos, inclusive, encontrar monstros falaciosos.

Boa leitura!
Claudia Riolfi
TUTORA

INTRODUÇÃO

A mágica de Criss Angel causa surpresa, estupefação e, algumas vezes, angústia. Para isso, ele utiliza o não-senso, o inusitado. Ela subverte toda a tradição, trazendo a invenção, o novo, para a cena. Tomando sua arte como ponto de partida, buscamos dar a ver, por meio desta interrogação na qual o registro do real é privilegiado, que o discurso do analista (LACAN, 1964-1965/1988)2 se encontra presente na produção cultural da sociedade hipermoderna.

Todos já vimos o mágico que tira uma moeda de trás da orelha, ou das mangas. Mas nunca vimos um que engole a moeda e, cortando o seu pulso com um estilete, a retira de dentro do seu braço e a devolve, ensangüentada, à espectadora atônita3!

Todos nós estamos cansados de ver o velho truque da mulher serrada ao meio, mas nunca vimos uma mulher ser partida somente pelo uso das mãos. Do mesmo modo, causa espécie que, após a secção do corpo em dois, a parte de cima do seu corpo se ponha a rastejar pelo parque, em meio aos gritos de horror dos espectadores4.

Da mesma forma, é pouco provável que alguém tenha presenciado o próprio mágico cortar a si mesmo ao meio com uma serra elétrica5, ou empalar a si próprio em uma cerca6.

A platéia de Criss não consegue disfarçar um grande mal-estar. Sua mágica, portanto, evidencia que a presença insuperável do mal-estar para o sujeito humano é impossível de ser superada. O movimento do mágico do real é coerente com o discurso psicanalítico, que abre mão da falsa esperança da utilização de curativos e de panacéias generalizadas e desiste de fingir que nadamos no marasmo de uma felicidade completa e mortificante. Como Criss, o analista da contemporaneidade aposta na possibilidade de se inventar um modo singular de se relacionar com o mal-estar.

Este trabalho, portanto, tem como objetivo geral defender a tese segundo a qual, na contemporaneidade, o discurso analítico é a única saída para evitar o pior. Para tal fim, seguiremos o seguinte percurso: 1) abordaremos a questão do mal-estar a partir de Freud e a sociedade repressiva que ele descreve; 2) discutiremos como as mudanças que a sociedade tem sofrido frente à globalização afetam o sujeito e sua manifestação; 3) articularemos noções da psicanálise com os modos de subjetivação na primeira e segunda clínicas lacaniana; 4) traremos a noção de discurso como laço social e o discurso do analista como uma possibilidade de se lidar com a angústia, e, finalmente; 5) ilustraremos essa possibilidade de invenção por meio da análise da performance do mágico Criss Angel, que subverte a mágica.

1. O MAL-ESTAR NA CIVILIZAÇÃO

Shangri-lá, Éden, são todos nomes que remontam a um paraíso perdido que o homem, em sua ilusão e desejo, parece querer alcançar. Um lugar em que tudo se tem, em que não se experimenta a falta, em que o homem se acha completo seria a chave para a felicidade. Sem culpa, sem perda, sem desejo também. Em suma, um lugar que não existe.

Freud (1930)7 já apontava que o mal-estar é inerente à civilização. Ele o atribuía à impossibilidade de harmonizar suas pulsões aos códigos culturais que regem a sociedade. Mostrava que se submeter à lei gera um baita mal-estar e demanda um árduo trabalho. No que se segue, mobilizamos elementos para compreender melhor a sua natureza.

1.1. O mal-estar, a infelicidade, o desconforto nos tempos de Freud

Em outubro de 1927, Freud terminou a obra “O futuro de uma ilusão” e, durante os dois anos que se seguiram, quase nada publicou. Estava em tratamento de uma doença grave. No verão de 1929, começou a escrever um outro livro, segundo ele, sobre um tema sociológico. Na página de rosto, constava o ano de 1930. Freud escolheu o título: “A infelicidade na civilização”, alterada mais tarde por sua própria sugestão para “O desconforto do homem na civilização”. Finalmente, a sua tradutora lhe propôs o título que viria a ser aceito por Freud, por ter facilitado a sua tradução para o inglês. “O mal estar na cultura”, advindo da palavra francesa “malaise” (mal); traduzido do alemão e do inglês para o português sob o título: “O mal estar na civilização”. Observamos daí a dificuldade que o próprio Freud teria em nomear a sua obra sempre preocupado para que a palavra tivesse uma tradução literal para o idioma inglês, posto que ela seria publicada primeiramente na Inglaterra (cf. comentário do tradutor de Freud, James Strachy, nas notas de tradução das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud8).

Em seu livro, Freud cita que, embora tenha tratado o tema da religião como sendo uma ilusão, se depara com a constatação de um amigo que o leva a pensar na verdadeira fonte da religiosidade. O amigo a interpreta como um sentimento peculiar, algo como uma sensação de eternidade, que significa “algo ilimitado, sem fronteiras, oceânico” (FREUD, op.cit).

O autor se achava disposto a reconhecer que o sentimento oceânico existe em muitas pessoas. E se inclinava a remontar a sua origem a um sentimento de desamparo infantil. No trabalho “O futuro de uma ilusão” (1927/19979), Freud teve o interesse dirigido ao sistema de doutrinas, que garante que uma providência cuidadosa, protetora, irá compensar o homem, numa existência futura, de qualquer frustração que tenha experimentado.

Durante a elaboração do livro “O mal estar da civilização,” Freud passou a relacionar a arte com a ciência, consideradas as mais altas realizações do homem Considerou, ainda, a religião. Denominou a arte, a ciência e a religião de satisfações substitutivas que amenizam o nosso sofrimento e comparou-as, em seus objetivos, às substâncias tóxicas, que também servem de paliativos contra o sofrimento frente à vida. Assim, a satisfação gerada por estes mecanismos seria pura ilusão.

Ao interrogar o que os homens desejam da vida, respondeu que querem ser felizes, ambicionam uma ausência de sofrimento e de desprazer. Freud enfatiza que existiria um grande esforço para se obter felicidade; e o desejo é que isto seja para sempre. “O que decide o propósito da vida, é simplesmente, o programa do princípio do prazer, que domina o funcionamento do aparelho psíquico desde o início” (FREUD, 1930, p.84).

Freud, acrescenta, ainda, que outra técnica para afastar o sofrimento residiria em reorientar os objetivos instintivos por meio da sublimação. Quando isso acontece, o destino pouco pode fazer contra nós. Além disso, o psicanalista introduz, com bastante ênfase, a arte de viver que faz do amor o centro de tudo. No amor, o homem se relaciona aos objetos que pertencem ao mundo externo em nível emocional. No auge do sentimento de amor, a fronteira entre o ego e o objeto ameaça desaparecer. Contra todas as provas de seus sentidos, um homem que se acha enamorado declara que “eu” e “tu” são um só e está preparado para se conduzir como se isto constituísse um fato (FREUD, 1930).

O psicanalista coaduna o mal-estar com o sacrifício da satisfação sexual que o nosso dia-a-dia nos coloca. Do mesmo modo, o mandamento “amarás a teu próximo como a ti mesmo” é uma das máximas de um exemplo anti-natural. Ao tentar obedecê-lo, o homem fica impossibilitado de liberar seus instintos mais hostis com pessoas desprezíveis, o que também causa mal-estar. OK, sabemos que a eficácia disso não é tão grande assim, dado os grandes exemplos históricos e os percalços do nosso cotidiano, um xingamento no trânsito, um ato de violência desmotivada e inúmeros outros exemplos, mas, mesmo assim, a impossibilidade de segui-lo causa a dificuldade.

A agressão constitui no homem uma disposição original e auto-subsistente, tendo como representante a pulsão de morte. Freud a considera o maior impedimento da civilização.

A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob controle por formações psíquicas reativas”, afirmava Freud (1930, p. 68). E caso essas restrições fossem abandonadas, não saberíamos prever o destino da humanidade. Com isso, parece que o homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade para obter uma parcela de segurança.

Para Freud, a pulsão de morte é domesticada pelo temor à perda de amor. Há, portanto, uma renúncia às próprias satisfações para não perder o amor à autoridade.Por causa dele, o sujeito volta a agressividade ao seu próprio eu, por meio da intervenção do superego, que, por sua vez, origina o sentimento de culpa, sentimento este que aparece quando realizamos um ato condenável ou temos a intenção de fazê-lo. O superego expande-se para a civilização, tem interligação com a cultura. Representa a tradição que engloba as funções de interdição e de idealizações dos tempos.

Na sociedade que Freud (1930) descreve, e que podemos chamar de repressiva, portanto, a presença do superego era determinante. O complexo de Édipo era o ordenador da constituição subjetiva. A castração incidia e instaurava o campo dos sentidos, o que podia e não podia ser manifesto, o que era ou não aceitável. A própria clínica se orientava pelo sentido e pela interpretação, ou seja, ela se pautava pela possibilidade de se traçar uma matriz de significação a partir dos significantes e de sua ordenação na cadeia lingüística. Como o Édipo instaurava a Lei, a cultura e o código, o padrão era claro e delineado. Frente a ele, restava assumir a posição de a favor ou contra, de mais distante ou mais próximo, o que polarizava as posições possíveis de serem assumidas.

Neste tempo em que vivemos, no qual o múltiplo parece dar o tom, a realidade fortemente repressiva, altamente hierarquizada, orientada paternalmente e pelos ideais culturais descrita por Freud parece ter acabado. Não vivemos mais em um tempo no qual o destino do ser que nasce já está claramente delineado e a conduta segue padrões morais do que é certo e errado. A presença de um superego perdeu a onipotência, conseqüentemente, a culpa social parece ter acabado. A questão que se coloca, então, é: por que, mesmo quando parece que podemos fazer tudo, o mal-estar não acabou?

1.2. O mal-estar revisitado na contemporaneidade

Encaminhar uma resposta para a questão que nos intriga demanda delinear o cenário que marca a contemporaneidade, a hipermodernidade. Lipovetsky e Charles (2004)10 cunharam esse termo para qualificar um modo de vida em que se observa uma intensificação das características que marcaram a modernidade. Os autores caracterizam o nosso tempo como um tempo em que os limites estão cada vez mais rarefeitos, os referenciais se multiplicaram fazendo com que o Outro, elemento que antes desempenhava uma incisiva função estruturante, venha progressivamente perdendo seu estatuto, ao ponto de Miller (1998)11 afirmar que o Outro não existe.

Seguindo a discussão entabulada por Laurent e Miller (1998)12 e Forbes (2003)13, o eixo orientador da sociedade parece ter-se deslocado do Pai para um mix de micro eixos ao redor dos quais as identificações se estabelecem. Forbes assinala – em um tom nada trágico, deve-se ressaltar – que o próprio mundo em que vivemos é um mundo mix, um mundo da mistura. Nele, ao invés de nos orientarmos pelos ideais, temos que lidar com os cacos, conforme a citação a seguir:

Neste início de século XXI o mundo é outro. A globalização desregularizou a ordem social. O pai foi relativizado, os países se uniram em comunidades setoriais: Europa, Ásia, América do Norte, América do Sul; a economia não respeita fronteiras. O jovem criado nos ideais de escolha, realização e ganho da era industrial encontra os cacos da indústria. Onde havia chaminé da fábrica apontando o céu surge a telinha virtual, jogo de múltipla opção, Lego de adulto (FORBES, 2003, p.25).

Na contemporaneidade, a globalização provocou uma revolução nos padrões, tornando-os opacos, difusos, até mesmo inexistentes. Como resultado, observa-se uma superlativização das coisas (os “hipers” e “supers”), os excessos, o hiperindividualismo (cf. Lipovestsky e Charles, 200414; Lipovestky, 199415). Há que se ter cautela, entretanto, para que o discurso do hiper não se torne ele mesmo um sintoma. Na medida em que os pensadores ladainham a solução para o ser humano sem referenciais, desenha-se uma ladainha que não desloca para lugar algum e fica girando em torno de um tempo melhor.

A globalização tem tornado as fronteiras cada vez menos delimitadas. Consequentemente, a interpenetração de espaços e culturas demanda que o homem lide com uma gama cada vez maior e mais variada de diferenças de toda a sorte. Por um lado, isto pode implicar um enriquecimento cultural sem proporções na história humana, uma vez que nunca foi tão fácil conhecer e interagir com nosso vizinho (mesmo que ele more em outro país, do outro lado do mundo). Por outro, pode provocar estranhamentos desmedidos e aumentar o sentimento de individualismo.

Observa-se que a lógica da sociedade hipermoderna é a do real, do gozo, que quer dizer: o sujeito se orienta em torno do seu gozo. Isso é um fato e cada vez mais, com a ausência dos referenciais, fica fácil se grudar a qualquer coisa como uma bússola que oriente esse gozo. Uma forma em que se pode observar esse deslocamento da lógica Pai orientada para uma lógica do gozo é a sexualidade. Antes, as pessoas se orientavam por modelos estruturados e tradicionais, o que limitava a escolha das identidades sexuais. Hoje, diversas identidades sexuais buscam se inscrever na cultura, tomando “a forma de uma demanda de reconhecimento da regra sexual seguida por cada um. As invenções mais radicais, mais em ruptura com a tradição, querem ser reconhecidas em sua particularidade” (LAURENT, 2006)16. A demanda pelo reconhecimento do casamento gay é um bom exemplo.

Onde antes havia um Pai que regulava o gozo, hoje há Nomes-do-Pai, aos quais o sujeito faz apelo. Laurent (2006) nos diz que todos temos que inventar o pai que nos reconhece ou nos rejeita, segundo a nossa particularidade, o que nos coloca constantemente frente a dilemas, escolhas, modos diferentes de fazer, ao inesperado, à surpresa. Devido à relativização dos valores e do que é certo ou errado, quem é que vai se achar no direito de dizer que aquilo com que o indivíduo goza pode ou não pode?17

Retomando, então nossa questão a respeito da possibilidade de poder fazer tudo e, mesmo assim, enfrentar o mal-estar, é necessário, em primeiro lugar, marcar que se trata de uma falácia. Não dá pra fazer tudo! Não no sentido do que é ou não proibido, mas pela via da necessidade de escolher. Com o enfraquecimento dos parâmetros, a questão parece ter se deslocado do campo da moral. Entretanto, como a morte ainda não foi superada, o impossível permanece nos fazendo encarar o não todo. Saímos da moral e caminhamos para a ética. A ética, segundo Forbes, se relaciona com a capacidade de “suportar um aspecto maior do que si mesmo, ‘mais forte do que eu’, pelo qual uma vida ganha sentido” (FORBES, 2003, pg.79)18. Acreditamos que o verbo “poder”, nessa nova realidade, está mais para o que o indivíduo deseja fazer do que para o que lhe é autorizado fazer. Como diz respeito ao desejo, o que cada um pode não é passível de apreensão apenas pela palavra.

E como o sujeito se vira nessa nova realidade que escancara que a palavra não consegue recobrir o mundo? No quê se pauta para fazer suas escolhas em um mundo no qual o simbólico não é suficiente para autorizar o que é ou não ético?

Para responder a essas questões, trazemos a noção de discurso sob a perspectiva da Psicanálise. A nosso ver, esse conceito nos dá evidências sobre como, diante dos cacos que podem gerar o mal-estar contemporâneo, ainda é possível fazer laço, deixar-se enganchar de forma a se comprometer com uma posição singular no mundo.

2. O CONCEITO DE DISCURSO EM PSICANÁLISE

Uma via para se discutir como o homem lida com a falta hoje é por meio da teorização lacaniana dos quatro discursos. Segundo Forbes (2007)19, esses discursos são quatro formas possíveis de se colocar frente a insatisfação que resulta da perda. Trata-se de uma elaboração que se assenta na obra Lacaniana, que, por sua vez, dedicou vários de seus seminários para formalizar um maquinário que organiza os significantes de modo que eles toquem o corpo20.

Mas o que é o discurso para Lacan?

No período comumente designado como primeira clínica, Lacan defendia a primazia do significante. O psicanalista se apoiou na Lingüística estrutural de Saussure (2000)21 e, posteriormente, na teoria dos atos de fala de Austin (1962)22 para estabelecer que, na psicanálise, o discurso deve ser pensado como vínculo social em que as relações são estruturadas por meio da linguagem, não sendo, entretanto, dependentes dela.

Posteriormente, Lacan passou a conceituar discurso como sendo uma estrutura anterior às palavras, por meio da qual elas podem ou não ganhar um sentido. Ele afirma: “Não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se funda e se define por um discurso”. (LACAN, 1972-73/1982, p.45) 23. Trata-se de dar a ver como os sujeitos se organizam, como se pode ler no seguinte excerto:

É que sem palavras, na verdade, ele pode muito bem subsistir. Subsiste em certas relações fundamentais. Estas, literalmente, não poderiam se manter sem a linguagem. Mediante o instrumento da linguagem instaura-se um certo número de relações estáveis, no interior das quais certamente pode inscrever-se algo bem mais amplo, que vai bem mais longe do que as enunciações efetivas. Não há necessidade destas para que nossa conduta, nossos atos, eventualmente, se inscrevam no âmbito de certos enunciados primordiais (LACAN, 1969-70/ 1992, p.11)24 .

O discurso sem palavras é um saber, um saber-fazer. Lacan se pauta na teoria da enunciação para dizer que há algo mais amplo que se inscreve mediante algumas relações estáveis, mas que não se inscreve naquilo que efetivamente se enuncia, ou seja, no dizer. Por meio do discurso faz-se laço. Mesmo assim, isso que se inscreve é capaz de revelar nossa posição, nossa conduta frente a um determinado evento.

A partir da articulação de quatro elementos e de suas relações e posições, Lacan elabora o que ele chama de o discurso do mestre, da histérica, do analista e da universidade. Os quatro elementos seriam:

S1 = significante mestre que intervém na bateria dos significantes: O mestre está no lugar dos significantes, sabe falar, mas não sabe fazer

S2 = a bateria dos significantes

$ = sujeito dividido 0

a = a perda: a linguagem não consegue recobrir tudo; há sempre algo que fica de fora, que se perde, instaura a falta.

Lacan os representa por meio dos seguintes matemas:

Discurso Universitário

Discurso do Analista

Discurso da Histérica

Discurso do Mestre 

A posição em que se encontram as letras indica uma função, de acordo com o esquema abaixo:

Agente

outro

Verdade

 

produção

A teorização que elaboramos nesse ponto é baseada no seminário 17 (1969/1970-1992)25 e 2026 de Lacan, cuja leitura nos foi mais leve graças ao esforço prévio de Riolfi (1999)27. A posição de agente é a de dominante, ou seja, a que desencadeia o discurso, que causa a cadeia de repetição. Importante frisar que os discursos não acontecem apenas nos lugares e posições (no caso da histérica e do analista) que os nomeiam. Essa estrutura foi articulada por Lacan para explicar os diferentes modos de causar um sujeito como efeito, o que equivale a dizer que eles ilustram quatro maneiras diferentes de se fazer laço social a partir da forma de apreensão dos diferentes efeitos do significante.

Lacan explica que essa estrutura funciona por meio de um giro de quarto de volta no sentido horário, o que não significa que os discursos aconteçam em seqüência. A ordem dos significantes é mantida, partindo sempre da ordem em que aparecem no Discurso do Mestre, pois esse é o discurso que descreve a entrada mítica do sujeito na linguagem (o que explicaremos logo adiante). Sempre que uma letra diferente ocupa um dos lugares fixos acima, devido à rotação que sofre, observa-se uma mudança da posição subjetiva. Dessa forma, efetuando-se o primeiro giro das letras, cai-se no Discurso da Histérica, do Analista e da Universidade, e assim sucessivamente.

A explicação que daremos de cada um deles partirá do significante que ocupa o lugar de agente em cada um dos discursos.

No Discurso do Mestre, o agente é o significante mestre. Ele é o agente porque é esse primeiro significante que intervém no campo do Outro para que possa representar um traço que se repete junto a S2, o campo dos significantes, dando origem a um sujeito compreendido como efeito de linguagem. Por ter como agente o significante-mestre, esse discurso tem um caráter totalitário, pois os significantes que se produzem a partir desse lugar aprisionam o sujeito na medida em que o assujeitam àquele significante primeiro que agenciou a cadeia.

Em outras palavras, o Discurso do Mestre valoriza o saber apenas na medida em que ele produz algo novo que possa ser colocado a serviço do mestre. Para ilustrar esse ponto, lembramos que o discurso que coloca o hiperindividualismo, a ausência de referenciais, a inexistência de controle do homem como “fatalidades” pode se constituir um discurso do mestre se proferido pelo filósofo, por exemplo. Uma vez que o filósofo é tido como aquele que detém o conhecimento, o discurso advindo dessa posição pode colar em alguns indivíduos resultando na apatia, na angústia paralisante, pois, afinal, o que mais lhes restaria fazer?

Efetuando-se um primeiro giro de quarto de volta no sentido horário, caímos no Discurso da Histérica, em que o agente é o sujeito, já na condição daquele que resultou da operação de divisão da linguagem. Na operação de divisão sofrida, algo fica de fora, cai como perda, algo que não pode ser representável e que Lacan chama de objeto ‘a’. Como resultado de sua divisão, o sujeito não tem controle, de fato, sobre o que diz. Fala continuamente em busca de algo que possa dizê-lo e se dirige para o Outro como aquele que pode dar-lhe um significante ao qual se aliene. O Discurso da Histérica consiste, em outras palavras, na produção de um saber do qual quem produz não pode se aproveitar. Trata-se de um discurso que, via insatisfação, põe o sujeito em movimento, o que não implica, necessariamente, desenvolver um sintoma neurótico. Pelo contrário, pode, inclusive, ganhar uma dimensão criativa. Um bom exemplo é o caso do poeta que ao criar sua poesia, associa palavras de tal modo a convocar que outros também se engajem na associação de uma forma criativa. Lembramos ainda o analisando que tem seu discurso histericizado para que estabeleça a livre associação tão cara ao processo psicanalítico.

Efetuando-se mais um quarto de giro de volta, ainda no sentido horário, caímos no Discurso do Analista. Mas antes de falar dele, gostaríamos de discorrer um pouco sobre o Discurso Universitário, uma vez que nossa proposta se compromete com a possibilidade do Discurso do Analista instaurar uma saída para o mal-estar na contemporaneidade, o que nos outros discursos isso não se desenha.

No Discurso Universitário, o saber (S2) está na posição de agente. Porém, esse saber está fora de sua posição primeira – a posição de Outro no Discurso do Mestre. Esse saber, enquanto totalizador, tenta apreender o real, aqui posicionado no lugar do outro. O sujeito produzido nesse discurso se cola facilmente ao saber que agencia o discurso porque o S1 no lugar da verdade é potencializado como um mandamento que diz ser possível dominar o real, saber-se tudo.

Como exemplo de como esse discurso se aplica no dia-a-dia, trazemos o contexto de formação de professores. Em cursos de licenciatura, o saber (S2) se coloca como o conjunto de teorias sobre aprendizagem e metodologias de ensino que devem ser aprendidas para que, em tese, se forme o bom professor. Entretanto, nem todas as teorias e metodologias do mundo conseguem dar conta do imperativo de sempre estar atualizado com o novo, que é colocado como a solução de todos os problemas que os professores enfrentam. O professor se cola a esse saber que promete abranger por completo algo que é da ordem da relação entre sujeitos, que não pode ser apreendido por esse campo, e se engaja em cursos de formação continuada, na ilusão de que consiga dominar algo, o saber e assim, totalizar-se como professor.

Esses três discursos se apóiam no sentido. O discurso do analista, contudo, promove um descentramento, que discutiremos a seguir.

2.1. A especificidade do discurso do analista

O texto “Uma Fantasia”, Jacques-Alain Miller (2005)28 nos fala do homem desbussolado. Segundo o autor, a moral civilizada – expressão usada por Freud – dava ao homem uma bússola. Essa moral foi dissolvida, e a psicanálise não está isenta de culpa nessa dissolução. Ao contrário, tem tudo a ver com ela!

A consideração do conceito de homem desbussolado, forjado por Forbes (2005)29, gerou-nos a interrogação a respeito de como, antigamente, conseguíamos a bússola. Tentando articular esta questão com a teoria lacaniana dos quatro discursos, pensamos ser possível dizer que, antes, com a predominância do discurso de mestre como forma de laço, havia um mestre que direcionava um caminho a seguir por lugares pré-estabelecidos

Retomando a teoria dos discursos, de Lacan, Miller (2005) recorda que o discurso do analista era considerado o avesso do discurso da civilização, predominantemente marcada pelo discurso do mestre. A bússola da sociedade hipermoderna não seria mais o Pai, e sim o objeto ‘a’. A partir disso, Miller constrói o discurso hipermoderno da civilização.

O mais-de-gozar ascendeu ao lugar dominante. O objeto ‘a’, na sociedade contemporânea, impõe-se ao sujeito desbussolado, convidando-o a ultrapassar as inibições, ou seja, a gozar. Assim, o agente do discurso da civilização é o objeto ‘a’, fazendo o discurso da civilização ter a mesma estrutura do discurso do analista:

Discurso do Analista
a$
S 2   S 1

Lacan (1969-1970/1992) considerava o discurso do mestre o discurso do inconsciente. O discurso do analista era, anteriormente, o analisador do discurso do inconsciente, que era seu avesso. O discurso da civilização era o avesso da psicanálise, portanto.

Hoje, entretanto, entre o discurso da civilização e o da psicanálise não há mais uma relação de um avesso com um direito, e sim uma relação da ordem da convergência. Isso não significa, entretanto, que a civilização atual seja, de alguma forma, terapêutica. Miller (2005) ressalta que, no discurso da civilização atual, cada um dos seus quatro termos permanece disjunto. “De um lado, o mais-de-gozar comanda, o sujeito trabalha, as identificações caem substituídas pela avaliação homogênea das capacidades, enquanto o saber se ativa em mentir assim como em progredir”, afirma Miller (2005, p.10). Esses diferentes elementos estão dispersos na civilização; somente na psicanálise se ordenam em discurso.

Para Miller, a psicanálise antecipou e contribuiu para a ascensão do objeto ‘a’ ao lugar dominante na civilização. A psicanálise, inventada para responder a um mal-estar de uma civilização que inibia e recalcava o gozo, tem agora que lidar com o mal-estar de uma sociedade em que o mais-de-gozar predomina e gera conseqüências diversas: dissolução dos laços familiares, remanejamento do corpo – cirurgia plástica, anorexia –, novos sintomas que desafiam a clínica praticada anteriormente, por não apresentar um sentido, um endereçamento ao Outro que permita a sua decifração, nos moldes da primeira clínica lacaniana.

Os sintomas atuais, nos diz Miller (2005), são sintomas-gozo. Exprimem que o gozo não está no seu devido lugar. O gozo nunca é o bom gozo, afirmação com a qual concorda Éric Laurent (2006)30. Para o autor, o hedonismo contemporâneo, através de suas múltiplas variações, mostra ser impossível definir o que seria uma boa relação sexual entre os sexos, e até mesmo entre membros do mesmo sexo. O gozo nunca é aquele que se deveria ter, o que seria o bom, o último. Nenhuma norma consegue estabilizar o “empuxo a gozar”.

Esse empuxo ao gozo marca a ausência de uma relação sexual. Para Miller (2005), a inexistência da relação sexual se tornou evidente, explícita, na sociedade atual. Na sociedade pai-orientada, o significante mestre da tradição recalcava essa verdade; havia a crença em um pai que distribuía os sexos, regulando o gozo. Atualmente, o que vemos são comunidades de gozo que não querem se absorver na justiça distributiva comum.

Diante do inusitado, do vazio, da angústia que a multiplicidade de opções acarreta, a pessoa pode assumir a posição da histérica, do obsessivo, do psicótico, do perverso, mas todas terão como conseqüência a inércia e o sofrimento. Ela pode, no entanto, encarar essa angústia de frente e partir para ação.

Em vez de se colar aos significantes que vem do Outro, mesmo que esse outro já não tenha o tamanho de outrora; de se alienar ao conhecimento que não toca o mundo, que é, geralmente produzido pelo discurso universitário; de ficar se repetindo a vida toda em busca do paraíso perdido; o discurso do analista instaura esse modo de lidar com a falta possibilitando que a pessoa faça laço assumindo o incompleto.

O analista se coloca na posição desejante, daquele que vai equivocar o analisando, desgrudá-lo do sentido já posto, do conhecimento que tem de si para que novos significantes mestres sejam produzidos e resultem do saber-fazer. Nesse modo discursivo, o que une as pessoas não é o diálogo, a compreensão, mas o gozo que partilham. Por isso, o resultado é um efusivo impulso criativo porque é preciso criar sempre novas formas de renovação do gozo.

O modo de organização social que se faz por meio do discurso do analista prova que não é preciso palavras para que uma pessoa se enganche na outra. O laço prescinde do entendimento, do diálogo, da comunicação. Ele se sustenta no gozo. É o que, no fim do Seminário 11, Lacan já chamava de “novo amor” (LACAN, 1963/1964-1985, p.260)31.

O que permite então que as pessoas, imersas em um gozo próprio, criem laços? Miller (2005) nos diz que o que pode fazer mediação entre os “um-sozinho” é o amor. Um novo amor, como o define Lacan, que permite uma nova forma de laço além da linguagem. É o que Jorge Forbes (200532) chama de monólogos articulados.

Nessa nova forma de laço, há algo além da linguagem que une as pessoas. Os monólogos articulados se baseiam na não compreensão. Uma vez que se perdeu a orientação da significância, os parceiros no novo amor percebem que não dá para se apoiar mais nela. Para se estar junto, segundo o psicanalista, não é preciso se compreender um ao outro, mas permitir a articulação das diferenças. A sociedade que comporta essa relação é uma sociedade solidária, não no sentido da caridade, mas no seu sentido etimológico de solidão.

Ao suportar a diferença do outro, eu não me apoio em uma orientação vertical do tipo que dita o que pode ou não pode, mas na horizontalidade, porque somos todos semelhantes em essência, embora cada vez mais singulares no modo de demonstrá-la. Isso só é possível entre pessoas que suportam o não saber.

Lacan afirma que o amor se baseia “numa certa relação entre dois saberes inconscientes” (LACAN, 1972-73/ 1982, p.197)33. Esse vínculo ocorre numa sintonia que transcende as palavras, que toca o corpo, desestabiliza posições, mexe com a gente de um modo incompreensível e demanda uma responsabilização pela posição que assumimos.

Na vigência do discurso do analista, o laço social se faz diferentemente, como resultado das desestabilizações advindas com a globalização. Com a ausência do Édipo como ordenador, não há como se estabelecer uma matriz de significação que ordena a cadeia de significantes. A estrutura dá lugar ao não sentido, pois não se consegue estabelecer um único código que seja compartilhado por uma sociedade. É preciso que a sociedade global reinvente constantemente novos códigos – que também serão temporários – para lidar com as diferenças com que se confronta continuamente. Como sabemos que o que fica fora do sentido é do campo do real, passamos, a seguir, a discutir os registros real, simbólico e imaginário e sua posterior articulação.

3. A ARTICULAÇÃO BORROMEANA ENTRE REAL, SIMBÓLICO E IMAGINÁRIO

Ao perceber que o modelo de estrutura importado da ciência lingüística não daria conta de responder aos desafios que as novas formas de subjetivação apresentavam, Lacan começou a se interessar por figuras topológicas que pudessem captar o limite das palavras. Começou, portanto, a privilegiar o que vai para além da lógica, além do simbólico, o objeto a, que não é capturável. Percebeu que algo insiste para além da linguagem, que não responde para a decifração.

No período que ficou conhecido como “reformulação matemática”, que foi bastante intensa entre os anos de 1969 e 1972, Lacan re-elabora, então, a articulação dos três registros – real, simbólico e imaginário – apoiando-se no nó borromeano para demonstrar como se dá a enodação dos mesmos.

Lacan viu pela primeira vez a imagem do nó borromeano durante um jantar, nas armas de uma dinastia milanesa: a família Borromeu. Três círculos em foram de trevo se simbolizam uma tríplice aliança, tendo como sua especificidade o fato de que, se cada um dos anéis for retirado, os outros três ficarão livres, sem que se forme um par.

Cada um dos três círculos do nó borromeano representa umas das instâncias que compõe o aparelho psíquico: 1) o simbólico, a combinatória sem substância que organiza os significantes; 2) o imaginário, a dimensão do que se vê ou que se pensa que se vê dos objetos; e 3) o real, aquilo que, por escapar à possibilidade de recobrimento total pelos significantes, permanece na zona do inominável.

O nó borromeano, conforme articulado por Lacan no seminário 20 (Idem), é formado por três rodinhas de barbantes que se enlaçam de forma que formam, juntas um nó. Cada rodinha representa um dos registros pensados por Lacan e é uma parte autônoma, intercambiável. O nó, porém, só ocorre pela amarração da terceira rodinha, que enlaça todas num único laço. Lacan propõe o enigma: como fazer para que as rodinhas fiquem juntas de tal modo que, se uma delas for cortada, as outras fiquem livres?

É no mínimo intrigante que Lacan proponha um enigma a seus ouvintes e leitores para ilustrar o que acontece com os registros ao final de uma análise porque é exatamente o enigma do próprio desejo e de como o sujeito lida com ele que leva alguém para o divã.

A resposta do enigma proposto pelo psicanalista é que a segunda rodinha deve ser dobrada por dentro da primeira e a terceira deve amarrá-la para que se fixe essa dobra. O que faz laço entre todas e o que impede que elas façam par é exatamente a dobra. Impossível entender como se dá essa nodulação sem, ao menos visualizar a figura. O melhor seria que cada leitor tomasse um tempo para “experimentar” o nó.

Para Rabinovich34, a estrutura borromeana implica uma equiparação das três ordens, real, simbólico e imaginário, sendo que cada uma delas tem a mesma importância que as demais. Cada um dos anéis se organiza de modo diferenciado do outro. Ao mesmo tempo, esse processo permite que, depois que essa organização se dê, ela se auto-anule, pois, uma vez que são intercambiáveis, cada anel pode sempre ser o outro.

Mesmo que, neste momento de nossa argumentação, não tenhamos condição de avançar na elaboração lacaniana dos nós, é importante deixar registrado que o psicanalista não se contentou em estudar o nó a três. Retomando a questão do Nome-do Pai, no final do Seminário 22, R.S.I., Lacan (1974-1975)35 insere um quarto termo no nó borromeano: o sympthome.

O Complexo de Édipo, antes considerado a única possibilidade estruturante para o sujeito, é agora um dos Nomes-do-Pai. Lacan deduz cinco termos que enodam as três ordens, que são alguns dos Nomes-do-Pai : 1) Complexo de Édipo ; 2) Realidade psíquica ; 3) Sinthoma ; 4) Fazer-se um nome ; 5) O ego. Não nos interessa, nesse trabalho, explorar cada um desses termos, mas somente mencioná-los para, a partir disso, compreender, que na queda dos ideais paternos, os diferentes Nomes-do-Pai permitem aos sujeitos fazer suplência à falta de um Édipo. Trata-se, portanto, de encontrar outros modos de circunscrever o gozo, ou, em outras palavras, de pinçar o real.

Lacan considera o real como sendo o que não é passível de representação, o não simbolizável.

O real é sem lei e essa afirmação nos coloca de frente com um saber no real que não está à espera para ser descoberto, uma vez que o determinismo do simbólico já não se coloca como antes conforme Riolfi pontua:

Visto que o real se refere àquilo que não é passível de ser representado e, portanto, compreensível, a clínica se articula para que as decisões sejam tomadas não com base na compreensão, mas com base na relação singular que o sujeito pode estabelecer com seu desejo. (RIOLFI, 1999, p. 192)36.

Diante de tudo o que foi afirmado ao longo deste ensaio, cremos ser possível concluir, portanto, que, na contemporaneidade, o real tem o papel de protagonista o qual, em outros tempos, foi reservado ao simbólico. Essa nova configuração tende a revolucionar o que conhecemos como ciência e como arte. É nesta perspectiva revolucionária que o trabalho de Criss Angel se inscreve.

Ex-sistindo no furo simbólico, o real lacaniano é, em si, faltoso, furado. Por sua vez, a falta, no seminário VII (LACAN, 1959-1960/199937), é trabalhada a partir da noção de das Ding de Freud. Na brincadeira de seu neto com o carretel que era jogado e retornava, Freud enunciou a noção de objeto perdido da raça humana que poderia ser encontrado nos sucessivos objetos substitutos que o sujeito encontra para si nas suas relações simbólicas e nos investimentos libidinais. Nesses re-encontros com o objeto causa de desejo, há sempre algo que não se inscreve e que se perde, o que faz com que nesses re-encontros se observe sempre uma repetição de um encontro com a Coisa perdida da espécie humana, que Lacan vai denominar de “encontro faltoso com o real” (LACAN, 1964-1965/1988)38. O objeto perdido para Lacan se refere ao objeto perdido de cada sujeito, o objeto ‘a’, que primeiro é discutido como objeto de desejo e, posteriormente (LACAN, 1962-1963/2005)39, como objeto causa de desejo por ele representar aquilo que cai, que se perde na relação com o Outro e coloca o sujeito cara a cara com a falta.

Nesse sentido, das Ding está para além do princípio do prazer como aquilo que constitui a lei, como algo que se relaciona com a estrutura do desejo onde o objeto se coloca à distância, o que provoca uma falta. O sintoma, nessa perspectiva, se dá na manifestação de alguma coisa recalcada que pode ser decifrada. Para Lacan, por sua vez, o sintoma é uma letra de gozo, é uma “satisfação real”, “às avessas”, para além do princípio do prazer e vinculada à pulsão de morte (Lacan, 1969-1970/1992)40.

No seminário 10, Lacan (LACAN,1962-1963/2005) afirma que o que seduz o sujeito é o que está além da compreensão, o que o atrai é o que não é passível de ser significado. Nesse sentido, o real.

No seminário 11, Lacan (LACAN, 1964-1965/1988) rompe com a idéia da possibilidade combinatória e questiona a noção de recalcamento de Freud. Entre a causa e a conseqüência existe um abismo, o que significa que não é a história do sujeito que responde por suas determinações, mas no que falta a ele. Não importa o que o sujeito diz, mas o lugar de onde ele enuncia. A noção de estrutura, nesse momento de seu ensino, comporta o furo. Ele defende que existe algo que está para além do semblante, que em breves palavras, seria aquilo que o sujeito diz e o que afirmam sobre ele.

Nos anos 70, se volta para o real considerando-o um elemento importante da ética da psicanálise. Visto que o real se refere àquilo que não é passível de ser representado e, portanto, compreensível, a clínica se articula para que as decisões sejam tomadas não com base na compreensão, mas com base na relação singular que o sujeito pode estabelecer com seu desejo.

4. O REAL NA ARTE, UM CASO MÁGICO

O mágico norte-americano Criss Angel, cujo nome verdadeiro é Christopher Sarantakos, é músico, mágico e ilusionista. Ficou mundialmente famoso pela série de TV “Criss Angel Mindfreak” (no Brasil, “Criss Angel, o Ilusionista”), veiculado pelo canal a cabo A&E Mundo e atualmente em sua terceira temporada. Apresentou-se, também, em vários canais de televisão: CNN, FOX, ABC, MTV e Discovery Channel. Considerado por muitos o novo artista do século XXI, Criss Angel vem acumulando prêmios em sua carreira, sendo três vezes ganhador do Magician of the Year Award (2001, 2004, 2005).

Criss nos chamou atenção, inicialmente, pelo modo como quebra os parâmetros do que é esperado e conhecido no terreno da mágica. Na mágica tradicional, à qual estamos acostumados, normalmente há um espaço reservado para a mágica: o palco, onde a ilusão acontece. A platéia, já acostumada com o esquema espacial desses espetáculos, sabe que o que ocorre no palco é irreal, ilusório. A mágica tradicional, desse modo, perde cada vez mais o seu elemento de surpresa, de fascinação.

O jovem mágico subverte essa relação espacial, realizando suas performances em lugares públicos, como bares, restaurantes, parques, clubes, na presença de diversas pessoas. Essa quebra do espaço traz de volta o elemento surpresa aos espetáculos de mágica. Todo mundo espera ver uma mulher flutuando em um palco, mas ninguém espera ver um homem levitando num bar, ou no meio de um parque 41.

Podemos relacionar essa quebra do espaço com outros fenômenos culturais da sociedade hipermoderna, como o Second Life, os ARGs (Alternative Reality Games) e o cosplay, inferindo que estamos vislumbrando aí uma nova topologia, um novo modo de se orientar no mundo e no espaço físico, conforme nos disse Jorge Forbes, na Domingueira do dia 27 de maio de 200742. Essa nova topologia, está presente em diversos fenômenos culturais da sociedade hipermoderna, e marca uma dissolução da fronteira entre a realidade e a ilusão, entre a verdade e a ficção.

As mágicas de Criss Angel surpreendem os espectadores, que são tomados pela surpresa, pelo inusitado. Eles se indagam se o que viram ocorreu ou não de fato. E o mágico sabe como manipular isso, brincar com esse equívoco, atribuindo seus feitos ao poder da mente e da concentração.

A reação do público que mais nos chamou a atenção foi a surpresa, acompanhada da falta de palavras para exprimir a sensação que a mágica provocava neles. O que podemos ouvir nos vídeos são muitas interjeições, palavrões, expressões de espanto e de incredulidade. É algo que as pessoas não conseguem compreender, mas que as toca. Aponta, portanto, para o real, que se refere àquilo que é impossível de ser simbolizado. Criss aproveita-se de que o que seduz o sujeito é o que está além da compreensão. Aproveita-se de que o que atrai o público é o que não é passível de ser significado. Ou seja, o real. (LACAN, 1962-1963/200543)

Criss Angel oferece o seu próprio corpo e o corpo do outro como espetáculo, cortando e mutilando esse corpo. Acreditamos que, em suas performances, Criss está no lugar do objeto a, o que condiz com a idéia de que o discurso predominante na civilização contemporânea é o do analista, que tem como agente o objeto a, o mais-de-gozar, como vimos anteriormente. Criss se coloca na posição de objeto a, no centro onde se encontram os três anéis do nó, no lugar do não-sentido. Por este motivo, no que se segue o leitor encontrará uma montagem que fizemos sobrepondo a figura do nó borromeano à fotografia que abre o site oficial de Criss44.

Nó borromeano sobreposto à imagem do site de Criss Angel

Há na mágica de Criss Angel um excesso, um exagero que beira as raias do absurdo, do não-sentido, evocando aí o gozo e o real impossível de ser simbolizado e descrito em palavras. Esse real gera angústia, ao mesmo tempo em que nos supreende e fascina.

Junto com o excesso, sua mágica traz um despojamento, uma crueza que choca. É como se a mágica se despisse pouco a pouco do simbólico e imaginário, até revelar a nudez do real. Por meio da abolição do palco, das vestimentas tradicionalmente usadas pelos mágicos, da cartola, dos lenços, das mangas, da assistente, das caixas, espadas e outros utensílios mágicos, nos aproximamos cada vez mais do corpo, o corpo enquanto objeto a, objeto causa de desejo e ao mesmo tempo resto, que pode ser cortado e separado do eu.

Lacan nos diz que “o objeto a é algo de que o sujeito, para se constituir, se separou como órgão […] É então preciso que isso seja um objeto – primeiramente, separável – e depois, tendo alguma relação com a falta” (LACAN, 1963/1964-1985, p.101)45.
No mesmo texto, Lacan nos fala que a relação do olhar com o que queremos ver é uma relação de logro. “O sujeito se apresenta como o que ele não é e o que se dá para ver não é o que ele quer ver. É por isso que o olho pode funcionar como objeto a, quer dizer, no nível da falta […]” (LACAN, 1962-1963/2005, p. 102).

Em toda mágica, está muito presente essa relação do logro. O que o sujeito pensa ver não é o que realmente é. O que Criss Angel apresenta para ver, além disso, nunca é o esperado. Acreditamos que o corpo na mágica de Criss Angel, o corpo que ele dá a ver, está no lugar desse objeto a, desse algo separável do sujeito, que evoca a falta e, portanto, causa o desejo, fascinando e ao mesmo tempo angustiando a platéia por meio do olhar.

Em seu seminário “O sinthoma”, Lacan (1976-1977/2007)46 fala da relação de Joyce com seu corpo, que é definida como a relação que se tem com uma vestimenta, uma casca. Há aí uma possibilidade de se despojar do corpo com se este fosse uma roupa, de ter uma relação do próprio corpo como alheio. Esse corpo, despido de todo imaginário, se desprende como se fosse uma casca, restando o nada que é o objeto a.

O corpo, para a psicanálise, é revestido de imaginário e simbólico. Esse revestimento é o que separa o corpo do organismo vivo.

[…] essa separação do corpo vivo, do organismo se quiserem, é a condição da própria instauração do corpo imaginário por ação do significante, ou seja, o corpo como próprio furo do imaginário exige a existência dos outros anéis do barbante, caso contrário caberia pensar num organismo vivo e não num corpo (RABINOVICH, 2005, p.156). 47

Há, portanto, um corpo que ex-siste como real aos anéis do imaginário e do simbólico, o corpo como organismo vivo, que sustenta a partir de fora o que será o corpo imaginário e o corpo significante. “A partir dessa perspectiva o real do corpo que ex-siste é o que nos remete à angústia” ( RABINOVICH, 2005, p.157).

Na mágica de Criss Angel, o corpo vai sendo despido do imaginário, das vestimentas, até que ele mesmo se torne a única casca, a única coisa que nos separa do real angustiante. E esse corpo torna-se como uma roupa, um objeto, que vai sendo cortado para revelar o real. Enquanto o mágico tradicional tira a moeda da manga de seu casaco, Criss Angel a tira de seu próprio corpo, que faz as vezes de vestimenta em seus espetáculos.

Essa quebra do imaginário do corpo, que traz à mostra o objeto a, é correlata à quebra da especularidade, que sustenta nossa relação com o semelhante. Podemos relacionar esse efeito com o conseguido, a partir do discurso do analista, na segunda clínica lacaniana. O analista, ao usar do não-sentido, se coloca na posição do objeto a. Desse modo, equivoca o paciente, colocando o real em jogo na análise.

Jorge Forbes, em visita à Clínica-Escola do IPLA do dia 28/05/2007, nos diz que a forma mais simples de colocar o real é cortar o simbólico e o imaginário. Isso acontece quando o analista se impede a compreensão do que o paciente diz, uma vez que o simbólico e o imaginário sobrevivem na especularidade.

Acreditamos que a mágica de Criss Angel, por meio do não-sentido, do inesperado, provoca essa quebra da especularidade no espectador. Traz, portanto, o real à tona, tocando o corpo, apreendendo o gozo que está além das palavras. A quebra do imaginário especular, portanto, traz à tona um real, que se manifesta na forma de angústia.

A angústia do encontro com o real é o que permite ao sujeito descolar-se dos significantes do Outro e abrir espaço para o novo, para a invenção. Essa
invenção do novo é o que sustenta a mágica de Criss Angel. Por mais que ele conheça a história da magia e preste homenagem aos grandes mágicos do passado, sua arte traz o toque do inusitado.

Referências bibliográficas:

1 Trabalho referente ao segundo bimestre de 2007 do Curso de Formação em Psicanálise no Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA, desenvolvido sob a orientação da tutora Claudia Riolfi.

2 LACAN, Jacques. O seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

3 http://www.youtube.com/watch?v=jwSSDHeqduY

4 http://www.youtube.com/watch?v=r0BukAy_dko

5 http://www.youtube.com/watch?v=aC_oeEEWAwY

6 http://www.youtube.com/watch?v=6krJeBHCZV8

7 FREUD, Sigmund. (1930). O mal estar na civilização. In: __________. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Freud, vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1988.

8 FREUD, Sigmund. (1856-1939). 2.ed. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud; com comentários e notas de James Strachey, em colaboração com Anna Freud; assistido por Alix Strachey e Alan Tyson; traduzido do alemão e do inglês sob a direção geral de Jayme Salomão. Rio de janeiro: Imago, 1988.

9 __________. (1927). O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

10 LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sebastién. Os tempos hipermodernos. São Paulo: Barcarola, 2004.

11 LAURENT, Éric e MILLER, Jacques-Allan. O Outro que não existe e seus comitês de ética. Curinga. Belo Horizonte, n.12, set.1998, pp.4-18.

12 Idem.

13 FORBES, Jorge. Geração mutante. In: ___________. Você quer o que deseja? Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2003, pp.24-28.

14 LIPOVETSKY, Gilles e CHARLES, Sébastien. Os tempos hipermodernos . São Paulo: Barcarola, 2004.

15 LIPOVETSKY, Gilles. O crepúsculo do dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos. Lisboa: Dom Quixote, 1994.

16 LAURENT, Éric. “Um Novo Amor ao Pai”. In: Opção Lacaniana, n. 46, 2006, p. 28.

17 Mas há sempre quem se ache nesse lugar. Nesse sentido, é possível notar um aumento estrondoso de uma doutrinação fanática das seitas e das religiões, das vozes saudosistas que proclamam por todos os ventos o quanto a escola está sem saída porque perdeu o rumo (quem dera tivesse perdido mesmo!), das lamentações de que a família não é mais a mesma, de que há um remedinho para tudo que sentimos…

18 FORBES, Jorge. A honra e o sentido da vida. In: ___________. Você quer o que deseja? Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2003, pp.75-90.

19 ____________ . Aula dada no IPLA em 14/05/2007.

20 Cf. LACAN, Jacques.(1972-73). O Seminário livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982 e LACAN, Jacques. (1969-70). O seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

21 SAUSSURE, Ferdinand. 22.ed. Curso de lingüística geral. São Paulo : Cultrix, 2000.

22 AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. New York: Oxford University Press, 1962.

23 LACAN, Jacques.(1972-73). O Seminário livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.

24 LACAN, Jacques. (1969-70). O seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

25 LACAN, Jacques.(1969-1970). O seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992.

26 ___________. O seminário livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

27 RIOLFI, Claudia Rosa. O discurso que sustenta a prática pedagógica: formação de professor de língua materna. 1999. 361f. Tese (Doutorado em Lingüística) – IEL, UNICAMP, Campinas, 1999.

28 MILLER, Jacques-Allain. Uma fantasia. In: Opção Lacaniana. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 42, 2005, p. 7-18.

29 FORBES, Jorge A psicanálise do homem desbussolado – as reações ao futuro e o seu tratamento. Opção Lacaniana. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise, n. 42, 2005, p. 30-33.

30 LAURENT, Éric. Um Novo Amor ao Pai. In: Opção Lacaniana. São Paulo: Escola Brasileira de Psicanálise n. 46, 2006, p.20-29.

31 LACAN. Jacques. (1963/1964). O seminário livro 11 : os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.

32 FORBES. Jorge. Mundo mutante, século XXI: as identidades em crise. In: ___________, REALE JUNIOR, Miguel, FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. (orgs) A invenção do futuro: um debate sobre a pós-modernidade e a hipermodernidade. São Paulo: 2005, pp.3-12.

33 LACAN, Jacques.(1972/1973). O Seminário livro 20: mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.

34 RABINOVICH, Diana. A angústia e o desejo do Outro. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2005.

35 LACAN, Jacques. (1974/1975). O seminário livro 22: R.S.I. inédito.

36 RIOLFI, Claudia Rosa. O discurso que sustenta a prática pedagógica: formação de professor de língua materna. 1999. 361f. Tese (Doutorado em Lingüística) – IEL, UNICAMP, Campinas, 1999.

37 LACAN, Jacques. (1959-1960). O seminário livro 7 . A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

38 LACAN, Jacques. (1964-1965/1988). O seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1988.

39 __________ . (1962-1963). O seminário livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

40 ___________. (1969-70). O seminário livro 17: o avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992

41 Vídeo disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=EfqHKn_aVWA

42 Essa palestra foi tema do seguinte artigo: BERTOLINI, Eduardo. Caça às garrafas perdidas: na falta de bússola, serve um ARG? In: http://www.psicanaliselacaniana.com/mural/resenhas/cacagarrafasperdidas.html, acesso em 20/06/2007.

43 LACAN, Jacques. (1962-1963). O seminário 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

44 http://www.crissangel.com/

45 LACAN, Jacques. O seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise . Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1985.

46 __________. O seminário livro 23: o sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007

47 RABINOVICH, Diana. A angústia e o desejo do Outro. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2005.

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