Por Teresa Genesini
Trabalho de conclusão do Curso
Como fazer psicanálise no século XXI? A Clínica do Real: a Orientação Lacaniana
28 de novembro de 2005
Autoria: TERESA GENESINI
Orientação: ELZA MACEDO
Supervisão: JORGE FORBES
Era um garoto que como eu
Amava os Beatles e os Rolling Stones…
Stop com Rolling Stones
Stop com Beatles songs….. Engenheiros do Hawaíi
1. Psicoses – uma introdução
Psicose não é demência, diz Lacan, em seu seminário 3 – As Psicoses. As psicoses são, se quiserem _ não há razão para se dar ao luxo de recusar empregar esse termo _ , o que corresponde àquilo a que sempre se chamou, e a que legitimamente continua se chamando, as loucuras. (LACAN, 1955 / 1988, p.12). Schreber usou argumento semelhante ao se defender no Tribunal de Dresden, no sentido de suspender sua interdição, já que ele mantinha sua capacidade de gerir seus negócios. O juiz o havia privado do uso da razão por estar dominado por idéias delirantes. O pedido de interdição é anulado, já que quanto a sua capacidade intelectual, Schreber estava à altura de administrar seu patrimônio.
É através do relato autobiográfico de Schreber que Freud (1911) fez seu primeiro grande estudo sobre as psicoses. Não trabalhou diretamente com ele, mas fez uma investigação psicanalítica através do relato autobiográfico de Daniel Paul Schreber (1905 / 1984). Naquela época Freud dividia as psicoses em duas vertentes: a parafrenia (que corresponde ao campo das esquizofrenias) e a paranóia.
A investigação psicanalítica da paranóia seria completamente impossível se os próprios pacientes não possuíssem a peculiaridade de revelar (de forma distorcida, é verdade) exatamente aquelas coisas que outros neuróticos mantêm escondidas como um segredo. Visto que os paranóicos não podem ser compelidos a superar suas resistências internas e desde que, de qualquer modo, só dizem o que resolvem dizer, decorre disso ser a paranóia um distúrbio em que um relatório escrito ou uma história clínica impressa podem tomar o lugar de um conhecimento pessoal do paciente. (FREUD, 1911, p.1).
No grupo das psicoses, segundo o Vocabulário da Psicanálise (LAPLANCHE & PONTALIS, 2004, p.390), a psicanálise procurou definir diversas estruturas: paranóia (onde inclui de modo bastante geral as alterações delirantes) e esquizofrenia, por um lado, e, por outro, melancolia e mania. Fundamentalmente, é uma perturbação primária da relação libidinal com a realidade que a teoria psicanalítica vê o denominador comum das psicoses, onde a maioria dos sintomas manifestos (particularmente construção delirante) são tentativas secundárias de restauração do laço objetal.
Uma psicose não tem uma pré-história, como uma neurose, diz Lacan. Mas quando em alguma situação especial, alguma coisa que não foi primitivamente simbolizada aparece no mundo exterior, então o sujeito fica desarmado e cria suas próprias defesas, seus delírios. É uma tentativa de cura. O delírio visa “reconstituir a relação com uma realidade”, e como a própria realidade foi destruída (o que significa “retirada da libido”), o “trabalho delirante” é um “processo de reconstrução do universo”. (KAUFMANN, 1993, p.164). Nas psicoses há uma diferenciação entre paranóia, em que o delírio é mais organizado e esquizofrenia, em que o delírio é totalmente desorganizado.
A esquizofrenia é também chamada de demência precoce porque a desarticulação (Spaltung) das diversas funções psíquicas é uma de suas mais importantes características. (KAUFMANN, 1993, p.163).
A nosografia na primeira clínica de Lacan, estrutural, diferencia neurose, psicose e perversão. Lacan demonstrou que os sintomas, como as outras formações do inconsciente, são estruturados como uma linguagem. O sintoma como metáfora, uma formação em lugar de outra, um significante no lugar de outro significante. Sua classificação baseia-se nos mecanismos estruturais usados diante da castração e em seus efeitos.
Neurose Psicose Perversão
Recalque Forclusão Recusa
O que foi recalcado retorna no simbólico. O que foi forcluído retorna no real. O que foi desmentido retorna como objeto.
O sintoma neurótico como mensagem a ser decifrada. A alucinação auditiva e a interpretação delirante. O fetiche.
O grande ordenador desta classificação é a metáfora paterna, o Nome-do-Pai. A primeira clínica de Lacan considera sua presença condição para os desenlaces neurótico e perverso e sua forclusão para o desenlace psicótico.
Na segunda clínica de Lacan, há uma pluralização dos nomes-do-pai; a metáfora paterna não é mais o único ordenador. Outros elementos podem servir de amarração, de suplência, de capitonagem. Miller, na Conversação de Arcachon,(1998), sugere uma classificação derivável da segunda clínica: com ponto de capiton (PDC) e sem PDC. Estariam lado a lado nesta classificação os estados ancorados na metáfora paterna e na metáfora delirante, modos diversos de capitonagem. Do lado da ausência de PDC, de amarração dos registros, estariam a hebefrenia, a catatonia, a nebulosa.
2. Um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones
Jerry foi entrevistado em uma reunião clínica no HC. Ele dizia ser amigo de Paul McCartney e Bob Dylan. Cantou um trecho da música “Satisfaction”, dos Rolling Stones. Ao mesmo tempo, falava de judeus e nazistas, Jesus Cristo, Churchill e Stálin, um general da Segunda Guerra.
Sou mais feliz que Stálin, disse. Já “amorfinei” meu corpo. Por traz desse dizer de um corpo amorfo, sem forma, que carrega, há um dito de um corpo amofinado, caceteado, maçado, aperreado, agastado. Talvez haja aí uma ambigüidade, como se houvesse um erro de linguagem de “amofinei”. De qualquer forma, há esse jogo entre o dizer e o dito. “… para que um dito seja verdadeiro, é preciso ainda que se o diga, que haja dele um dizer.” (Lacan, 1972, p. 449). Ao citar Lacan “O dito fica escondido atrás do que se diz.”, Forbes (2005) comenta sobre este gap, que faz com que muitas vezes o analisando diga: Dá para repetir? Não, não dá para repetir. Não dá para associar o que um diz e o que o outro ouve. Quando Jerry diz “Já amorfinei meu corpo“, dá vontade de perguntar a ele: Como é mesmo?
Um sistema do significante, uma língua, tem certas particularidades, que especificam as sílabas, os empregos das palavras, as locuções nas quais elas se agrupam, e isso condiciona, até na sua trama mais original, o que se passa no inconsciente. Se o inconsciente é tal como Freud nos descreveu, um trocadilho pode ser em si mesmo a cavilha que sustenta um sintoma, trocadilho que não existe numa língua vizinha. Isso não quer dizer que o sintoma está sempre fundado em um trocadilho, mas ele está sempre fundado na existência do significante como tal, numa relação complexa de totalidade a totalidade, ou mais exatamente de sistema inteiro a sistema inteiro, de universo do significante a universo do significante. (LACAN, 1956 / 1988 p.140). Sou o mais alto do mundo, mais alto que o muro de Berlim. Doutor me dá essa alta e eu fico contente. Preciso sair um pouco, refrescar um pouquinho. Hoje vi meu pai por aí. Ontem falei com ele por telefone.
Seu pai havia morrido cerca de dois anos atrás. Foi assassinado. Mas ele não admitia. Não perdi meu pai, ele está vivo, dizia. Vou pegar a Rua Brigadeiro Luis Antonio, num apartamento que ele tem lá com a amante. Vou procurar ele lá. Minha mãe, uma dama da sociedade. Os nazistas ameaçaram chicoteá-la e depois tiraram o tesão dela.
Jerry é desagregado, apresenta muitas experiências delirantes, como se pode observar da sua fala, também bastante desconexa. Sua doença teve um agravamento após a morte do pai. A fala inventiva do esquizofrênico tem uma explicação de Lacan, citada por Miller:
O dito esquizofrênico, Lacan o considera como caracterizado pelo fato de que, para ele, o problema do uso dos órgãos é especialmente agudo e que ele deve ter recursos sem o socorro de discursos estabelecidos, ou seja, ele é obrigado a inventar seus socorros, seus recursos, para poder usar seu corpo e seus órgãos. (MILLER, 2003, p.56). Nos seus 51 anos, Jerry passou por várias internações psiquiátricas. Esta última durou 40 dias, sob medicação. Dessa vez foi uma internação eletiva, para separá-lo da mãe e deixá-lo num espaço mais neutro. Apresenta diagnóstico de esquizofrenia crônica. Tem alucinações auditivas, pensamento desordenado com alguns bloqueios e temática persecutória. Seu discurso é desorganizado, sem muita fluência; a fala é desarticulada e suas construções são pobres. São informações colhidas em seu prontuário médico-hospitalar.
Ele informa que seu problema começou na adolescência. Fumava muita maconha e bebia também. Faz tratamento desde os 7 anos. Quando “aumentou o corpo”, por volta dos 15 anos, teve sua primeira internação. Chegou a receber choque elétrico na cabeça por falar muito palavrão. Atirou-se do terceiro andar de um prédio, quando tinha 21 anos. Sua mãe chorava e dizia “Tem que morfinar”, conta ele. Outra vez faz uso do mesmo trocadilho.
Quando Jerry jogou-se do prédio, ele fez uma passagem ao ato. Na passagem ao ato, há uma identificação absoluta do sujeito com o objeto a. Não há uma demonstração para o Outro, ele se atira contra o objeto ou como o objeto. Com um desassossego, um desamparo emocional, o sujeito faz a passagem ao ato, sai da cena.
Fuma até três maços de cigarro por dia. Diz que ouve vozes, pessoas zombando dele. Durante a internação é descuidado com sua aparência e higiene; veste as roupas da enfermaria e tem sempre a barba mal feita. Conta que tem dois irmãos e uma irmã. Fala no assassinato do pai e que teve uma premonição do que iria acontecer. Diz que gosta de beber cerveja, de música e filmes. Em casa vê TV, ouve música, conversa, passeia. Anda pelo bairro durante o dia. Queixa-se que as pessoas o maltratam na rua.
O relatório médico atesta que o paciente evoluiu durante a internação, com melhoria progressiva de seu comportamento. Entretanto, não houve melhora significativa de sua produção psicótica, conclui.
Chegou a uma melhora “limite”, disse o médico psiquiatra que o atende. Ele conseguiu se estabilizar com a medicação, ainda que seja uma estabilização precária. Teve alta do hospital.
Agora vai começar uma nova caminhada, disse Jerry. Com chopp e cigarro. Sou fazendeiro, não sou judeu. Sou mais feliz que Stálin.
3. Conclusões ou Indagações?
Agora, me pergunto: Há uma nova caminhada para Jerry? A psicanálise poderia oferecer uma saída?
A tentativa de suicídio, quando atirou-se do terceiro andar do prédio, ficou em sua lembrança. Esse ato foi marcante para ele. É um fato que ele sempre repete. Assim como a música, Satisfaction, que ele gosta de cantar. Haveria aí uma possibilidade de amarração, um possível ponto de capiton?
Há outras possibilidades. Na discussão de casos do Núcleo de Psicopatologia e Psicanálise, Ariel Bogochvol (2005) analisa a clínica diferencial das psicoses e a direção da cura de um ponto de vista psicanalítico. A posição do analista deve variar caso a caso – secretário do alienado, testemunha, modulador do gozo, interceptor, diz ele.
Na Conversação de Arcachon, Camile Decool apresentou sua experiência com um paciente esquizofrênico e relatou que os jogos de palavras desse paciente, em si, estão fora-do-laço social, mas que ele goza diretamente da língua. Foi notado, que o paciente tenta assim fazer entrar seu sintoma autista na comunicação transferencial. A transferência com a autora lhe havia permitido endereçar manipulação sem Outro da língua a um Outro. Esta passagem do fora-do-laço social parece-me muito interessante. (MILLER, 1998, p.181).
A doença mental é séria quando o sujeito tem uma certeza: é a doença do Outro não barrado. E como terapeutizá-la com a palavra, quando a palavra só tem o status da tagarelice? A doença da mentalidade, se não é séria, tampouco leva a palavra a sério, posto que a dimensão mesma do Outro está em déficit. Quem explicará a transferência do psicótico? (MILLER, 1998, p.202).
Por outro lado, as considerações que se aplicam à análise de neuróticos, adquirem uma importância crucial, pois o psicótico é extremamente sensível aos desvios de um analista em relação ao lugar que lhe é atribuído na estrutura. Qualquer afastamento de direção por parte do analista, pode contribuir para o rompimento do tratamento.
Na direção da cura de um psicótico, o analista deve acompanhar a tentativa de cura que o sujeito empreende, seus esforços para sustentar seu mundo. Penso que a rigor, em um caso de psicose a direção da cura cabe ao sujeito. Ao analista caberá permanecer atento às possibilidades que se oferecem, às pequenas ou grandes invenções de um sujeito ao longo de seu percurso em busca da estabilização. A singularidade desses sujeitos, que não se inscrevem na norma fálica, acentua ainda mais o necessário não saber por parte do analista. O analista de um psicótico deve recusar toda e qualquer possibilidade de mestria – e, portanto, a psicoterapia. (PEQUENO, 2002, p.69).
Gisela Pankow, seguidora de Jacques Lacan, na psicanálise e de Karl Jaspers, na psiquiatria, desenvolveu um método de estruturação dinâmica da imagem do corpo, com pacientes psicóticos. A partir do que ela chama de fantasma estruturante e a partir da reconstrução da imagem do corpo, que a esquizofrenia dissociou, há a possibilidade de prender sua pele ao corpo, ao que ela denomina ligação dupla de transferência.
Seria uma nova direção no tratamento psicanalítico?
Seria possível algum tipo de tratamento para Jerry, através da música, do corpo e da transferência? Poder-se-ia tentar chegar a uma mudança diagnóstica, uma evolução em seu caso? Seria possível organizar seu mundo delirante?
Finalizo com uma frase de Forbes (1999, p.86):
Psicanálise é algo que realmente tem que valer a pena: para o analista e, sobretudo, para o analisando.
Era uma garoto, que como eu, amava os Beatles e os Rolling Stones…
Referências Bibliográficas
BOGOCHVOL, Ariel – Notas de aulas do Curso de Formação em Psicanálise – A Psicanálise no Século XXI e Núcleo de Psicopatologia e Psicanálise, 2005.
FORBES, Jorge – Projeto Análise, Módulo I, 21 de novembro de 2005.
– Da Palavra ao Gesto do Analista, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1999.
FREUD, Sigmund (1911) – Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfico de um caso de paranóia (Dementia Paranóides), Obras Completas, Vol. XII. Rio de Janeiro: Imago,1969 (edição eletrônica).
KAUFMANN, Pierre – Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993.
LACAN, Jacques (1972) – O aturdido, Outros Escritos, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003.
(1955-56) – As psicoses, O Seminário – livro 3, Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1988.
LAPLANCHE & PONTALIS – Vocabulário da Psicanálise, São Paulo: Martins Fontes, 2004.
MILLER, Jacques-Alain – A Conversação de Arcachon – Os Casos Raros da Clínica Psicanalítica. Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.
A invenção psicótica, Opção Lacaniana – n° 36. São Paulo: Edições Eolia, maio 2003, p.6 – 19.
PEQUENO, Ângela – Análise de um caso de esquizofrenia, Opção Lacaniana – n° 34. São Paulo: Edições Eolia, outubro 2002, p.64 -69.
PONKOW, Gisela – Le psychotique et son corps, La Cause Freudienne – Nouvelle Revue de Psycanalyse – n° 60, juin 2005, p. 230 – 231.
SCHREBER, Daniel Paul (1905) – Memórias de um doente dos nervos, Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1984.