Desafios e Relações da Inteligência Artificial na Pós-Modernidade 17/11/2023

Tutores:
Elza Macedo
Teresa Genesini

Alunos:
Ana Lourenço
Bianca Martins
Cristiane Tarricone
Henrique Mascalhusk
Luciana Barreto de S. Carneiro
Maria Schadeck
Náthalie Ocáriz
Patrícia Carvalho
Sandra Aiosa


Trabalho de Conclusão do 2º Semestre Curso Fundamental: de Freud a Lacan – 2023

Fica, oh, brisa fica, pois talvez quem sabe
O inesperado faça uma surpresa
E traga alguém que queira te escutar
E junto a mim queira ficar

Eu e a Brisa
Johnny Alf


Vivemos na pós-modernidade, em “TerraDois”, como denomina Jorge Forbes, horizontalmente orientada e que tem como nova transcendência o amor.  Marcados pela incompletude e diante de um amor não mais da natureza do amor romântico, mas construído na falta, retomamos a nossa questão: como são e como serão os novos laços? Poderá a lógica da completude da máquina representar o real, aquilo que nos falta?

Desde os primórdios da humanidade tentamos encontrar respostas ou soluções para nossos questionamentos: nos desenvolvemos com base em nossa criatividade. As descobertas e invenções fizeram parte do desenvolvimento humano, desde o fogo, a roda, a máquina a vapor na era moderna das revoluções. Em uma destas revoluções, a digital, nos deparamos com oportunidades de nos reinventarmos: criamos computadores, máquinas capazes de realizar tarefas de modo sistemático em um curto espaço de tempo.

Até a revolução industrial do século XIX as máquinas funcionavam como extensão do nosso corpo: das mãos, da visão, da audição, da capacidade de locomoção.  A tecnologia digital introduz uma nova dimensão: a possibilidade de expansão da mente, da nossa capacidade de armazenamento, processamento e transmissão de informações a partir dos algoritmos. “A ideia global é  que estamos vivendo uma terceira revolução industrial, e o núcleo dessa terceira revolução industrial é o que chamamos de NBIC. N de nanotecnologia, B de biotecnologia, particularmente o sequenciamento do genoma humano e a ferramenta de edição do DNA que se chama Crispr-Cas9. Depois o I de informática, os big data e a internet dos objetos. E o C é o cognitivismo, isto é, a inteligência artificial (IA), o coração do coração dessas quatro inovações.” (Luc Ferry)[1]. Laurent Alexandre acrescenta: “A convergência entre nanotecnologias, biotecnologias, informática e ciências cognitivas (que agrupamos na sigla NBIC) coloca questões inéditas que comprometem o futuro da humanidade.”[2]

A inteligência artificial fraca, que processa uma infinidade de dados em tempo real mas não pensa, não tem consciência de si, também hoje se faz presente em todos os campos do conhecimento, reproduzindo o comportamento humano na realização de tarefas e tomada de decisões. A inteligência artificial forte, a mais temida e ainda não alcançada, teria consciência de si, emoções e tomaria suas próprias decisões.

O fascínio pela tecnologia que parece mágica diante do seu caráter invisibilizante (por não termos absoluto domínio do seu funcionamento) e que promete servir como próteses do cérebro, executando tarefas de forma mais rápida e eficiente do que nós, traz ao nosso funcionamento social a sensação de realização de desejo. Ela hoje é responsável pela infraestrutura da vida cotidiana.

O modo como nossas experiências subjetivas quando expostas a essa estrutura programática e numérica – os algoritmos – modificam nossa sociabilidade, nossa subjetividade, e quais serão os limites de intervenção da inteligência artificial são questões inquietantes passíveis de discussão no campo da ética da responsabilidade e dos compromissos.

O médico francês transumanista Laurent Alexandre e o filósofo Jean-Michel Besnier, biodefensor, enfrentam questões controversas da nova realidade no livro “Os Robôs Fazem Amor?” e têm opiniões divergentes quanto à relação futura da humanidade com essas novas tecnologias; contudo, concordam que a técnica não é, em si, boa ou má, e que tudo depende do uso que o homem escolhe fazer dela.[3]

A busca do homem pela felicidade e pelo prazer e o antagonismo entre as exigências das pulsões e as restrições impostas pela cultura foram, já no século passado, objeto dos estudos de   Sigmund Freud (1856-1939) e permeiam praticamente toda a sua obra. No “Mal-estar da Civilização” (1930)[4] concentra o foco especificamente nas questões da busca pela felicidade e prazer diante dos paradoxos da satisfação, considerada a partir de “Além do Princípio do Prazer” (1920)[5], também fonte de desprazer e sofrimento.

Para Freud a civilização é um mal necessário; sugere a busca por algum tipo de unidade, de amor universal, frente às tendências destrutivas e ao modo como se estabelecem os laços entre os homens, e a preservação da humanidade diante do confronto das pulsões de vida – Eros – e de morte -Tanatos (1915).[6] Constata que se tudo que os homens pedem e desejam é a felicidade, aponta que ela é extremamente singular ao sujeito e só é vivenciada de maneira intermitente e episódica. Já o sofrimento, ao contrário, é mais fácil de ser vivido e percebido, chegando a partir de três fontes: a fragilidade de nossos corpos, o poder superior da natureza e o relacionamento entre os homens (1930).[7] Cada uma dessas fontes contém algo de impossível, daquilo que foi posteriormente denominado por Lacan de real (1959-1960).[8]

A inteligência artificial, apesar de sua ascensão cultural e científica, poderia também ser vista como uma nova fonte de sofrimento? Por que precisamos discutir no mundo pós-moderno a relação do homem com a máquina?

Laurent Alexandre, na mesma obra já mencionada[9], pensando nas relações humanas, inclusive sexuais e afetivas, afirma que o avanço da inteligência artificial não se limitará a transformações no corpo físico, mas que também possibilitará novas maneiras de nos relacionarmos e interagirmos com os robôs: para ele, a inteligência artificial será capaz de mudar a maneira de interação, irá para além da relação com o corpo físico.

É certo que a inteligência artificial já pode ser programada para simular emoções, expressões faciais e respostas de linguagem que simulam afetividade, como já é usado em chatbots e assistentes virtuais para criar interações mais humanas e agradáveis. Um exemplo notável é a pesquisa e o desenvolvimento do “Woebot”, um chatbot de saúde mental que usa uma abordagem psicoterapêutica e a empatia artificial para fornecer suporte emocional.

Jacques Lacan, já à época de seu segundo seminário, “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise”, promove um diálogo com interlocutores da cibernética com o objetivo de refletir sobre a possibilidade de uma máquina inteligente desempenhar uma posição de sujeito.[10] Nesse contexto, a máquina seria capaz de imitar tão perfeitamente o funcionamento mental humano que seria difícil distinguir quem é humano e quem não é.

Com a constatação de Freud de que o corpo é uma das fontes de sofrimento, é possível compreender como o declínio e a morte, seja simbólica ou real, movimentam o ser humano a buscar soluções para inibir essa dor.

Se o sofrimento só existe na medida em que o sentimos, há lógica no empenho para a formação de “relações distanciadas”, com corporeidade esvaziada. As relações afetivas, causas primárias desse sofrimento corpóreo, nesse novo formato, se transformariam em “solidões conectadas”, praticamente nos mesmos moldes, porém mais sofisticados do que já conhecemos nas redes sociais. Se não há corpo a ser tocado, onde o sofrimento seria instaurado? Passa a haver um novo corpo ou apenas uma nova modalidade de sofrimento?

Na clínica psicanalítica é possível fazer um recorte sobre os sintomas psicopatológicos atravessados pela inteligência artificial. Há relatos clínicos de muito medo e frustração. No discurso do paciente um robô pode roubar informações pessoais, saber mais do que se espera do sujeito que se coloca nessa relação. Como saber se está construindo algo com um humano ou com uma máquina? Esta se alimenta de humanos, interage e, quanto mais interação, mais informação para personalizar-se.

A clínica também constata que o adolescente, operando na inteligência artificial, cria personagens, permitindo que ele se veja num mundo imaginário que lhe permite falar desse sujeito e suas relações. O personagem criado – um avatar­ -, que para o sujeito é perfeito, precisa ser percebido como uma nova forma de diálogo, de linguagem e talvez fale mais do sujeito do que o próprio corpo que se apresenta para a sessão de análise.

 A maneira como a cultura lidará com os sintomas que se apresentam na interação do humano com a máquina poderá influenciar no que se apresenta na clínica cada vez com maior frequência.

A máquina recorta a realidade ou o mundo segundo uma programação que não é neutra. E a realidade é um recorte com instrumentos imaginários e simbólicos, no real. A inteligência artificial não consegue fazer parte desse recorte no real, está ligada ao simbólico e, portanto, não compartilha do laço social que só existe a partir de um desamparo estrutural do sujeito, de sua incompletude.

O ser humano é da ordem do real que é um dos três conceitos fundamentais da teoria lacaniana, juntamente com o simbólico e o imaginário. Para Lacan o real é aquilo que escapa à simbolização e à representação; é uma dimensão da experiência humana que não pode ser plenamente compreendida, simbolizada ou comunicada através da linguagem. Já a inteligência artificial é da ordem do simbólico, opera com base em sistemas de linguagem, algoritmos, símbolos e regras matemáticas, desprovida de subjetividade, consciência ou desejo.

Como seres humanos, somos seres da fala, somos falados e castrados pela linguagem, mas é também ela que nos possibilita criar o estilo singular com o qual cada um de nós se coloca no mundo. Com esse estilo único nos relacionamos com o outro.  Entendemos que a inteligência artificial nunca será “o outro” pela ausência de um sujeito, definido por Lacan como descentralizado, fragmentado e influenciado pelo inconsciente, pelas estruturas simbólicas e linguísticas, e pelos desejos reprimidos.

Na inteligência artificial não há inscrição da falta e isso talvez explique a incessante busca humana por aperfeiçoá-la, diante da possibilidade de tudo saber na lógica da completude, apta a dar uma garantia; ao nosso ver, mais uma ilusão criada pelo homem para aplacar a sua angústia. Jorge Forbes alerta que: “Se antes o mal-estar localizava-se na impossibilidade de realização, hoje ele se manifesta na angústia da escolha. Quanto mais aumenta o risco da escolha, maior a angústia”.[11]

Freud, em 1930, antevia que o homem se tornaria um “Deus de prótese”: Quando faz uso de todos os seus órgãos auxiliares, ele é verdadeiramente magnífico; esses órgãos, porém, não cresceram nele e, às vezes, ainda lhe causam muitas dificuldades. Não obstante, ele tem o direito de se consolar pensando que esse desenvolvimento não chegará ao fim exatamente no ano de 1930. As épocas futuras trarão com elas novos e provavelmente inimagináveis grandes avanços nesse campo da civilização e aumentarão ainda mais a semelhança do homem com Deus.[12]

Ademais, o programa pode realizar a vontade do programador, mas o sujeito programador não está no programa: ele pode ter traços, mas nada o define. Ele lê todas as marcas e interesses do sujeito para imitá-lo e até moldá-lo mentalmente; mas o que também define um sujeito? A imprevisibilidade, algo que se manifesta sem avisar.  Na vida, assim como na música “Eu e a Brisa”: “o inesperado sempre pode fazer uma surpresa”, trazendo a nossa diferença não capturada por algoritmos e, portanto, não passível de ser controlada. Há sempre um resto.

Entendemos, assim, que não obstante tenhamos a nossa subjetividade impactada pelos avanços da tecnologia que implica em novos desafios a serem enfrentados diariamente na clínica – novos sintomas que já exigem e exigirão cada vez mais novos bisturis para serem adequadamente manejados – nos parece certo que não há uma nova topologia a ser implementada. Os construtos teóricos de S. Freud e J. Lacan permanecem atuais e aptos, com a ajuda de novos manejos, ao enfrentamento dessas questões. Ligados ao real permaneceremos vivos. Jorge Forbes adverte que caberá à psicanálise do século XXI suportar a aposta na posição arriscada e criativa do sujeito – invenção e responsabilidade.

Referências:

ALEXANDRE, Laurent; BESNIER, Jean-Michel. Os robôs fazem amor?: o transumanismo em doze questões. São Paulo: Perspectiva, 2022. Tradução de: Gita K. Guinsburg.

FERRY, Luc. A revolução transumanista. Barueri: Manole, 2018. Tradução de: Éric R.R. Heneault.

 FORBES, Jorge. Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. Santana de Parnaíba: Manole, 2012.

FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer (1920). In: FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil: (” o homem dos lobos”): além do princípio do prazer e outros textos (1917-1920). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 161-239. Tradução de: Paulo César de Souza.

FREUD, Sigmund. Os instintos e seus destinos (1915). In: FREUD, Sigmund. Introdução ao narcisismo: ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 51-81. Tradução de: Paulo César de Souza.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização (1930). In: FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos(1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010. p. 13-122. Tradução de: Paulo César de Souza

LACAN, Jacques. Seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 1954-1955. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. Versão brasileira de Marie Christine Laznik Penot com a colaboração de Antonio Luiz Quinet de Andrade

LACAN, Jacques. Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, 1959-1960. 1. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1988. Versão brasileira Antonio Quinet.

PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Conferência no Círculo Psicanalítico MG. “Inteligência artificial e o sujeito da psicanálise: Lacan, leitor da cibernética”, 2020. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=p4FfhPbUm_c&t=34s


[1] FERRY, L.; FORBES, J. A revolução transumanista. Site do Instituto da Psicanálise Lacaniana, 2018. Disponível em: https://ipla.com.br/conteudos/artigos/a-revolucao-transumanista/  Acesso em: 07/11/2023.

[2] ALEXANDRE, L.; BESNIER, J. M. Os robôs fazem amor?:transumanismo em doze questões. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2022.

[3] ALEXANDRE, L.; BESNIER, J. M. Os robôs fazem amor?:transumanismo em doze questões. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2022.

[4] FREUD, S. Obras completas volume 18: o mal-estar na civilização e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[5] FREUD, S. Obras completas volume 14: além do princípio do prazer e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[6] FREUD, S. Obras completas volume 12: Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[7] FREUD, S. Obras completas volume 18:o mal-estar na civilização e outros textos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

[8] LACAN, J. O seminário livro 7: a ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1982.

[9] ALEXANDRE, L.; BESNIER, J. M. Os robôs fazem amor?:transumanismo em doze questões. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2022.

[10] LACAN, J. O seminário livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. 2 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.

[11] FORBES, J. Inconsciente e responsabilidade: psicanálise do século XXI. 1 ed. São Paulo: Editora Manole, 2012.

[12] FREUD, S. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1969, p. 98.