Trabalho de final de ano desenvolvido pelos alunos do Curso Intermediário De Freud a Lacan, como parte da preparação para a Conversação Clínica do IPLA, 2022, que tem como tema: “A Clínica Psicanalítica dos sintomas pós-pandemia”.
Redatores: Talyta Carvalho e Gabriel Guerra Rivera
Algumas das imagens mais representativas da pandemia, foram sem dúvida aquelas de crianças diante de computadores ou de celulares (dependendo da condição social e econômica de cada uma) tentando acompanhar as suas aulas.
Essas imagens e a riqueza de informações nas entrevistas realizadas com alguns profissionais da educação, permitem perceber um percurso muito desafiador que transita entre as dúvidas, os implicados e o encontro com os novos sintomas.
AS DÚVIDAS
O que fazer para o aluno não perder o ano letivo? A solução: aulas online! Mas como fazer isso considerando que, em muitos casos, cada turma tem mais de 15 alunos?
O mundo corporativo estava de alguma forma familiarizado com o ambiente online, mas as escolas não.
Qual é a melhor plataforma para as aulas? Qual comporta tantos alunos na mesma sala? Serão aulas ao vivo? Ou melhor, gravar as aulas e disponibilizar para os alunos assistirem posteriormente? Os professores estão treinados para lidar com tecnologia? “Eu sou professor, eu só sei lidar com livros, não com plataformas online” diziam alguns professores.
O processo não foi fácil. O professor tinha computador em casa? E os alunos? Dá para fazer aula pelo celular?
E quando as aulas online começaram, novos desafios apareceram. Tem que ficar com a câmera aberta ou fechada? Como sei que aquele aluno não está dormindo? A conexão não está boa, fica caindo!
O inesperado atrás do inesperado.
Foi um momento em que diferenças sociais e dinâmica familiar ficaram a descoberto.
Diretores, coordenadores e professores se depararam com algo nunca antes pensado: entrar na casa dos alunos, na casa do outro. Conhecer de alguma forma a dinâmica familiar. Alguns pais passaram a assistir às aulas, fazendo com que alguns professores se sentissem intimidados.
Os professores tiveram que desenvolver novas estratégias de ensino. Como verificar que o aluno fez a atividade? Como corrigir? Como fazer com que a aula fosse interessante? Nesse momento, diversos webinars foram realizados para ajudar os professores e profissionais da educação a aprender novas ferramentas.
E se pensarmos que cada ciclo escolar requer diferentes estratégias de ensino, o tamanho do desafio é maior. Como alfabetizar? Como ensinar a motricidade fina? Daí que muitos professores tenham hoje a percepção de que houve um grande retrocesso.
E quando finalmente as aulas deixaram de ser online, passando pelo ensino híbrido até chegar novamente ao ensino presencial, uma nova situação inesperada apareceu: relatos de alunos que não querem mais as aulas presenciais! “Como era bom quando fazíamos aulas de casa!”, dizem eles. Desafios, imprevistos e surpresas. A educação teve que lidar com tudo isso. A educação e o Real. Um encontro que veio para ficar.
OS IMPLICADOS
“Estou trancado em casa e não posso sair/ Papai já disse, tenho que passar/…/ Não saco nada de Física/Literatura ou Gramática/ Só gosto de Educação Sexual/…/ Não posso nem tentar me divertir/ O tempo inteiro eu tenho que estudar/ Fico só pensando se vou conseguir/ Passar na porra do vestibular”[1]. Estes versos compostos e cantados por Renato Russo em 1987, parecem um pouco distantes de ecoar a voz do estudante de hoje. Há revolta, indignação e, por que não, um tanto de obediência. Imaginemos um diálogo fictício entre o estudante de 1987 e um estudante de 2022:
E87: Estou trancado em casa e não posso sair.
E22: Como assim “não pode”? Tá rolando algum B.O. muito grave?
E87: Não…nada assim… é que Papai já disse, tenho que passar…Não posso nem tentar me divertir, o tempo inteiro eu tenho que estudar, para passar no vestibular.
E22: Cê tá me zoando, né? É sério isso? Não pode por causa do “Papai”? Por que o papai diz que tem que passar no vestibular?! (Neste momento, caro leitor, o estudante de 22, viajante no tempo, fica reflexivo. No melhor estilo “Nazaré pensativa” ele dedica algum tempo a tentar entender o que o aluno de 87 queria dizer com aquilo. Não conseguiu e achou que era melhor voltar para 2022).
O estudante de 2022, habitante de um mundo denominado por Jorge Forbes como TerraDois parece cada vez menos com o aluno de TerraUm. Ao contrário do que cantava Elis, nós não somos mais os mesmos e tampouco vivemos como nossos pais. Professores por toda parte, seja no sistema público ou privado, fazem coro quanto aos desafios e impasses da educação no cenário atual, pós-pandêmico: “Eles não largam o celular”; “Aumentou o desinteresse”; “Os alunos não veem sentido em estudar”; são expressões comuns entre os profissionais da área. Mas seria este fenômeno fruto direto da pandemia? Se por um lado podemos afirmar que não, que a pandemia não poderia ser o marco zero do fenômeno, uma vez que os sinais de estarmos vivendo uma transição para TerraDois se já fazem notar há algumas décadas, por outro lado, somos instigados a pensar que papel ela desempenhou então sobre ele. De modo a tentar refletir mais detidamente sobre o que acabamos de afirmar, tomemos a primeira parte de nossa hipótese, a saber, que a pandemia não trouxe uma realidade inteiramente nova à educação mas intensificou suas transformações. Como então esta realidade veio a ser, se não pelo advento da pandemia? O estudante de TerraUm, era o habitante de uma cultura pai-orientada, portanto, admite a autoridade que se faz pela verticalidade do laço social – ainda que o faça, por vezes, justamente para contestá-la. O “papai” é realmente aquele quem “diz”, como na música de Renato Russo. O estudante de TerraDois, é o habitante de uma cultura em que se vive a horizontalidade dos laços, e por isso, expressa um novo sintoma: o fracasso escolar. É neste sentido que a educação já estava às voltas consigo mesma bem antes da pandemia, e a clínica psicanalítica o pode atestar. Não há mais rebeldia. Em seu lugar, apareceu a indiferença, antes mesmo de ser possível expressá-la, desligando a câmera da tela na aula online: o aluno entrega provas em branco ou nem mesmo se apresenta para fazê-las, recusa-se ao processo educacional. Como descreveu Jorge Forbes[2], nada o sensibiliza, nem mesmo as advertências do professor quanto às consequências: notas baixas, recuperação, repetência. Ele não liga.
OS NOVOS SINTOMAS
Se o fracasso escolar já se apresentava como um novo sintoma desde antes da pandemia, como podemos pensá-lo agora que atravessamos uma? O que surge como novidade? Em nossa leitura do fenômeno, a novidade se apresenta sob três faces distintas que não obstante se interpõe. A primeira diz da práxis do professor, a segunda, da configuração do meio em que a educação se dá e, por fim, a terceira, diz da posição do aluno. Falemos da primeira: antes da pandemia o professor tinha recursos para escamotear e negar seu encontro com aquilo que na definição de Jacques Lacan carrega as marcas de um inesperado, de um indizível e de um impossível, mas que no entanto, “não para de não se escrever”: o Real de seu ofício[3]. A pandemia tornou o encontro da educação com o Real inescapável. Não houve mais por onde tentar escamotear. O que ouvimos em nossas entrevistas diante da pergunta sobre o impacto da pandemia foi unânime: dos coordenadores pedagógicos aos professores do ensino infantil ao médio, todos disseram que tiveram que reaprender a dar aula; que tiveram que criar outras formas de ensinar, angustiaram-se diante da incerteza de seu ato (“O quanto estou conseguindo transmitir? Será que isto está funcionando?”).
Já na segunda face, a do meio educacional, durante a pandemia e depois, as dores e as delícias de lidar com a ambivalência da entrada da tecnologia no ensino: por um lado, as aulas online trouxeram à tona a intensidade do fracasso escolar – houve quem desse aula para “ninguém”, uma tela em que se via câmeras desligadas, nenhuma interação e um professor falando para si mesmo; ou mesmo um aluno de pijama ou na piscina “presentemente ausente”. Por outro lado, a pandemia também abriu possibilidades, a aula online permitiu a entrada e acesso a cursos e aprendizados que a limitação geográfica antes impedia. E por fim, na terceira face, temos o aluno, protagonista das consequências pandêmicas para o ensino. No retorno à escola, uma nova pandemia parece eclodir: a do fracasso escolar. Como educar quem não quer ser educado? Um aluno que viu, durante a pandemia, que se pode aprender qualquer coisa na internet, sem um professor? Que percebeu que o mercado de trabalho não exigirá formação universitária em muitas novas profissões – justamente naquelas que parecem mais atrair os jovens de hoje?
Talvez nos ajude nesta reflexão chamar à lembrança a posição de Freud quanto à relação da psicanálise com a educação. Em seu prefácio à Juventude desorientada, ele afirma reconhecer que as aplicações da psicanálise constituíram um interesse especial para a área educacional. Um interesse que se colocava em uma intensidade distinta de qualquer outra área, talvez justamente por despertar tantas esperanças.[4] O motivo para tanto lhe foi fornecido pela própria clínica: “a análise demonstrou como a criança continua a viver, quase inalterada, no doente, bem como naquele que sonha e no artista”[5]. Em seguida, ele fala o que doze anos depois voltará a afirmar em Análise terminável e interminável [6]: educar, assim como analisar e governar, é um dos três ofícios impossíveis. Os ofícios impossíveis são justamente aqueles relacionais que fazem da linguagem seu instrumento fundamental. Lacan pôs em evidência a questão: a palavra é falha, não se pode dizer tudo, não se pode fazer compreender tudo por meio dela, e é por esta impossibilidade que ela se relaciona com o Real[7]. O ato de educar é impossível não só porque o professor não pode fazer pelo aluno, em lugar dele, mas também porque a própria empreitada se constitui como incerta e sem garantias de sucesso. Nada, nem mesmo todas as fórmulas metodológicas e técnicas podem garantir seu sucesso ou impedir seu fracasso. Em uma TerraDois pós-pandêmica, a impossibilidade também passa pelo reconhecimento de que a escola, enquanto um lugar que se orienta por métricas de autoridade que chancelam o saber, e de uma disciplina de conformação do sujeito a um ideal (moral?), só poderia mesmo estar em crise.
Como a psicanálise poderia contribuir com a educação neste contexto? Talvez seja o caso de retornarmos a Freud (ainda) uma vez mais e perguntar como ele o fez: a que serve uma escola? Ele nos responde com clareza cristalina: uma escola deve abrir caminho para o desejo de viver de seus alunos[9]. Aqui, caberia à escola renunciar a toda e qualquer generalização, caberia promover uma aposta (sempre arriscada e sem garantia) a partir deste encontro com o Real. E deste lugar de devir por excelência que o constitui, suportar o que não se sabe e nunca saberá. Assim como cabe à psicanálise uma resposta ética à impossibilidade de seu ofício, também à educação caberia a mesma qualidade de resposta. Diante dos impasses educacionais descortinados pela pandemia não se responde com medo, como bem dito por Forbes, mas com Invenção e Responsabilidade[10].
Alunos do Curso Intermediário 2022:
Alexandro Luis França
Aline Palma Nalla
Cejana de Siqueira Freitas
Gabriel Guerra Rivera
Isabela Saldanha
Laís Helena Bittencourt R. Soubhia
Larissa Roriz Câmara Guimarães
Ludmylla Figueiredo Souza de Queiroz
Maria Helena Rachid
Marlon de Oliveira Franco
Maurício da Silva Seabra
Pricila de Fatima Alves
Susanne Dorothea Walker
Talyta Cristina de Carvalho
[1] “Química”- Composição de Renato Russo, 1987.
[2] FORBES, Jorge. “O curto-circuito do gozo”. (23/05/1999). Site: www.jorgeforbes.com.br
[3] LACAN, Jacques. O Seminário, livro 20: Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1982. p. 127
[4] FREUD, Sigmund. Prefácio à “Juventude Desorientada” de Aichhorn. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Volume XIX. P. 313
[5] Idem, ibidem.
[6] FREUD, Sigmund. “Análise Terminável e Interminável”. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Volume XXIII. p.265. A asserção de Freud é uma releitura de Kant, que em seu Sobre a pedagogia (1770/1999, p. 20) , afirmava que a arte de educar e de governar, eram artes “dificílimas”. No texto a que nos referimos, Freud acrescenta a arte de analisar, e vai além ao caracterizá-las como impossíveis.
[7] LACAN, Jacques. “Televisão”. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
[8] FREUD, Sigmund. Contribuições para uma Discussão Acerca do Suicídio. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1980. Volume 11. p. 217
[9] FORBES, Jorge. “Efeitos das tecnociências nas famílias”. Trabalho apresentado em plenária do VIII Encontro Americano de Orientação Lacaniana, em Buenos Aires, em 14 de setembro de 2017