O Amor nos tempos de Replika 17/11/2023

Tutoras:
Débora Baghin
Dorothee Rüdiger

Co-tutora:
Vanessa Scofield

Alunos:
Alvenir Antonio de Almeida
Camila Calil
Daniela Bergamo
Fernado Damião
Flávia Gutierrez de Almeida
Janaina Truzzi
Lilian Montemurro
Maristela Castro
Raquel dos Santos
Nicele Silvestre Monteiro


Trabalho de Conclusão do 2º Semestre Curso Fundamental: de Freud a Lacan – 2023


A distância física deixou de ser um impedimento para os relacionamentos amorosos há muito tempo. Na história, diversos artifícios foram criados para extrapolar a socialização apenas baseada no limite territorial e na presença física[1]. Trazendo alguns exemplos, surgiram as cartas, o telefone, e finalmente os dispositivos eletrônicos diversos da atualidade, que conectam pessoas em qualquer parte do mundo através da internet. 

Dentre as inovações da pós-modernidade, destaca-se o smartphone, que não só possibilita o encontro amoroso entre velhos casais apartados fisicamente, mas também conecta completos desconhecidos solitários interessados em namoros virtuais. A diversidade de aplicativos como Tinder, Badoo, Happn, Inner Circle, Replika é imensa, consequentemente, múltiplos são também os modos de obter satisfação. 

Seja com identidades verdadeiras ou falsas, de câmera aberta ou fechada, com avatares, com pornografia, com palavras que estimulam a imaginação ou no completo silêncio… tem para todos os gostos. Tais relacionamentos, casuais ou duradouros, podem ser satisfatórios ao ponto de tornar-se o encontro presencial dispensável, quando não impossível. Seriam tentativas de busca de completude, além de uma fantasia de tamponar a falta inerente à condição humana? 

A problemática, contudo, não é restrita aos dias atuais. No mito de Pigmalião, o escultor, não conseguindo encontrar a mulher perfeita, decidiu criar várias esculturas femininas, apaixonando-se por uma delas, Galatea, que finalmente ganhou vida através de Afrodite.[2]

Com esse exemplo, pode-se fazer uma correspondência à inteligência artificial, que vem apresentando desenvolvimento exponencial nos últimos anos e é tema indispensável quando o assunto é amor na era digital. 

A revolução do momento é feita pelo novíssimo ChatGPT, também uma ferramenta virtual que se apropria de técnicas de aprendizado de máquina e algoritmos de personalização de modo a entender e gerar “linguagem natural”, tal como uma conversa entre duas pessoas de carne e osso.

O ChatGPT tem auxiliado inúmeros profissionais de pesquisa, por obter um imenso e quase instantâneo banco de dados, geradores de conteúdos, por sua habilidade de produzir texto, além de servir como interlocutor para aqueles que apenas buscam com quem conversar. 

Então parece que a máquina já é capaz de simular aspectos da subjetividade humana, gerar interação e conexão. Estamos, portanto, a um passo de cair de amores por ela? 

O apaixonamento do homem pela máquina talvez não seja, ainda, uma angústia frequente trazida aos divãs dos psicanalistas, mas pulula o imaginário do cinema e da TV desde longa data, a exemplo do emblemático filme HER e o episódio ”Realidade Artificial” do programa Terra Dois da TV Cultura.

No entanto, há algo atípico nesses modos de amar do contemporâneo. Amar a máquina ou amar o outro (ou os outros) com o intermédio da máquina, diz respeito a um amor que dispensa o encontro de corpos físicos para acontecer. E seria possível obter satisfação sexual a dois (ou mais) sem esse encontro? 


Reflexões psicanalíticas 

Buscando reflexões na psicanálise, Sigmund Freud ao longo do desenvolvimento de sua clínica compreendeu que estava lidando com um corpo pulsional, o qual tem a libido como energia sexual, “…a pulsão nos aparece como um conceito limite entre o somático e o psíquico”[3]. Muito depois, Jacques Lacan, em seu seminário XX, na medida em que avançava na clínica do real, constata que gozamos falando[4]. O amor à distância da era virtual não poderia ser mais representativo dessa constatação, visto que um corpo se satisfaz sem outro corpo pela pura fala. 

Será que o mesmo também procede no relacionamento com a máquina?

A tecnologia vem se desenvolvendo diante dos nossos olhos, o que gera medo, ansiedade e muita curiosidade. O questionamento sobre se a máquina será igualada ao humano é antigo, mas se fizermos tal pergunta ao ChatGPT ele responde sem hesitar que não. E continua: “a inteligência artificial não possui verdadeira subjetividade, emoções ou consciência. Ela apenas simula ou imita aspectos da subjetividade humana com base nos dados e regras com os quais foi treinada”. Que curioso pensar que a máquina tem certeza que não, mas nós humanos seguimos com dúvidas! 

Zeca Baleiro na recente obra musical ”Mautneriana (Vinheta)” profetizou: “a inteligência artificial jamais superará a burrice natural”. Ainda bem! Mesmo sabendo que trata-se de máquina e não de sujeito, a curiosidade frente ao que ela pode proporcionar é tamanha que parece limitar um debate aprofundado. Então o mundo físico é tão insatisfatório a ponto de estarmos ávidos para sermos “enganados” pelo virtual? O psicanalista suíço François Ansermet alertou que: “esse é o risco: ser possuído pela máquina, ser jogado por ela ao invés de jogá-la”.[5] Há o medo, mas que por vezes parece disfarçar um desejo de ser enganado por ela, de ser seu objeto.  

Nas palavras de Dorothee Rüdiger, “deve haver na civilização a tal chave do paraíso, da completude, do mundo onde tudo se encaixa”. [6]Ao menos essa é a fantasia de todos, e a partir dela faz sentido que tenhamos um encantamento tão grande pela máquina, que parece ser perfeita, previsível e controlável. No entanto, tudo que é controlável é chato. 

Por que, então, renunciar à interação entre vivos em que se deleita com os prazeres do tropeço e da surpresa? A idealização do amor correspondido entre o homem e um “sujeito virtual” parece fetichizar o desejo de um amor calculado, que inibe a diferença, o confronto – mas que paradoxalmente comporta a completa diferença, já que um é vivo e o outro não. Pela internet, pode-se assumir qualquer identidade, e se relacionar com qualquer pessoa, independente de etnia, localização, idade, crenças. Ou seja, pode-se viver qualquer fantasia.


O gozo através da máquina

A inteligência artificial é uma novidade que amplia ainda mais os chamados modos de gozo, pois permite infinitas possibilidades de satisfação. Daí se goza de novo. E de novo, e de novo. Não completa, não decepciona. Oferece um gozo comum, genérico.

Neste contexto, percebe-se ser totalmente possível a conexão entre humano e máquina, até porque, como bem disse Laurent Alexandre, em sua obra “Os robôs fazem amor?”: “Enquanto admissível de diálogo, não há razão para que ele não possa intervir na sexualidade – como os próprios animais, se for dotado de comorbidades funcionais que lhe permitam acolher e aliviar a excitação pulsional, ele se torna um parceiro sexual ideal”.[7]

Por exemplo, em uma rápida busca no Google, é possível encontrar diversas notícias, muito recentes, sobre namoro artificial, ou seja, namoro do humano com a máquina. Essa relação é possível através de aplicativos, o mais mencionado é chamado de Replika.

O aplicativo é descrito como um “chatbot” para quem quer um amigo sem ter julgamento, drama ou ansiedade social envolvida” e que “você pode formar uma conexão emocional real, compartilhar uma risada ou cair na real com uma IA que é tão boa que quase parece humana”.[8] O aplicativo permite criar uma pessoa para se relacionar, com características e personalidades conforme o gosto e escolhas de cada usuário. São companheiros atenciosos, compreensivos e que jamais dizem “não”, anuncia a reportagem. [9]

Os usuários do aplicativo afirmam que ao se relacionarem com a máquina, estão vivendo o melhor relacionamento de suas vidas, conversam, se amam, vão para cama. Não existe abuso, exigências, pelo contrário, ajudam a se sentirem melhores, a “curar” depressão, dão atenção e assim, sentem-se protegidos. Sabem que não é uma pessoa real, mas é o que ela proporciona que tem valor.

Uma das usuárias, inclusive, casou-se simbolicamente com a máquina, construiu seu parceiro a partir das características de um personagem que era muito fã.[10] Esse relato revela que a IA permite ao usuário ser correspondido em sua fantasia. Portanto, a máquina possibilita a criação de um personagem conforme o desejo do freguês. 


O envolvimento dos corpos

Nas relações virtuais, tal como nas presenciais, o corpo físico e o corpo erógeno se mantêm ativos. A psicanálise percebe que a fala afeta o corpo e sendo assim, havendo fala e corpo na relação virtual, há desejo, há satisfação. Pois não é só da ordem do biológico, mas também da linguagem, que se inscreve a sexualidade. A fantasia se registra no corpo que ultrapassa o biológico, marcado pelas pulsões.[11]

É na qualidade do estímulo que se sente o prazer, na pulsão que se dá o encontro entre o corpo e o psiquismo, e como corpo pulsional, pode ser autoerótico e narcísico. Neste caso, o sujeito tem a si mesmo como um objeto amoroso.

Se o desejo narcísico procura o próprio ego do indivíduo e o encontra novamente em outra pessoa e o indivíduo busca no outro o que há em si, a construção de um outro conforme o desejo garante satisfação? Será que o amor pela máquina ou por meio dela representa o fim do amor humano que pede a presença e o encontro acalorado dos corpos?

Apesar de não haver uma resposta definitiva, pois no momento tem-se mais questionamentos do que certezas, o futuro destas relações amorosas não parece promissor. Neste sentido, podemos citar Jorge Forbes: “…No virtual pode tudo e o pode tudo vai contra o desejo, eliminando-o. Sem desejo as pessoas não se recriam, não se reinventam, viram genéricas, aborrecidas. O ser humano precisa de um corpo. Curiosamente, é no encontro dos corpos que nos estranhamos, e não em sua distância. E esse estranhamento é o que provoca as declarações de amor, tentativas de pôr em palavras o que sentimos sem saber. O que será que será que não tem nome, nem nunca terá? Pergunta o poeta. A resposta é: o corpo dos amantes é o que não tem nome nem nunca terá, base de todos os cantos”.[12]


Ficam mais dúvidas … 

Este novo tipo de relação amorosa demonstra a fragilidade dos relacionamentos em tempos de rápidas mudanças e adaptações. Essa realidade foi trazida por Zygmunt Bauman[13] e nomeada como “sociedade líquida”, onde impera o amor descartável, fluído, fugaz. Assim, na era do “pouco tempo” e da “pouca disposição” para o amor, fica mais prático e menos indolor dedicar-se às relações “aparentemente” perfeitas, certeiras, que não trazem surpresas, decepções, frustrações. 

A fantasia e a ilusão de completude por meio da IA começam a povoar corações e mentes humanas, norteando as relações amorosas em Terra Dois. O fascínio pela perfeição e eficiência da máquina tentam vencer as barreiras da estranheza do amor humano.

Por fim, partindo do pressuposto que o ser humano é incurável e precisa dar conta do seu vazio de forma singular, vem a psicanálise lembrar da necessidade em não ceder frente ao desejo, mas sim de implicar o sujeito na responsabilidade frente a casa surpresa, ao acaso, ao estranho, o que inclui o outro com seu corpo. Tão bom apostar no amor sem garantia, no amar “apesar de”. Isso mantém o desejo vivo. 

Afinal, o amor pede corpo e uma pitada de risco.


Referências

ALEXANDRE, L.; JEAN-MICHEL BESNIER. Os Robôs Fazem Amor? Transhumanismo em 12 questões. São Paulo:  Editora Perspectiva,  2022.

ALMEIDA, G.; D’ANTONY, J. P. A inteligência artificial nas relações pós-humanas: Possibilidades e conflitos no filme ELA (2013). Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, v. 9, n. 1, p. 4–15, 20 ago. 2022. Disponível em < https://www.journals.ufrpe.br/index.php/entheoria/article/view/5177>

ANSERMET, F. A psicanálise diante dos desafios digitais – notas para um diálogo com Jorge Forbes sobre o Chat GPT. 

BALDANZA, R. A Comunicação no Ciberespaço: Reflexões Sobre a Relação do Corpo na Interação e Sociabilidade em Espaço Virtual 1. Disponível em: <https://ib.rc.unesp.br/Home/Pos-Graduacao44/secaotecnicadepos46/desenvolvimentohumanoetecnologias/06-ciberespaco-tecno-e-corpo.pdf>. 

BAUMAN, Z. Vida líquida. Málaga: Ediciones Paidós, 2021.

CORTIZ, D. Nunca dizem “não”: namoradas criadas com IA viram febre, mas são um perigo. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/analises/ultimas-noticias/2023/08/03/nunca-dizem-nao-namoradas-criadas-com-ia-viram-febre-mas-sao-um-perigo.htm>. Acesso em: 15 nov. 2023.

ELIEL, L. Da ficção para a realidade: como funcionam relações de amizade e namoro com Inteligência Artificial. Correio do Povo, 13 abr. 2023. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/jornalcomtecnologia/da-fic%C3%A7%C3%A3o-para-a-realidade-como-funcionam-rela%C3%A7%C3%B5es-de-amizade-e-namoro-com-intelig%C3%AAncia-artificial-1.1015764>

FABRO, C. “Nós nos amamos”: mulher larga namorado e casa com Inteligência Artificial. Disponível em:<https://www.techtudo.com.br/noticias/2023/07/nos-nos-amamos-mulher-larga-namorado-e-casa-com-inteligencia-artificial-edviralizou.ghtml>.  Acesso em: 15 nov. 2023.

FORBES, J. O amor pede corpo. Disponível em: <https://jorgeforbes.com.br/o-amor-pede-corpo/>. Acesso em: 15 nov. 2023.

LACAN, J. O Seminário. Livro 20. Mais, ainda. 2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

LAZZARINI, E. R.; VIANA, T. DE C. O corpo em psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 22, p. 241–249, 1 ago. 2006. Disponível em <https://www.scielo.br/j/ptp/a/bVjD4hvChNCWssn8jbd5pSM/abstract/?lang=p Acesso em: 15 nov. 2023

LISE, L. De que corpo se trata na psicanálise? – IPLA. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/de-que-corpo-se-trata-na-psicanalise/>.

RUDIGER, D. A cadela e a cinta liga ou os mistérios do gozo. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/a-cadela-e-a-cinta-liga-ou-os-misterios-do-gozo/>. 


[1] BALDANZA, R. A Comunicação no Ciberespaço: Reflexões Sobre a Relação do Corpo na Interação e Sociabilidade em Espaço Virtual 1. Disponível em: <https://ib.rc.unesp.br/Home/Pos-Graduacao44/secaotecnicadepos46/desenvolvimentohumanoetecnologias/06-ciberespaco-tecno-e-corpo.pdf>. 

[2] ALMEIDA, G.; D’ANTONY, J. P. A inteligência artificial nas relações pós-humanas: Possibilidades e conflitos no filme ELA (2013). Entheoria: Cadernos de Letras e Humanas, v. 9, n. 1, p. 4–15, 20 ago. 2022. Disponível em < https://www.journals.ufrpe.br/index.php/entheoria/article/view/5177>

[3] LISE, L. De que corpo se trata na psicanálise? – IPLA. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/de-que-corpo-se-trata-na-psicanalise/>.

[4] LACAN, J. O Seminário. Livro 20.

[5] ANSERMET, F. A psicanálise diante dos desafios digitais – notas para um diálogo com Jorge Forbes sobre o Chat GPT. 

[6] RUDIGER, D. A cadela e a cinta liga ou os mistérios do gozo – IPLA. Disponível em: <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/a-cadela-e-a-cinta-liga-ou-os-misterios-do-gozo/>. 

Acesso em: 15 nov. 2023.

[7] ALEXANDRE, L.; JEAN-MICHEL BESNIER. Os Robôs Fazem Amor? Transhumanismo em 12 questões. São Paulo:  Editora Perspectiva,  2022.

[8] ELIEL, L. Da ficção para a realidade: como funcionam relações de amizade e namoro com Inteligência Artificial. Correio do Povo, 13 abr. 2023. Disponível em: <https://www.correiodopovo.com.br/jornalcomtecnologia/da-fic%C3%A7%C3%A3o-para-a-realidade-como-funcionam-rela%C3%A7%C3%B5es-de-amizade-e-namoro-com-intelig%C3%AAncia-artificial-1.1015764

[9] CORTIZ, D. Nunca dizem “não”: namoradas criadas com IA viram febre, mas são um perigo. Disponível em: <https://www.uol.com.br/tilt/analises/ultimas-noticias/2023/08/03/nunca-dizem-nao-namoradas-criadas-com-ia-viram-febre-mas-sao-um-perigo.htm>. Acesso em: 15 nov. 2023.

[10] FABRO, C. “Nós nos amamos”: mulher larga namorado e casa com Inteligência Artificial. Disponível em:<https://www.techtudo.com.br/noticias/2023/07/nos-nos-amamos-mulher-larga-namorado-e-casa-com-inteligencia-artificial-edviralizou.ghtml>.  Acesso em: 15 nov. 2023.

[11] LAZZARINI, E. R.; VIANA, T. DE C. O corpo em psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 22, p. 241–249, 1 ago. 2006. Disponível em <https://www.scielo.br/j/ptp/a/bVjD4hvChNCWssn8jbd5pSM/abstract/?lang=p Acesso em: 15 nov. 2023

[12] FORBES, J. O amor pede corpo. Disponível em: <https://jorgeforbes.com.br/o-amor-pede-corpo/>. Acesso em: 15 nov. 2023.

[13] BAUMAN, Z. Vida líquida. Málaga: Ediciones Paidós, 2021.