Por Angélica Maria Moreira dos Santos
“Mas tudo
veio a ser,
não existem fatos eternos:
assim como não existem verdades absolutas.”
Nietzsche.
Pretendo apresentar um esboço de trabalho para ser desenvolvido no próximo ano.
1) Trata-se de capturar a melhor interpretação do aforismo de Lacan, enunciado na Proposição de 09 de outubro de 1967 e que, como outros, causa até hoje tantas polêmicas.
O aforismo é: “O analista se autoriza de si mesmo”. Numa tradução mais rigorosa seria: “O analista não se autoriza senão de si mesmo”.
2) Inserir essa afirmação, o pensamento de Lacan e a psicanálise lacaniana no contexto da chamada pós-modernidade, tentando decifrar alguns enigmas que lhe são próprias, suas características e, principalmente, sua novidade.
3) Identificar os mais influentes pensadores que promoveram a ruptura com a cultura moderna e os que dão sustentação às questões mais incisivas nos dias de hoje. 1. O Aforismo
Falar de psicanálise já é usual há décadas. Mas do analista, o que dizer?
“Este ser enigmático, silencioso, que nada fala de si! Quando o procuramos para uma análise, ele está ali… e até responde com uma voz. Tudo bem… mas a questão que se coloca é: o que autoriza alguém a exercer a prática da psicanálise? Como é que se “faz” um analista?”4
Muitos se perguntam a respeito da chamada formação do analista.
Freud preocupava-se muito com o futuro da sua descoberta pelas resistências que suas idéias despertavam em todos os segmentos sociais daquela época.
Com rigor, sem perder a flexibilidade necessária ao exercício da psicanálise, conseguiu transmitir aos seus analisandos e a outros que se interessavam por seus textos publicados a acuidade e aptidão para reconhecer os mecanismos psíquicos do recalque e entre tantas exigências, a experiência de uma análise pessoal. Lacan, retomando o texto primordial de Freud “Para além do princípio do prazer”, desenvolve a categoria de “sujeito do inconsciente”, como sujeito dividido, ser marcado por uma falta radical, por um não-saber.
A psicanálise é intransmissível sem uma análise pessoal. Nem o percurso de uma análise pessoal garante o advento de um analista. Nos seus seminários, Lacan desloca a questão da formação do analista para o viés de uma ética que é própria ao discurso analítico: o Desejo do Analista.
Daí o aforismo: O analista se autoriza de Si Mesmo.
Nesse enunciado temos duas palavras para interpretar:
1) Autoriza e 2) Si Mesmo.
1) Autorizar
• Tem a
raiz auctor/autor = causa de; inventor; aquele de que algo ou alguém nasce ou
procede.
• Tem o prefixo auto =por si mesmo ou de si mesmo
2) De Si Mesmo
•
Diferente de eu mesmo
• Em Heidegger, si mesmo é deixar-se ser; tornar-se ser em sua existência
concreta no mundo.
• Dasein= eis aí ser
ser situado no mundo (site)
O dasein é o lugar da abertura, do sentido do ser.
O horizonte do eis aí ser é o mundo.
Em outro contexto, Lacan nos anos 70 introduz no seu enunciado uma referência aparentemente ambígua e o aforismo perde sua força: “O analista se autoriza de si mesmo e de alguns outros”. Apontando não que o analista é autorizado e sim que essa autorização não é autista, pois passa pelo outro, pela cultura, criando laços sociais dentro das escolas de psicanálise, lugar de garantia da formação analítica.
A garantia na escola, por sua vez, se funda no princípio: “o analista se autoriza de si mesmo”. A palavra garantia – me parece – não significa autorizar, mas reconhecer. Uma coisa é alguém se autorizar como analista, outra coisa é ele ser reconhecido como tal e, outra coisa ainda, é sua formação ser reconhecida dentro da escola, que além da função de reconhecer, tem a função de validar uma formação.
Esse assunto tem gerado controvérsias e merece um longo estudo dos textos de Freud e de Lacan, levantando os dispositivos usados antes e previstos para hoje, numa prospecção do que poderá surgir como a melhor forma de superar as questões que são freqüentemente debatidas pelos analistas membros de escola, e de outros analistas de escola ou somente analistas que se autorizaram de si mesmos sem passar pelas exigências do passe.
Outros dispositivos como o da supervisão e os de provas de evidências na condução de uma análise que tenha produzido um analista, revelam a complexidade do assunto e a necessidade de aprofundar os estudos pertinentes ao tema.
2. A pós-modernidade
O segundo item enunciado na introdução é para mim quase um delírio, no mínimo excessivamente pretensioso, para as minhas condições atuais como iniciante de um curso de formação em psicanálise.
Entretanto, é objeto do meu desejo tocar, mesmo que de leve, “en passant”, no universo da pós-modernidade, tentando desvelar algumas de suas mais eloqüentes características e, de longe, contemplar os novos caminhos abertos na densa floresta da cultura ocidental formada ao longo de séculos de uso e abuso da ratio, da razão dialética fechada em seus mistérios gozosos onde a vida, a existência e a angústia humanas não encontraram acolhimento nem escuta.
Entre os precursores da pós-modernidade, cito Nietzsche e Heidegger.
Nietzsche
Seus principais temas, ao nomeá-los, falam por si mesmos. São eles: “Morte de Deus”, “Niilismo”, “Tresvaloração de todos os valores”, “vontade de potência”, “além-do-homem”, “eterno retorno”. O “eterno retorno” é tido como o extremo modo de dissolução do Telos (fim). Diante de tal tensão teleológica, muito mais que identificar Nietzsche como mero destruidor da razão, ele é situado como promotor da abertura, própria da praticidade e evasividade da vida. 1
Heidegger
Segundo Habermas, Heidegger é o continuador do Niilismo Nietzscheano. Vê em Nietzsche a consumação da metafísica ocidental e a indicação de um novo começo.
Para Lyotard, Heidegger proclama a morte de todo sistema (meta narrações).
Para Vattimo, Heidegger é o precursor da filosofia pós-moderna e do pensamento e ontologia frágeis (abertas) e não fortes (fechadas).7
Escolhi um comentário de Cristina Machado de Oliveira sobre o Dasein para reforçar o tema tratado aqui.
“O ponto de partida necessário de toda tentativa por determinar, em seu rigor, o ser do ente em geral, é o homem como ser-aí ou Dasein, pios, de todos os entes, o homem é o único ao qual é funcionalmente exigida uma solução para o problema do existir. Assim, criando uma terminologia própria, Heidegger denomina o modo de ser do homem, nossa existência, com a palavra Dasein, cujo sentido é ser-aí, estar aí, histórico e situado, e por isso já é sempre um algo forjado nesta ou naquela situação. É o acontecimento que tem a forma do salto, do imediato, não tendo nenhum sujeito ou causa que sustente isso por trás. Nesse sentido ele é lançado, jogado no mundo, e por isso o vivente sempre já se fez, pois existe a co-pertinência entre homem e mundo, por isso não entendemos se o homem fez o mundo ou vice-versa, pois a junção disso é o próprio salto. E esse ser-no-mundo é o modo fundamental do homem, já que o ente nele mesmo é uma possibilidade de ser no mundo antes de todo e qualquer eu, porem já sempre situado e imerso no jogo sujeito/objeto, pois realidade se faz realidade neste jogo.”5
Jacques Lacan, inserido nessa cultura, recebe a influência tanto dos que lhe antecederam como precursores da pós-modernidade, quanto influiu junto com seus mais brilhantes amigos, alunos e analisandos de sua época para consolidar, estruturar e impulsionar as rupturas advindas da “crise da linguagem” e do “niilismo filosófico”, entre outros clarões. A proposta foi uma “abertura” peculiar do pensamento e da reflexão propriamente filosófica, com o distanciamento dos supostos fundamentos seguros, desenvolvidos pelo fulgor da ratio.
Nessa abertura dos paradigmas do pensar, Lacan constrói sua novidade. A construção da cadeia dos significantes a partir de Saussure; o objeto a; a elaboração dos quatro discursos: do Mestre, do Histérico, do Universitário, do Analista; a segunda clínica: Real, Simbólico, Imaginário; a importância da singularidade. Uma obra extraordinária, original, apresentada numa linguagem surpreendente, aforismática, feita para ser ouvida e decifrada.
Lacan é
um homem do seu tempo, um legítimo pensador pós-moderno. Resgatando os pilares
dos ensinamentos de Freud, “Lacan pôs o futuro na Psicanálise”2 e nos legou uma
clínica que nos possibilita, a partir do nosso desejo, inventar o nosso próprio
futuro.
Características da Pós-Modernidade
• Caráter
estruturalmente móvel e progressivo, sem fundamento.
• Interpretativo do Saber humano.
• A diferença é o apanágio da pós-modernidade e sua exaltação, ao contrário do
Iluminismo, propicia a “abertura” do pensamento.
• Inquietante abertura.
• Supera a metafísica mediante o Dasein e o Evento.
• O dasein é o lugar da abertura, da iluminação, do sentido do ser.
• Evento não é um destino fatal ou determinismo. É o caminhar em direção da
estrela.
• Passagem do ser ao acontecer.
• O Individualismo e a Globalização – ( ver “A invenção do futuro” –editora
Manole)
CONCLUSÃO
Este pequeno esboço de trabalho consistiu em apresentar indicações referentes a um tema que sempre provocou em mim um fascinante interesse desde os meus primeiros contatos com o IPLA e com o módulo do Projeto Análise.
O aforismo de Lacan aqui abordado ressoa em mim e mantém vivo o meu dinamismo nas idas e vindas, percorrendo a distância que separa minha Minas Gerais e São Paulo, num vai e vem semanal para realizar, com entusiasmo, um outro percurso, o analítico, acrescido de uma formação teórica e de uma experiência na clínica-escola. Além disso, uma agradável convivência com professores e colegas, hoje amigos e amigas.
Ao meu analista Jorge Forbes, o meu reconhecimento. Sempre presente, como o Real, pondo em evidência o meu desejo e a minha singularidade, leva-me sempre a constatar que meu desejo não se ausenta, mas se sustenta, se manifesta para que eu o descubra e possa inventar o meu caminho e o meu caminhar.
Isto é
ser lacaniano.
Isto é ser pós-moderno.
Referências
1)Arché e Telos – Niilismo filosófico e crise da linguagem em Fr. Nietzsche e M. Heidegger – Ibraim Vitor de Oliveira
2)Artigo:
Jacques Lacan, o Analista do Futuro – Jorge Forbes
3)Artigo: A Presença Do Analista – Jorge Forbes
(http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=57)
4) O analista e suas formações – José Nazar.
(http://www.estadosgerais.org/gruposvirtuais/josenazar-o_analista_suas_formacoes.htm)
5)
Heidegger – Identidade e Diferença.-Cristina Machado de Oliveira
(http://www.filosofiavirtual.pro.br)
6)Anotações pessoais de aulas no IPLA e no Projeto Análise .
7)
Anotações pessoais de palestras e consultas com
Pedro Paulo Christovam dos Santos .
*O tema da Globalização não foi mencionado nesse esboço de trabalho. Sua importância na abordagem da pós – modernidade exige uma séria discussão como a que se realizou em Ilhabela, registrado no livro “A Invenção do Futuro”- um debate sobre a pós – modernidade e a hipermodernidade, organizado por Jorge Forbes, Miguel Reale Júnior e Tercio Sampaio Ferraz Júnior. Com a participação do filósofo Gilles Lipovetsky – Editora Manole .
A simplicidade dessa comunicação não suporta uma proposta tão ousada.
Fica aqui o registro de minha atenção e de meu interesse crescente para participar de futuras conversações sobre a invenção criativa de um novo laço social no processo de globalização pós – moderno.