Fernanda Castro Bulle
Homem e mulher
Claro e escuro
Bom e ruim
Se o mundo fosse dual
O que seria de mim?
A sexualidade para Freud ocupa um lugar central em sua teoria, sendo que na espécie humana ela é algo extremamente diferente de outras espécies animais. Em Três ensaios sobre a sexualidade (1905) Freud fará uma distinção entre pulsão (Trieb) e instinto (Instinkt). Se nas diversas espécies animais a sexualidade é decorrente de um mecanismo instintual, biológico e geneticamente herdado, no homem a sexualidade se manifesta de forma errática e se apresenta como disposição psíquica universal, distanciando-se de uma abordagem puramente biológica, anatômica e genital.
Por que então Freud nos afirma “A anatomia é o destino”?
Freud disse essa frase para marcar a influência das diferenças anatômicas entre os sexos na nossa constituição subjetiva. Segundo o autor, o Complexo de Édipo e de castração se organizam de maneiras distintas nos dois sexos, tanto pelas diferenças anatômicas quanto pelas representações ligadas a essas diferenças. O menino, por medo de ser castrado, recalca seu amor pela mãe para escolher outro objeto do mesmo sexo e se identifica com o pai. A menina, quando se vê detentora de um órgão “castrado”, desliga-se da mãe e deseja ter um filho do pai, desejo esse correspondente ao desejo de possuir o falo.
Segundo BONFIM e VIDAL (2009) Freud identifica a função fálica como a organizadora da sexualidade feminina na medida em que será pelo desejo de ter um falo que se processará o acesso à feminilidade. Tem-se a impressão de que ele reduz o desejo da mulher ao desejo de ser mãe, como única via de acesso ao falo.
Embora Freud estivesse ciente de que a anatomia não respondesse a todas as diferenças entre masculinidade e feminilidade (Freud, 1933, p.266), ele não fez distinção entre sexualidade anatômica e social ou psíquica. Mais tarde seus sucessores vão cunhar o termo específico – gênero – para dar conta dessa diferença. Segundo Roudinesco (2017), o gênero é uma construção ideológica, ao passo que o sexo permanece uma realidade anatômica incontornável. Desse ponto de vista, a identidade sexual é construída, como bem afirmou Simone de Beauvoir (1949) “não se nasce mulher, torna-se mulher”.
É lamentável, no entanto, que a história avance a passos lentos e claudicantes. A sociedade é cada vez menos pai-orientada, o desejo da mulher não se resume a ser mãe e muitas vezes nem o é, e, ainda assim, persiste uma grande desvalorização da feminilidade. Não precisamos ir muito longe para encontrarmos discursos que insistem em enquadrar a mulher numa função puramente biológica e de rainha do domus. Ainda hoje, para muitos, ser mulher requer uma legenda, não é algo “natural” seguir o seu desejo singular. Infelizmente, natural é ter a anatomia como destino.
Fernanda Castro Bulle é tradutora e aluna do Curso Fundamental do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA
Referências
BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Ed Nova Fronteira S.A. 2ed, 2009/1949.
BONFIM, F.G. & VIDAL, P.E.V. A feminilidade na psicanálise: a controvérsia quanto à primazia do falo. Fractal: Revista de Psicologia, v.21-n.3, p.539-548, 2009.
FREUD, S. Três ensaios sobre a sexualidade. In: Freud S. Obras Completas. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 1996/1905 v. 06.
FREUD, S. A Feminilidade. In: Freud S. Obras Completas. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 1996/1933 v. 18.
ROUDINESCO, E. Dicionário amoroso da psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2019/2017.