Da vergonha moral à vergonha real 12/09/2012

Por Elizabeth Almeida

“Vocês que estão no palácio/Venham ouvir meu pobre pinho /
Não tem o cheiro do vinho /Das frutas frescas do Lácio /
Mas tem a cor de Inácio /Da serra da Catingueira […]
Pois meu verso é feito a foice/Do cassaco cortar cana /
Sendo de cima pra baixo /Tanto corta como espana /
Sendo de baixo pra cima /Voa do cabo pro mato/E se dana”

O Cordel Estradeiro -Cordel do Fogo Encantado

Introdução

O presente estudo apresenta dois objetivos. O primeiro, deles, singelo, porém “honrado”, é o de, enquanto participantes do Corpo de Formação do Instituto de Psicanálise Lacaniana, nos apropriarmos daquilo que herdamos de modo a fazê-lo nosso. Em outras palavras, apresentarmos um texto que fosse, ao mesmo tempo, percurso e resultado: percurso no sentido da apresentação das leituras realizadas nesse momento de nossa formação e resultado no sentido de consistir em materialização da apropriação dessas leituras por meio da escrita.

O segundo objetivo, mais ambicioso, é o de honrar a herança que recebemos transmitindo-a de modo a fazer reverberar ¾ como os tambores da canção que escolhemos como epígrafe ¾ a visada da psicanálise a respeito dos conceitos que decidimos explorar, a saber, culpa e vergonha.

I – Antes da vergonha, a culpa

Sigmund Freud, no ano de 1930, escreve Omal-estar na civilização (Das Unbehagen in der Kultur), movido pelo sofrimento vivido pela humanidade no período entre as duas grandes guerras mundiais. A primeira guerra mundial tinha deixado o saldo devastador de 10 milhões de mortos e 20 milhões de feridos nas batalhas e entre a população civil. Nos últimos anos da guerra e, principalmente, nos anos que se sucederam, Freud sofrera em Viena fome e frio. Sobrevivera com doações e empréstimos de amigos mais abastados. Conseqüência da guerra, a gripe espanhola tinha matado, em 1920, sua filha Sophie.

Diante da experiência da guerra e de suas observações clínicas psicanalíticas, Freud volta, em vários escritos, sua atenção para a guerra e a morte, para a violência e o direito, para a destruição e a cultura. Em 1930, um ano após a quebra da bolsa de Nova Iorque e o início de outra grande depressão econômica, Freud observa os sinais de uma nova guerra e da ascensão do nazismo na Alemanha e na Áustria. O fracasso da Liga das Nações lhe demonstra a fraqueza dos laços comunitários e culturais que, para ele, eram os únicos meios de preservar a humanidade contra a barbárie.

Ao examinar o mal-estar na civilização, Freud compreende que a civilização é construída sobre uma renúncia à satisfação pulsional, que pressupõe a não-satisfação de pulsões poderosas. Essa renúncia se dá frente às restrições impostas às satisfações.

Freud discute as origens externas das restrições. Os mecanismos de contenção são adquiridos no processo de socialização, a cargo dos dispositivos sociais, principalmente aqueles incorporados pela família e reproduzidos, naquele momento, pela figura paterna: o pai como representante da lei, da moral, da interdição e, finalmente, como representante de Deus. Enfim, aquele que determina, julga, aprova ou, principalmente, pune.

Ao prosseguir em sua investigação, Freud chega à hipótese do superego, pela qual o pai e as proibições que o caracterizam não precisam mais estar situados externamente, pois já foram introjetados. Em outras palavras, o superego pode ser compreendido como uma parte da consciência que faz o papel de agente regulador, função anteriormente atribuída ao pai.

Diante desta “consciência” reguladora, que opera internamente, o sentimento de culpa se destaca nesse texto. Torna-se o eixo. Temos aí o “homem culpado”. Ele relaciona-se com a punição em função de acusações externas e também em seu íntimo, onde, sob a forma do sentimento de culpa, ele próprio, também exige uma punição.

Há um ponto a ser destacado. Nesse momento da elaboração freudiana, fazer algo proibido ou desejar, ter a intenção de fazer, ganha o mesmo estatuto, exigindo, por isso, punição, tanto num caso como no outro.

Este é o mundo de Freud. Construído sobre princípios morais rígidos e delimitados. Dele extraímos “O homem culpado”, o homem que se restringe mediante o medo da punição e do desacordo.

A partir da constatação do sentimento de culpa delineado por Freud e compreendido por nós como uma vergonha moral, perguntamos: reduzindo as exigências da sociedade, reduzindo as exigências do superego, haveria retorno à possibilidade de felicidade e de harmonia? Ou haveria o perigo de o homem se colocar brutalmente aberto à satisfação de todos os seus impulsos?

Movidos por tais indagações, vamos em busca de uma passagem, de uma leitura da mudança sofrida na história e no homem; no sentimento de culpa, equivalente a vergonha moral, para o da vergonha. Nessa empresa, vamos rápido, num salto. De Freud a Jorge Forbes.

Forbes, em seu texto EROTISMO ¾ Guideline, considerando as restrições exteriores, antes maiores, agora menores, dedica-se ao exame de um aspecto específico da experiência humana, o erotismo. Estaria ele correndo mais à solta? E responde:

“Nada mais garantido. O erotismo humano não é maior ou
menor em decorrência de restrições exteriores, mais ou
menos moralistas; que engano! O caráter enviesado do nosso
erotismo é constitutivo do próprio ser humano… independente
da supostas liberdades externas.”2

No despadrão das restrições, aumenta a responsabilidade de cada um…

É com essa idéia que avançamos em nosso trabalho, buscando agora em Lipovetsky uma leitura que avance nossa compreensão sobre as transformações ocorridas para que possamos sustentar nossa investigação da passagem de um homem culpado para um outro homem… envegonhado.

II –De uma moral culposa à decepção generalizada

Na tentativa de apreender os indícios que pudessem dar a ver quais seriam os elementos que estariam ligados ao mal-estar contemporâneo, fomos motivados a recorrer à produção de Gilles Lipovetsky. Da obra do autor que, para boa parte da crítica, ficou conhecida pelo otimismo, selecionamos o texto A espiral da frustração.

Nessa espécie de entrevista, que inicia o conjunto de textos que compõem a obra A sociedade da decepção, Lipovetsky apresenta um panorama do percurso que desenvolveu em sua reflexão. Relembra que o contexto de lançamento de A era do vazio, seu primeiro livro, foi a virada da década de 70/80, quando o marxismo ainda mantinha em voga pensamentos e explicações sobre a sociedade, tendo como referência os conceitos de domínio, alienação, manipulação, entre outros.

Para Lipovetsky, que investia em uma reflexão que considerava o indivíduo como protagonista social, tais conceitos não serviam mais para as sociedades modernas. Dando continuidade a sua reflexão, em Império do Efêmero, o autor desejou “esboçar um ensino teórico sobre uma realidade plural, multidimensional, mas dificilmente vivida (inclusive pelos antagonistas declarados da modernidade) como se fosse um inferno absoluto.” (Lipovetsky:2007:3). Nessa realidade, segundo o autor, o universo social conteria elementos capazes de, simultaneamente, induzir ao otimismo e ao pessimismo.

Dentro desse contexto, Lipovetsky indica que a mudança de tom em sua obra está ligada a dois fatores apresentados pela sociedade: o primeiro seria o de uma espécie de ausência de desejo, decorrente da liberação que perpassa a época atual. Essa sensação está articulada com o fato de não se desejar o que já se tem. O segundo fato seria a sensação decorrente da globalização, que “esfumaça” os contornos dessa sociedade, gerando um sentimento que se assemelha ao mal-estar descrito por Freud.

É em relação à idéia de decepção que a reflexão de Lipovetsky apresentou-se como algo bastante caro à empresa que assumimos, por apresentar elementos para uma reflexão a respeito da passagem do sentimento de culpa ao sentimento de vergonha.

Ao fazer a análise de uma sociedade onde a quebra generalizada dos padrões nos recoloca num mundo totalmente diferente daquele vivido e analisado por Freud, no qual as pessoas eram limitadas em suas satisfações por exigências sociais rígidas e padronizadas, Lipovetsky aponta o seguinte paradoxo: embora vivamos num mundo em que a satisfação é permitida e chega até a ser experimentada como uma exigência, o mal estar permanece.

De certa maneira, podemos compreender que, em relação à época analisada por Freud, o mal estar permaneceu, embora tenha mudado de motivo: antes, provinha de uma espécie de segurança, decorrente da existência da organização pai-cêntrica3 da sociedade, que tolerava uma liberdade pequena demais, atualmente, provêm de uma espécie de liberdade,de procura de prazer quase obrigatória.

No salto que realizamos de Freud a Forbes, na tentativa de compreender a passagem apresentada pela civilização, cuja conseqüência foi o surgimento do homem envergonhado, Lipovetsky apresenta um ponto de apoio, ao afirmar que

“…vivemos em uma sociedade da superabundância de ofertas
e da desestabilização da cultura de classe. São essas
condições que criam as condições propícias para uma
individualização extrema das preferências de cada um.
(Lipovetsky:2007:34) ”

Tal afirmação remete-nos ao contexto social cuja análise permitiu a Forbes cunhar o conceito de homem desbussolado4. É no homem desbussolado, que não possui mais “o norte da mão do pai que, por ter o saber, lhe assegurava o caminho a seguir”, que se pode identificar a vergonha real, ponto capaz de atuar como norte ao indiciar o que, para cada um desse espécime, justifica sua vida.

III – Vergonha e responsabilidade

Em épocas anteriores as pessoas se pautavam no outro como padrão, como ponto de referência, ponto de ideal. Frente a isso, o sentimento de culpa tornava-se inevitável, pois havia sempre um ideal externo, cujos limites estavam bem e previamente estabelecidos. Personificados na figura do pai, compreendido como ideal

Hoje, com a conseqüente quebra dos modelos, com a experiência do “desbussolamento” causada pela queda da sociedade pai-cêntrica, para usarmos a expressão de Forbes, o que temos é ausência de limites. Mais: em contraposição a civilização de Freud, carcterizada pela restrição da satisfação das pulsões, temos o estímulo exacerbado, quase um compromisso às avessas, de viver o gozo individual ao extremo.

Antes um laço submisso e, ao mesmo tempo, opressor, sustentado pela culpa. Agora, o laço que Forbes chama de Novo Amor, sustentado na diferença, na singularidade e na vergonha. Vergonha, esta que, segundo ele, se ultrapassada, merece a morte. Se sustentada, justifica a vida.

Pertencente ao campo do real, experimentada no corpo, a vergonha que pode ser experimentada em nossa época localiza-se no interior do homem desbussolado. Mas apenas daqueles espécimes que se dão ao luxo de aceitar o desafio de encontrar o ponto que, de acordo com sua singularidade, atue como bússola, pautando suas ações.

Em outras palavras, ao encerrarmos o breve percurso da reflexão desenvolvida no da investigação aqui apresentada ¾ e do módulo do Corpo de Formação do qual ela advém ¾ apresentamos a seguinte constatação : a civilização da época analisada por Freud em O mal-estar na civilização tornava possível a existência de um sentimento de culpa, experimentado pelo indivíduo frente às restrições que lhes eram impostas externamente, pela sociedade na qual ele estava inserido: vergonha moral era o nome do fruto dessa organização.

No mundo hipermoderno no qual está inserido, o homem desbussolado experimenta um mal-estar que advém do sem número de ofertas que lhe são apresentas. Se antes ele podia ultrapassar muito pouco do que fora estabelecido pela sociedade, hoje, é incitado superar-se e, também a superar o que existe. Sempre. O tempo todo e em todos os campos.

Nesse contexto de quebra de restrições, a vergonha real, surge como ponto localizado não mais externamente, mas no próprio homem hipermoderno. Mas não de todo homem, apenas daqueles que decidem pagar o preço de buscar a sua singularidade, a qual, uma vez exercida, atuará como bússola capaz de guiar a pessoa no estabelecimento de novos laços entre ele e os outros. Entre ele e a vida.

É nesse ponto que a visada da psicanálise surge de maneira articulada com a epígrafe que escolhemos. Ao atuar, conforme vimos apreendendo em nossa formação, como arauta da responsabilidade, a psicanálise apresenta ao homem desbussolado o convite a “bussolar-se” segundo a sua singularidade, o seu desejo. A encontrar o desejo e a sustentá-lo no mundo, fazendo laço com os outros. Diante do coro daqueles que, estáticos, lamentam a queda da sociedade pai-cêntrica, traz, por meio do convite à responsabilidade, a “danação” do convite a uma decisão, a qual se sustenta no ponto (da vergonha real) que remete aos versos da canção Cálice, por ser “aquilo que não tem nome, nem nunca terá,”, que não faz sentido, mas que dá sentido a existência de uma pessoa.

Referências Bibliográficas:

BUARQUE, Chico. NASCIMENTO, Milton. O Que Será (À flor da Terra). Disponível em: http://chico-buarque.letras.terra.com.br/letras/7583/.Acesso em 2 de julho de 2007.

CORDEL DO FOGO ENCANTADO. O Cordel Estradeiro. Disponível em: http://cordel-do-fogo-encantado.letras.terra.com.br/letras/91524/. Acesso em: 1 de julho de 2007.

FREUD, Sigmund. (1927-1931). O mal estar na civilização. In: Edição Standard das obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Volume XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

FORBES, Jorge. Você quer o que deseja? São Paulo: Best Seller, 2004.

EROTISMO ¾ Guideline. Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=98.
Acesso em 29 de junho de 2007.

A Psicanálise do Homem Desbussolado – As reações ao futuro e o seu tratamento Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=72. Acesso em 1 de julho de 2007.

LIPOVETSKY, Gilles. A sociedade da decepção. São Paulo: Manole, 2007.

Referências:

1 Trabalho realizado sob orientação da tutora Elizabeth Almeida, em função do módulo o Mal estar na civilização, do Corpo de Formação em Psicanálise, promovido pelo Instituto de Psicanálise Lacaniana – IPLA.

2 FORBES, Jorge. EROTISMO ¾ Guideline . Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=98. Acesso em 29 de junho de 2007.

3 FORBES, Jorge. A Psicanálise do Homem Desbussolado – As reações ao futuro e o seu tratamento Disponível em: http://www.jorgeforbes.com.br/br/contents.asp?s=23&i=72. Acesso em 1 de julho de 2007.

4 Id. Ibid.

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