Hélio Teixeira Dias Netto
Na letra nos inscrevemos. A partir da palavra nos inserimos no mundo, fazemos trocas com o outro, somos ditos e dizemos, apaziguamos a angústia, buscamos dar conta do estranho. Tenho um nome, sou alguma coisa, filho de alguém, moro em tal lugar, amo isto. São definições, contratos da sociedade, pelos quais tentamos estabelecer nossas proporções. Nosso corpo é o símbolo do que somos. A matéria é o que há de primeiro no simbólico do universo, é a letra que escreve o mundo.
A individuação só é possível através do simbólico. O corpo e a relação com as coisas e os outros são fundadores do sujeito. Esse corpo, estudado por Freud, muito além das ciências médicas, mostrou-se regido também pela palavra. O sintoma se apresentou na clínica hipnótica submetendo-se à fala. Logo em seguida, a associação livre de palavras foi o que deu vazão ao inconsciente, à angústia e à percepção dos sintomas. Os sonhos, produções inconscientes, se revelam por códigos, trocam os significantes. Suas representações comumente são fruto de deslocamento e condensação de sentido.
Ao reler a teoria freudiana, Lacan retorna aos casos clássicos publicados, e evidencia algo presente desde o princípio da psicanálise sob uma nova lógica – a lógica da linguagem. Em seu primeiro ensino, Lacan reposiciona o ato freudiano, até então já enviesado pelos seguidores na rigidez das condutas e na política de fortalecimento do ego. Ilumina a prática primordial pelo entendimento de um inconsciente cuja estrutura é compreendida segundo o estatuto da letra. Devolve ao que é dito a importância devida. É da arbitrariedade do símbolo que provém o potencial de mudança.
As figuras de linguagem são postas como análogas ao funcionamento inconsciente. Lacan vê o sintoma como substituto do desejo. A economia psíquica, movida pela satisfação pulsional, exige um complemento ao espaço deixado incessantemente aberto entre o desejo e as imposições do recalque. A metáfora, no signo linguístico e na estrutura do inconsciente, é aquilo que diz de algo, mas não o é, ocupando ainda assim seu lugar – não sem custos. A angústia, portanto, funda e justifica a escuta analítica.
O guia para a primeira clínica lacaniana repousava na estabilidade das instituições, na hierarquização das relações e na sociedade pai-orientada. No entanto, a psicanálise só se faz a seu tempo. Vivemos um laço social horizontalizado, ampliado pelas tecnologias, com conexões fluidas. Novas perspectivas de família, múltiplos norteadores culturais. O sujeito que se apresenta na clínica hoje, com frequência, tem se deparado com aquilo que não pode ou não precisa ser nomeado. Há que se responsabilizar por sua posição singular no mundo. O Real insiste em nos tirar a palavra que por vezes estava na ponta da língua.
[1] Trabalho do 3º bimestre 2021 do Curso Intermediário O Sintoma de Freud a Lacan – O SINTOMA NA PRIMEIRA CLÍNICA DE JACQUES LACAN
Hélio Teixeira Dias Netto é Médico Psiquiatra e participante do Corpo de Formação em Psicanálise do IPLA.