Trabalho de final de ano desenvolvido pelos alunos do Curso Intermediário De Freud a Lacan, como parte da preparação para a Conversação Clínica do IPLA, 2022, que tem como tema: “A Clínica Psicanalítica dos sintomas pós-pandemia”.
Redatores: Talyta Carvalho e Lais Helena Soubhia
XIX
Se eu soubesse
Teu nome verdadeiro
Te tomaria
Úmida, tênue
E então descansarias.
Se sussurrares
Teu nome secreto
Nos meus caminhos
Entre a vida e o sono
Te prometo, morte,
A vida de um poeta. A minha:
Palavras vivas, fogo, fonte.
Se me tocares,
Amantíssima, branda
Como fui tocada pelos homens
Ao invés de Morte
Te chamo Poesia
Fogo, Fonte, Palavra viva
Sorte.
Hilda Hilst [i]
Refletir sobre a Medicina quase sempre conduz a refletir também sobre a finitude. Boa parte do nascimento e desenvolvimento desta ciência se deu na direção de uma busca: se não pela imortalidade, ao menos por adiar o máximo possível a chegada da morte. Esta busca talvez esteja entre as mais democraticamente observáveis da experiência humana, ultrapassa limitações culturais, geracionais, temporais. Não é surpresa que a primeira obra literária de nossa história, a Epopéia de Gilgamesh, narre o mito de um herói que ao se deparar com o luto de um ente querido (seu melhor amigo), recusa-se a aceitar o horror daquele desaparecimento, e parte em uma jornada para a conquista da imortalidade[ii]. Será uma aventura que terminará em fracasso, mas que nem por isso não traga descobertas interessantes. Entre elas, Luc Ferry destaca a descoberta da morte com amor, que ao contrário da morte sem amor (velha conhecida do homem primevo), coloca para quem fica a prova do luto [iii]. A Pandemia confrontou a Medicina com esta morte marcada pelo amor. Até então, poderíamos descrever a relação da Medicina com a finitude como a de uma fuga pela via da “pseudo-consciência”, tal como Freud a descreve em seu texto “Nossa atitude para com a morte”: em situações não perturbadas por uma Guerra (como o era o contexto que dá origem ao texto) ou uma Pandemia, por exemplo, estamos prontos a afirmar que a morte é natural e inevitável; mas na realidade, nos comportamos como se fosse o contrário e a negamos, eliminamos a morte da vida [iv]. A razão desta postura, nos ilumina Freud, é justamente que o inconsciente não reconhece negação, e que por isso, ninguém pode crer na própria morte. No inconsciente de cada um de nós, está uma crença na própria imortalidade.[v] Um dos recursos que empregamos para fazer a manutenção deste engodo, continua ele, é uma fixação na causa da morte, como se fosse algo fortuito que pudéssemos dominar ao conhecer e não uma necessidade[vi]. Neste recorte, a medicina se fez a senhora da casa: especialmente em sua configuração metodológica moderna, tratou de objetivar o corpo, assegurando assim que real seria somente o que pode ser mensurado porque, em última instância, o que se quer é assegurar a previsibilidade da natureza. Esta formulação que acabamos de descrever, é justamente a de Heidegger quando da reflexão sobre o problema do corpo não mais apreendido como fenômeno que é[vii]. A morte é natural, todo médico o sabe e o diz, mas ouçamos com atenção a Heidegger aqui: para a medicina (enquanto ciência moderna) a natureza e tudo que pode ser dito “natural” deve ser previsível. De igual modo, Lacan – leitor atento de Heidegger – também é claro em sua crítica ao cientificismo da medicina: em sua forma atual, reduz sua arte a uma farmacêutica e o médico, acovardado diante da responsabilidade de seu ofício, reduziu-se a um operador mecânico de tratamentos protocolados.[viii] A verdade desta crítica feita por Lacan em 1966 se fez evidente na pandemia: o corpo vai além do somático, e o viés cientificista da medicina não pode tratá-lo satisfatoriamente.
Talvez, o primeiro impacto da pandemia na medicina tenha sido a impossibilidade de não constatar esta crise. Junto deste e relacionado com ele, veio também o impacto do encontro com outra morte, aquela imprevisível, veio o horror obsceno da finitude que não deixa escapar do horizonte que ela é a nossa finitude. Por que razão, senão esta, tantos médicos entrevistados enfatizaram a dificuldade em lidar com as mortes? A compreensão do senso comum vê o médico como o profissional que “está acostumado” a lidar com a morte, certo? Mas como se lida com esta morte que embora possa ser mensurada (6,58 milhões de mortos por COVID19) não pode ser capturada em métrica alguma? E mais uma vez, a reflexão heideggeriana nos fornece uma pista: a morte com amor também é luto, e o luto não pode ser mensurado, afinal[ix].
Para Freud, não se pode negar o impacto terrível do “grande número de mortes simultâneas” na perturbação de nossa postura costumeira em relação à morte[x]. A impotência diante dos números que não paravam de subir, diante do reconhecimento que nada funcionava e quando funcionava não se sabia exatamente por que em uma pessoa funcionava e em outra não: a medicina viu, nos valendo das expressões de Jorge Forbes, que o sonho tranquilizador da comprovação cientifica de tudo, da medicina baseada em evidências, fazia água[xi]. As “evidências” apontavam para um lado (“idosos são o grupo de risco”; “é grave para quem tem comorbidades”) e a realidade da U.T.I. insistia que não: só se podia encarar que não havia dados e previsões, somente incertezas. Cada paciente era um caso único, todos eram grupo de risco. O próprio vírus dizia ‘sim’ à singularidade de cada um, e nesta singularidade ele atuava. Mas não se trata aqui de dar um tom mórbido para nossa discussão, bem pelo contrário. Assim como na poesia de Hilst, na abertura deste texto, o encontro com a morte pode ser também uma sorte. Uma possibilidade seria, como Luc Ferry aponta, sair do eixo de fixação em tudo que se perdeu e olhar o que está surgindo por um prisma de otimismo criativo.[xii] Muitos entrevistados de diversas áreas médicas relatam testemunhar mudanças nos pacientes e neles próprios. Do lado do paciente há mais angústia, medo generalizado de “perder”, ansiedade, aumento de peso. Do lado do médico também: uma crise com o próprio discurso, com a sua própria posição. A paralisia diante da não permanência que caracteriza este tango entre a vida e a morte é uma das respostas possíveis, mas há respostas melhores. É sobre isto que Freud desenvolve uma reflexão belíssima em seu texto “Sobre a transitoriedade”: o transitório, quando se faz consciente, nos aterroriza porque antecipamos o luto, a morte inevitável de tudo que amamos e apreciamos. Há revolta nisto, sentimos que não podemos mais apreciar plenamente tudo que carrega esta marca de transitoriedade. Mas, Freud conclui, a transitoriedade própria de nossa condição humana não subtrai o valor de experiência alguma, aliás, faz o inverso disso: é na transitoriedade mesma que repousa qualquer possibilidade de conferir valor ao que quer que seja. O seu valor “é o valor da escassez no tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição.”[xiii] Aqui, Freud, Heidegger e Ferry se encontram na conclusão de que a aceitação da morte é que abre caminho para o bem viver. É somente por não sermos imortais que somos impelidos a viver e a criar. A pandemia trouxe à tona ‘o buraco de nossa incompletude’ e nossa necessidade de “harmonia com o intangível”, como já disse Forbes[xiv]. Trouxe a urgência de reconhecer, como na música de Lenine, que dá título a este texto, que a “vida, tão rara” – ou transitória como diria Freud, convida-nos a uma relação inventiva com este buraco. Talvez pudéssemos responder a este convite com Guimarães Rosa quando diz que “aprender a viver é que é o viver, mesmo” [xv]. Afinal, “o correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é a coragem.”[xvi]
Alunos do Curso Intermediário 2022:
Alexandro Luis França
Aline Palma Nalla
Cejana de Siqueira Freitas
Gabriel Guerra Rivera
Isabela Saldanha
Laís Helena Bittencourt R. Soubhia
Larissa Roriz Câmara Guimarães
Ludmylla Figueiredo Souza de Queiroz
Maria Helena Rachid
Marlon de Oliveira Franco
Maurício da Silva Seabra
Pricila de Fatima Alves
Susanne Dorothea Walker
Talyta Cristina de Carvalho
[i] HILST, Hilda. Da morte. Odes mínimas. São Paulo: Globo, 2003. p. 47
[ii] FERRY, Luc. A revolução do amor. São Paulo: Editora Objetiva. 2012
[iii] Idem
[iv] FREUD, Sigmund. “Nossa atitude para com a morte” in Reflexões para os tempos de Guerra e Morte. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1982. Volume XIV, p. 299.
[v] Idem.p.309
[vi] Idem, p. 300
[vii] HEIDEGGER, Martim. Seminários de Zollikon. São Paulo: Editora Vozes, 2009
[viii] LACAN, Jacques. “O lugar da psicanálise na medicina” (1966) in Opção Lacaniana n.32, dezembro de 2001
[ix] Idem
[x] FREUD, Sigmund. Op.cit. p. 301
[xi] FORBES, Jorge. “A medicina para além das evidências” in Medicina em TerraDois. São Paulo: Manole, 2022. p. 115
[xii] FERRY, LUC. A revolução transumanista. São Paulo: Editora Manole, 2018.
[xiii] FREUD, Sigmund. “Sobre a transitoriedade” in Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1982. Volume XIV, p. 317
[xiv] FORBES, Jorge. “O novo a.normal” in Medicina em TerraDois. São Paulo: Manole, 2022. p. 19
[xv] ROSA, Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1976. p. 443
[xvi] Idem, p. 241