Dorothee Rüdiger
Para nos situar
Estamos em 1954. Jacques Lacan profere seu primeiro seminário no hospital psiquiátrico de Saint Anne de Paris, quando, debatendo a questão da resistência, convida o filósofo Jean Hyppolite a apresentar sua leitura do texto Die Verneinung de Sigmund Freud.
Jean Hyppolite, nascido em 1907 e falecido em 1968, é um filósofo francês contemporâneo de Jacques Lacan. Conhecedor da língua e da filosofia alemã, Hyppolite é especialista na leitura e na interpretação da obra de Georg Friedrich Wilhelm Hegel, quem viveu e atuou na Prússia na época das Guerras Napoleônicas, na virada do século XVIII para o século XIX. Jean Hyppolite, tal como Jacques Lacan, fazia parte do círculo de intelectuais franceses junto com Jean Paul Sarte e Simone de Beauvoir. Dentre seus discípulos estão os filósofos pós-modernos Gilles Deleuze e Michel Foucault.
Em sua leitura, Jean Hyppolite destaca três aspectos do ensaio de Sigmund Freud: a análise freudiana dos exemplos clínicos citados no ensaio e que denotam a denegação do conteúdo inconsciente; as consequências da denegação para a questão da dissociação entre o intelectual e o afetivo; e a “origem do juízo e do próprio pensamento … captado por intermédio da denegação”.
A análise da atitude concreta
Sigmund Freud dá, nos primeiros dois parágrafos de seu ensaio, diversos exemplos clínicos da denegação e de sua interpretação. “O Senhor agora vai pensar, que eu gostaria de dizer algo ofensivo, mas, realmente, não é essa minha intenção!” E Freud interpreta: “Entendemos que isso seja o rechaço por projeção de uma ideia que surgiu nesse momento.” Em outras palavras, se na vida cotidiana alguém disser “não quero lhe ofender, mas …” pode ter certeza, que a pessoa quer mesmo é ofender. Para Jean Hyppolite Freud tem a ousadia de generalizar o exemplo dando transparência para a linguagem do dia a dia. Mais ainda, para o filósofo está aqui toda problemática filosófica da denegação como origem da inteligência, do juízo, da razão, temáticas tão caras à filosofia. Pelo exemplo dado por Sigmund Freud, a razão reprime o afeto denegando-o. A questão tratada por Jacques Lacan de a “verdade mentirosa” transparece aqui. A “verdade dos fatos” só pode ser dita passando por cima do que é negado, recalcado, reprimido, ou seja, o afeto. A razão pode se desenvolver sacrificando o afeto.
Sigmund Freud dá outros exemplos clínicos de denegação, dentre outros, o de um manejo clínico, quando apresenta uma pergunta comum feita pelo psicanalista, uma verdadeira “cilada”: “ O que você acha ser o mais inverossímil na situação? O que pensa, que naquele momento tenha sido para você a possibilidade mais distante?” A resposta do analisando aponta para Freud justamente para aquilo que é mais provável. Em outras palavras, diz Hyppolite, “Vou lhe dizer o que não sou, mas atenção, é precisamente isso que sou.” É assim que Freud apresenta sua compreensão daquilo que o filósofo alemão chama de Aufhebung.
É curioso, que nesse momento do seminário de Jacques Lacan o próprio conferencista dá um exemplo de denegação, quando não quer explicar a Aufhebung, dizendo a Lacan e ao público, que tem tantos que sabem melhor do que ele o que significa o termo. Ao psicanalista Lacan isso não escapa e, no ato, diz: “Não vem não. A quem caberia explicar o termo, senão a você?” Com essa chamada à responsabilidade Hyppolite passa a explicar o termo a partir do ensaio de Freud: “A denegação é uma Aufhebung do recalque, mas nem por isso é uma aceitação do recalcado”.
Permitam-me um parêntese. O que, afinal, é Aufhebung? Suspensão? Sublimação? Anulação? Abolição? O termo está ligado à questão de um dos sentidos que se pode atribuir à dialética como “síntese de opostos”. Lembrando as lições sobre a filosofia do Estado de Hegel, podemos citar o exemplo da história do Estado moderno. A modernidade (aliás um conceito atribuído ao próprio Hegel) nasce em oposição ao Ancien Régime, ao absolutismo. Há, de um lado, um regime político ainda marcado por representar grupos sociais estanques com direitos e obrigações próprias, restrições ao comércio e a servidão de boa parte da população. Em oposição ao Ancien Régime, se fazem ouvir as reivindicações de liberdade, da subjetividade e do agir espontâneo do comércio. O “espírito do tempo”, o Zeitgeist moderno (representando aquilo que as pessoas discutem, desejam, reivindicam) pressiona por não se ver realizado na situação. Está em oposição. Procura a Aufhebung, isto é, o fim das tensões, a anulação do conflito, ou seja, uma situação em que as ideias se conciliam com a realidade numa nova ordem. Essa nova ordem, no entanto, por ser ordem, vai contrastar com o exercício da liberdade, sua oposição. O conflito acaba, a dialética não.
O que tudo isso tem a ver com Sigmund Freud? A dialética pode se aplicar às situações clínicas citadas por Freud (“Não quero ofender”, “Não é a mãe”, “Nem me passou pela cabeça … “) . Nessas situações há uma anulação de um conflito inconsciente recalcado. Mas o recalcado persiste. Pode surgir do inconsciente e ser aceito sob a condição da denegação: “Eis que não sou” revela o que, inconscientemente, sou. Ou, lembrando um exemplo de negação citada por Jorge Forbes, “te odeio” é bom responder por “também te amo”.
Como isso é possível?
A dissociação entre o intelectual e o afetivo
Chegamos ao segundo ponto no texto de Sigmund Freud ressaltado por Jean Hyppolite, ou seja, o da dissociação entre o intelecto e o afeto denotado pela denegação. A tese de Freud não é só relevante para a psicanálise, como também para a filosofia. Pensamos aqui em, por exemplo, em René Descartes, quando diz “penso logo existo” ou em Immanuel Kant para quem o uso da “razão” possibilita o exercício da liberdade. A descoberta de Sigmund Freud revoluciona profundamente a filosofia, quando constata que o intelectual não se separa do afetivo. Mais ainda, o intelectual, embora seja uma Aufhebung, uma suspensão dos conflitos inconciliáveis que habitam o inconsciente, não é capaz de dominar o inconsciente com seus afetos. É a capacidade da denegação que gera a inteligência. “Sim” ou “não”(ou o “fort” e o “da”, para lembrarmos da brincadeira inventada pelo neto de Freud para dar conta da ausência da mamãe) são fundamentais para a construção da capacidade de pensar.
Pois, saber afirmar e denegar, saber dialetizar, encontrar e aceitar contradições é a capacidade que os dotados de razão possuem. Essa capacidade os distingue de certos psicóticos que, incapazes de dialetizar, encontram satisfação em denegar tudo, em outras palavras, de não aceitar “o mundo como ele é”. A separação ente o intelectual e o afetivo pressupõe a capacidade de recalcar aquilo que atrapalha o uso da razão. Numa psicanálise não se suspende o recalque. Apenas se admite o conteúdo recalcado, embora em forma de negação. Assim, por exemplo, a afirmação “detesto meu pai” é uma declaração de amor. Às avessas, o amor pode ser admitido, mesmo que o recalque do amor incestuoso continue. Seria monstruoso demais admiti-lo.
Já a Bejahung, a afirmação intelectual, é uma “negação da negação”. Não é um mero exercício intelectual, mas contém a postura de aceitar Eros, o afeto e de literalmente abraçar alguém ou algo que a vida possa trazer. Por outro lado, por detrás da denegação, da Verneinung, está a tentativa de expulsar um afeto recalcado, está a destruição, a atitude de hostilidade ao mundo.
Resta a questão, como se adquire a capacidade de afirmar ou denegar.
A origem do juízo e do próprio pensamento
Sigmund Freud distingue dois tipos de juízos: o juízo de atribuição e o juízo de existência, sendo o juízo de atribuição “dizer ou desdizer uma propriedade” e o de existência “declarar ou contestar a existência de algo na realidade”. Jean Hyppolite diz que para Freud a origem dessa capacidade do intelecto é “mítica”, quer dizer não há como dizer com precisão qual é o momento em que, na primeira infância, nasce o intelecto. O juízo aparece, quando a criança percebe, que há “dentro” e “fora” do corpo, quando descobre, que dá para engolir ou cuspir um alimento. Ela ingere o que é bom, gostoso, saboroso, agradável. Denega e expulsa o que julga ruim. Aqui nasce a distinção entre “eu” e o “outro”. A princípio o “fora”, o “outro”, o “estranho”, é ruim. A distinção primitiva entre amigos e inimigos, entre inclusão e exclusão, entre patrício e estrangeiro tem sua origem aqui. Vai custar um esforço intelectual incomum de aceitar o estranho, incluindo aqui a própria sexualidade, para Freud sempre estranha. Mas, vamos deixar esse debate para outra hora …
Ligado ao juízo de atribuição e sendo sua progressão está o juízo de existência, ou seja, a capacidade de decidir, se dá para reencontrar o objeto bom ou ruim na realidade. “O que está em pauta aqui é a gênese do externo e do interno”. Isso é importante. Die Bejahung, o “dizer sim”, a aceitação de um objeto que dá para encontrar na realidade “substitui” o Eros e permite a “unificação” com o mundo. Daí, podemos acrescentar, a importância na psicanálise de se chegar ao que Friedrich Nietzsche chama de amor fati, de aceitar as circunstâncias que a vida reserva e fazer delas algo criativo. Por outro lado, a denegação, die Verneinung, é consequência da pulsão de colocar para fora, de destruir, de Tânatos.
Devemos então evitar a denegação?
De jeito nenhum! A questão do juízo vai além. Afirmação e denegação são “atitudes de simbolicidade explícita” ou, em outras palavras, são as bases do pensamento. Na leitura de Jean Hyppolite do texto de Sigmund Freud, a denegação nos dá liberdade. Podendo denegar, tornamo-nos “independentes das pulsões e da coação do princípio do prazer”. Em outras palavras, para “ser gente” temos que ter a capacidade de deixar de ser escravos de nossas pulsões.
Isso não quer dizer, que o inconsciente com suas pulsões deixe de existir ou que haja uma possibilidade numa análise de “enxugar o inconsciente” pela ação consciente do ego e, com isso, resolver uma vez por todas os conflitos nele presentes. No inconsciente “não há não”, há, sim, a pressão das pulsões. Resumindo com Jean Hyppolite, a possibilidade de dizer “não” permite ao ego reconhecer que há um inconsciente, o reino das pulsões Eros e Tânatos. A capacidade de denegar nos serve para manter o recalque e com isso, como diria Sigmund Freud, “os cães do inferno” latindo no devido lugar.
São Paulo, 7 de setembro de 2021
Dorothee Rüdiger é psicanalista e coordenadora do Curso Online do IPLA