Tutores:
Hélio Teixeira Dias Netto
Liége Selma Lise
Alunos:
Adir Ulisses de Abreu
Antonio Carlos Nisoli Pereira da Silva
Claudia Fernanda Beserra
Juliana Antunes Braga
Candida Schmitt
Gabriela Kern
Grace Burchardt
Marcos Borges de Moura Campos Filho
Moacir Ferreira da Silva Junior
Patrícia Costa de Andrade
Rosana Soares Wercher
Verlu Castellano Jacob
Trabalho de Conclusão do 2º Semestre Curso Fundamental: de Freud a Lacan – 2023
Freud, no texto “Uma dificuldade da psicanálise” de 1917, chama para si a responsabilidade pelo que nomeia como o terceiro golpe narcísico à humanidade. Identifica o primeiro como aquele apresentado por Copérnico em sua teoria heliocêntrica, em cujo modelo cosmológico a Terra não ocupa a posição de centro do universo. O segundo, ocorre com a teoria de Darwin da evolução das espécies, subtraindo do homem sua aparente superioridade em relação aos outros animais, dizendo, portanto, não ser este moldado à imagem e semelhança de Deus. A terceira ferida narcísica foi imputada por Sigmund Freud com a descoberta do inconsciente e o descentramento da razão. Segundo Freud, “o Eu não é senhor em sua própria casa” (FREUD, 2010).
O advento e a exponencial evolução da Inteligência Artificial (I.A.) estão promovendo uma das maiores metamorfoses experimentadas pela humanidade. Fenômeno do qual não há possibilidade de escapar, pois seus efeitos tornam-se condição posta à aqueles que vivem no mundo globalizado. Diante dos inúmeros impactos provocados pela I.A., um dos mais sensíveis e importantes será a interação cada vez mais íntima e intensa entre o homem e a máquina e seus efeitos sobre a subjetividade.
A ficção científica do século XX se transformou em realidade no século XXI. À admiração e fascinação somam-se o medo e o estranhamento. Serão os homens ultrapassados pelas máquinas algorítmicas?
A I.A. tornou-se a maior representante do que é conhecido como a “Terceira Revolução Industrial” (FORBES; FERRY, 2018), a saber, a NBIC, sigla que nomeia respectivamente nanotecnologias, biotecnologias, informática e cognitivismo. Seria a I.A. a “quarta ferida narcísica da humanidade”?
Uma importante questão muito atual refere-se à possibilidade do desenvolvimento da chamada I.A. Forte e seus efeitos sobre a humanidade. Segundo Jorge Forbes e Luc Ferry:
(…) quanto aos avanços tecnológicos, especialmente quanto à Inteligência Artificial, há a Inteligência Artificial Fraca e a Forte. A fraca faz muita coisa, mas não tem condição de pensar em si mesma, ou seja, ela não tem a capacidade que os humanos têm de se pôr à distância de si próprio. (…) Ela trata bilhões de dados, em tempo real, mas não pensa, não tem consciência de si (…) e é capaz de resolver problemas específicos, por exemplo, aquela com a qual funcionam Airbnb ou Uber. A Inteligência Artificial forte seria no fundo um cérebro de silicone, uma máquina que teria (…) a capacidade de tomar decisões, que teria emoções, (…) como o ódio e amor, ciúme, medo e… consciência de si. (…) O dia que houver uma IA forte, uma nova raça existirá e será dominante (FORBES; FERRY, 2018).
Frente a tal possibilidade, três grupos da comunidade científica se posicionam em relação à interação entre máquina e ser humano. São eles: a corrente biodefensora, a pós-humanista e a transumanista. A corrente biodefensora, liderada por Francis Fukuyama e Michael Sandel, advoga pela regulação das pesquisas tecnológicas devido aos riscos que essas apresentam para a humanidade, embora seja difícil fazer com que outros países, como China e Coréia do Norte, respeitem essas limitações. A corrente pós-humanista, representada por Ray Kurzweil e Peter Diamandis, acredita que as máquinas irão superar os humanos, criando uma raça imortal sem limitações biológicas. Já a corrente transumanista, incluindo Luc Ferry e Jorge Forbes, argumenta que os humanos nunca serão ultrapassados e que a chave está na complementaridade entre humanos e I.A. (FORBES, 2019).
Para além do ChatGPT, a tecnologia atual permite manipular nossa própria imagem, deixando-nos mais velhos, mais novos, ou completamente diferentes, irreconhecíveis. Conseguimos nos movimentar no tempo, com um simulador, no corpo imaginário. Ficamos presos a nostalgias e a futuros inexistentes, e surgem questões: Eu sou minha imagem, minha voz, minhas informações? Aquilo que é vendido para as corporações? O humano na interface com a I.A. terá uma identidade híbrida? O feitiço virou contra o feiticeiro, a criatividade humana será ultrapassada/substituída pela I.A.?
Nesse contexto, o objetivo deste ensaio é destacar e contribuir para a reflexão sobre alguns dos impactos que a I.A. pode ter na subjetividade e na criatividade humana. Esses são temas de grande relevância, estudados pela Psicanálise, cujos estudos pioneiros podem ser atribuídos ao médico e psicanalista brasileiro Jorge Forbes.
No âmbito das relações de trabalho houve mudanças vertiginosas. A disputa não é mais pelos meios de produção, que serão automatizados, mas sim pela informação. Qualquer máquina pode ser automatizada, basta uma lista de regras a ser cumprida para que consigam otimizar o trabalho planejado. Tentativa de eliminar o poder decisório do sujeito, delegando decisões, na ilusão de que a máquina irá melhor decidir, por ser imparcial?
Na esfera da subjetividade humana, acentuam-se ainda mais as peculiaridades de cada um, a singularidade, antítese do padrão decorrente dos algoritmos. Na contramão da Psicologia positiva, que sugere fórmulas genéricas para tamponar a angústia, a Psicanálise convida a responsabilizar-se sobre este ponto estranho, que “sou eu”, é inventar uma solução e uma forma de articular-se no mundo (FORBES, 2012, p. 167).
Uma das grandes contribuições da Psicanálise, no que se refere à inteligência humana, foi imortalizada na célebre obra freudiana: “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” de 1905. Nesta obra Freud destaca a complexidade das interações entre curiosidade infantil, sexualidade e a inteligência, esta diretamente ligada à pulsão de saber (FREUD, 1986, p. 183). A inteligência humana está, portanto, imbricada à ação do inconsciente, do qual é responsável por demandar uma ruptura em relação ao que é ordenado e calculável.
O conceito freudiano de inconsciente veio a promover uma mudança paradigmática, introduzindo na história do homem a ideia de divisão subjetiva e, consequentemente, de perda da noção de unidade do sujeito. A Psicanálise interroga o racionalismo cartesiano e a ideia do eu como centro do sujeito. Lacan, invertendo o cogito, conclui: “eu não sou lá onde sou joguete de meu pensamento; penso naquilo que sou lá onde não penso pensar” (LACAN, 1998).
A I.A. é expressão de um dos aspectos da inteligência humana, a racionalidade baseada no cálculo. Atentemos para o significado latino de razão, ratio, cujo significado é cálculo. Ora, comportamentos padronizados são aqueles submetidos a cálculos, enquanto aquilo que foge a essa caracterização seria não suscetível a tal matematização. O algoritmo segundo o Dicionário Oxford, pode ser definido como “sequência finita de regras, raciocínios ou operações que, aplicadas a um número finito de dados, permite solucionar classes semelhantes de problemas” (OXFORD, 2023), ou no campo da ciência da computação como “conjunto das regras e procedimentos lógicos perfeitamente definidos que levam à solução de um problema em um número finito de etapas” (OXFORD, 2023). Em ambas, nota-se o estabelecimento de um padrão, que pressupõe homogeneização de soluções a demandas semelhantes. Essa abordagem, visando ao estabelecimento de resoluções preestabelecidas tem recebido simpatia de grande parte da comunidade científica nas últimas décadas, sendo a “Medicina baseada em evidências” um grande representante. Mais recentemente, o advento das tecnologias trouxe uma nova perspectiva à medicina, uma vez que, com a capacidade maior de armazenamento de dados e de seu processamento, associados a descobertas na área da genética, pode-se almejar um tratamento mais individualizado.
Portanto, é evidente que a interação homem–máquina, por meio da I.A., presente em diversos meios digitais, transforma e impacta na subjetividade humana. A I.A. constitui atualmente uma das maiores expressões do potencial criativo humano, e paradoxalmente poderia levar o homem a exercitar cada vez menos sua criatividade.
Jorge Forbes destaca em sua série “TerraDois”, na TV Cultura, no episódio “Realidade Artificial” que:
A Inteligência Artificial fascina, em parte, porque as pessoas não querem ter dúvidas na vida, não querem sentir-se angustiadas. Querem que a máquina resolva imparcialmente suas questões. Elaboração esta que nos remete a uma busca pela maneira correta, completa, de ser. Mas se assim fosse, onde estaria a singularidade? O ser “completo” deixaria de sentir, pois a incompletude é o que dá sentido à vida. Se a imperfeição acaba, o amor, o desejo, a poesia também acabam. Sem desejo as pessoas não se recriam, não se reinventam, viram genéricas, aborrecidas (FORBES, 2017).
Para Jorge Forbes, na psicanálise a dimensão do desejo diz de algo singular a cada pessoa. O desejo é expressão de uma falta na representação de mim mesmo, motor da criatividade (LISE, 2020).
A criatividade surge do desejo, razão pela qual é um ponto importante e que merece destaque, pois defende a premissa de que a I.A. jamais suplantará a criatividade humana e isso se deve ao fato de a máquina não ser um ser desejante.
A criação da vacina contra a COVID-19 é exemplo de complementaridade entre o trabalho humano e da I.A., mas destaca-se o componente humano, de tomada de decisão pela sua criação, pela priorização, pela responsabilização pelos resultados. A partir do que constrói Jorge Forbes em sua conferência introdutória ao evento Sábados no IPLA “O Futuro da Medicina é a Psicanálise?”, podemos inferir que a ciência se afirma por meios objetivos, mas se justifica por meios subjetivos.
Frente à sideração que a I.A. nos coloca, é importante não se pautar pela “Ética do Medo”. Posicionar-se de maneira a não delegar para à máquina aquilo que pede uma resposta criativa e original. O que a Psicanálise nos propõe é investirmos em um novo renascimento – da arte, da poesia, da singularidade, do que somos únicos em produzir.
Segundo Jorge Forbes, a I.A. já supera e seguirá superando o humano, entretanto, apenas naquilo que é genérico ou padronizado. A singularidade e a criatividade ou, ainda, o ato criativo não são capturáveis pelo algoritmo. Cabe ao sujeito se responsabilizar a partir da Ética da Psicanálise no que se refere às suas escolhas, pela forma como fará uso da I.A.
Tendo como embasamento o aforismo de Jorge Forbes: “Atualmente podemos mais do que queremos”, e diante da ampla gama de possibilidades positivas e negativas que a I.A. permite, a humanidade encontra-se diante de uma espécie de encruzilhada, que obrigatoriamente implicará na necessidade de cada um se posicionar, se reinventar e se responsabilizar. É fundamental compreendermos que essa implicação responsável somente será possível com o exercício da criatividade.
Forbes destaca que:
Fazer-se tolo é o avesso de se fazer de esperto, de tudo conhecer e ter sua ação garantida por esse conhecimento. Fazer-se tolo de um Real corresponde à diminuição da esperança de tudo saber ante as escolhas ou decisões e, em decorrência, leva ao aumento da aposta. Essa atitude exige dois compromissos éticos fundamentais: Invenção e Responsabilidade, que em português compõem a sigla “IR”, de interessante polissemia. Invenção de uma resposta singular ao furo do sentido no Real e Responsabilidade de fazer essa resposta singular passar no mundo (FORBES, 2016).
Na Pós-modernidade ou em TerraDois, Freud e Lacan dão suporte à Psicanálise do Século XXI e fornecem subsídios para que o Indivíduo e a Sociedade Global manejem, de forma inventiva e criativa, seus conflitos mais urgentes e complexos. Sigmund Freud, em “Análise Terminável e Interminável” (1937), aborda os três ofícios do impossível, a saber: “educar, governar e psicanalisar” (FREUD, 2018). Trata-se de ações humanas que pedem presença, desejo, corpo e responsabilidade. Jacques Lacan, por sua vez, no “Seminário nº 23”, assevera que: “Só se é responsável na medida do seu savoir-faire. Que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que dá à arte da qual se é capaz um valor notável” (LACAN, 2007).
No âmbito da Ética da Responsabilidade, quanto ao cotejamento entre o discurso da Ciência e o da Psicanálise, a Ciência tem o poder de fazer-saber (FORBES, 2023).Já a Psicanálise aponta um caminho em sentido antagônico, ou seja, para o “savoir-faire”: conceito que traduz o “saber-fazer”, que a priori, não resulta em um produto pois é invenção, dimensão criativa que algoritmo algum poderá sobrepujar. O “savoir-faire” traz consigo e suporta o Sinthoma, o risco, a aposta, o acaso e a surpresa. São elementos essenciais e intrínsecos à natureza humana, a exemplo de o estranho íntimo, àquilo que temos de mais estranho e mais singular, o sinthoma enquanto coincidência. São características peculiares que tentam traduzir a singularidade e a notabilidade de cada ser humano, impossíveis e inapreensíveis aos algoritmos da I.A.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FORBES, Jorge. Inconsciente e Responsabilidade: psicanálise do século XXI. São Paulo. Ed. Manole. 2012.
FORBES. Jorge. Fazer-se tolo de um real: o que é crer no sinthoma? Nano-psicanálise . 28/04/2016.<https://ipla.com.br/conteudos/artigos/fazer-se-tolo-de-um-real-o-que-e-crer-no-sinthoma-nano-psicanalise/>.
FORBES, Jorge. TerraDois Realidade Artificial. YouTube, 21/01/2017. <https://www.youtube.com/watch?v=_0ZSU5r7wiY>.
FORBES. Jorge. FERRY, Luc. A Revolução Transumanista. Entrevista. 29/03/2018. <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/a-revolucao-transumanista/>.
FORBES, Jorge. A Sabotagem e a Inteligência Artificial. Revista HSM. Ed. nº 133. Abr./2019. <http://jorgeforbes.com.br/a-sabotagem-e-a-inteligncia-artificial/>.
FORBES. Jorge. Ata do curso de TerraDois. Estabelecida por Vania Viana de Oliveira. Curso ministrado por Jorge Forbes. IPLA. São Paulo.10/10/2023 (no prelo).
FREUD, Sigmund (1905). Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. Em: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, vol. 7. Ed. Imago.1986.
FREUD, Sigmund (1917). Uma dificuldade da psicanálise. In: Obras completas, vol. 14. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 251.
FREUD, Sigmund (1937). Análise terminável e interminável. In: Obras Completas, vol.19. Tradução Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
LACAN, Jacques (1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos. Tradução Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 521.
LACAN, Jacques (1975-76). O Seminário, livro 23: O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 59.
LISE, Liége Selma. Anotações do Curso: Como viver em TerraDois. Ministrada por Jorge Forbes.Saint Paul Escola de Negócio. 16/09/2020.
LISE, Liége Selma. Da falta e do desejo. IPLA. 07/03/2018. <https://ipla.com.br/conteudos/artigos/da-falta-e-do-desejo/>.
OXFORD. Dicionário de Português Oxford Languages/Google. 2023< https://www.google.com/search?q=algoritmo+defini%C3%A7%C3%A3o&oq=agoritmo+defini&aqs=chrome.1.69i57j0i13i512l2j0i15i22i30l2j0i10i15i22i30j0i22i30l4.11581j0j4&sourceid=chrome&ie=UTF-8>.