Liége Lise
Neste segundo semestre de 2021, no Curso da TerraDois, estamos estudando o texto Die Verneinung, de Sigmund Freud, escrito em 1925 e traduzido como A Negação ou, como sugere Jacques Lacan, A Denegação. Entre os textos de leitura que compõem o programa de estudo, coube a mim apresentar a Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud, publicado nos Escritos, e parcialmente apresentado no capítulo V do Seminário I, Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954.
Para fazer esse exercício, me coloquei uma pergunta: por que Lacan, na reordenação do campo analítico, a partir da experiência clínica, privilegiou o conceito da Verneinung de Freud, para articulá-lo com a noção de Resistência?
I – O contexto – Seminário I e o retorno a Freud
No ano de 1953, Lacan rompe com a Sociedade Psicanalítica de Paris. Dentre as razões, estão as divergências relacionadas à formação do analista e às sessões curtas praticadas por ele. É também a partir deste ano, no Hospital Saint-Anne, que ele começa o seu ensino na transmissão dos seus Seminários. No primeiro deles, Os escritos técnicos de Freud, 1953-1954, propõe a releitura dos textos psicanalíticos de Freud, opondo-se às reduções e aos desvios praticados pelos pós-freudianos. Nessa orientação, a análise era reduzida à função do “eu” e a clínica privilegiada como uma técnica. O conceito de resistência, os mecanismos de defesa e a contratransferência, entendida a partir da relação dual analista e analisando, eram o que orientava a direção do tratamento, que tinha como objetivo o fortalecimento do ego e, ao final da análise, o analisando identificado ao ideal da pessoa do analista.
O retorno a Freud, proposto por Lacan, buscou retirar a psicanálise da imaginarização à qual ela havia sido reduzida. Ao logificar o inconsciente a partir do simbólico, trouxe novamente à cena a descoberta freudiana: o inconsciente. É a partir das funções da fala que o inconsciente pode ser privilegiado na experiência. A ênfase está na escuta e não no “eu sinto que” baseado na contratransferência. Ao afirmar que o inconsciente é o discurso do Outro, Lacan estabelece a máxima de que o inconsciente é decorrente da própria estrutura da linguagem: o único objeto e o único meio da prática analítica. É no discurso, base da comunicação humana, que o recalcado se manifesta.
Na primeira parte do Seminário 1, sob o título O momento da resistência, Lacan dedica sete capítulos ao exame crítico da resistência. Afirma que ela só pode ser compreendida a partir do discurso, sob transferência, como se manifesta na análise.
II – Do conceito de Resistência
O conceito de resistência, está desde o início da obra de Freud, associado à técnica, ao manejo da transferência e à interpretação, ligado à própria natureza do tratamento analítico. No Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis definem: chama-se de resistência tudo o que nos atos e palavras do analisando, durante o tratamento psicanalítico, opõe-se ao acesso deste ao seu inconsciente.
Nos Estudos Sobre Histeria, de 1895, Freud relaciona a resistência ao trabalho do próprio inconsciente: quanto mais se chega próximo ao núcleo central patogênico é como se agisse uma força de repulsão impedindo a rememoração. Já no texto de 1912, A Dinâmica da Transferência, em seu duplo caráter, positiva e negativa, a transferência funciona como resistência, atualizando moções ternas e agressivas do analisando dirigidas ao analista, inviabilizando a verbalização dos conflitos e gerando um obstáculo ao trabalho da análise. A partir da segunda tópica, – isso, eu e supereu -, a resistência está no nível do “eu” e este trabalhando em prol das forças psíquicas que produziram o recalque. Referida à pulsão de morte, a resistência está ligada à compulsão à repetição e, no que tange ao superego, à culpabilidade e à necessidade de punição.
A crítica que Lacan faz à resistência é a partir do entendimento da noção do eu, privilegiado na sua acepção imaginária. O eu, na psicanálise, é resultado de um processo de identificação na alienação a um outro. Um engodo. A criança assume como sendo sua a imagem em espelho do outro, a partir da qual antecipa sobre si uma representação de si mesma. “O eu de que estamos falando é absolutamente impossível de distinguir das captações imaginárias que o constituem dos pés a cabeça, tanto em sua gênese como em seu status, em sua função como em sua atualidade, por um outro e para um outro.” (Lacan. p.375)
A agressividade é inerente a esse processo de constituição narcísica. Ela é um componente fundamental e estará presente também, na experiência analítica. Daí dirigir o tratamento privilegiando a resistência e as defesas é reforçar a dualidade imaginária, sob risco de transformar a análise em um jogo de força, visando à ortopedia do “eu” em oposição ao entendimento de que ela, a análise, se dá a partir de um movimento dialético.
Numa análise, a resistência não está ao lado do analisando, está ao lado do analista. Lacan propõe evitar o contrassenso de reduzir a análise ao âmbito da resistência e da sugestão e, desta forma, devolve o sentido à escuta do inconsciente, retirando-a do campo do imaginário e recolocando-a no campo do simbólico. Propõe que os sonhos, os atos falhos e sintomas sejam privilegiados como significantes, inscritos na cadeia de um discurso inconsciente, devolvendo assim, na palavra, a verdade e o sentido da experiência analítica.
Para levar ao cerne da nova questão levantada no exame da resistência, Lacan convidou Jean Hyppolite – filósofo dedicado ao estudo de Hegel – para que comentasse o texto A Negativa, de Sigmund Freud. O tema é caro e requer um trabalho dedicado. Após esse este comentário, Lacan apresentou uma resposta ao Comentário de Jean Hyppolite sobre a “Verneinung” de Freud.
No texto A Negativa, Freud discorre sobre como um conteúdo recalcado, inconsciente, chega à consciência sem que necessariamente o sujeito consinta com o que nomeou. Nas palavras de Freud: “A negação é um modo de tomar conhecimento do reprimido, na realidade já é um levantamento da repressão, mas naturalmente não a aceitação do reprimido. Aqui se pode ver como uma função intelectual se dissocia do processo afetivo”. O pensamento ganha uma autonomia em relação ao recalcado. Ao negar alguma coisa em juízo, este é o substituto intelectual do recalcamento, mantendo ainda o conteúdo recalcado. Há um reconhecimento do recalcado, porém, sem haver a aceitação do mesmo.
Por que Lacan, na reordenação do campo analítico, a partir da experiência clínica, privilegiou o conceito da Verneinung de Freud, para articulá-lo com a noção de Resistência?
Na tradução ao título do texto freudiano, Lacan sugere o termo “denegação” ao invés de “negação”. Segundo Roland Chemama, no Dicionário de Psicanálise, denegação é uma atitude psicológica que consiste, para um sujeito, em rejeitar um pensamento por ele enunciado, negando-o. O recalque é reiterado na sua dimensão linguageira, o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Sendo assim, o fulcro da experiência analítica não está em privilegiar a resistência e sim, abrir para a escuta do estranho.
Ouso responder à pergunta, melhorando a qualidade da dúvida e abrindo a outras questões. Como no verso de Gonzaguinha – e a pergunta roda e a cabeça agita – na música “O que é, o que é?”, pergunto:
· Na dimensão do real, a denegação recoloca o inconsciente na visada do que “não cessa de se escrever”?
· Diante da castração, a Verneinung aponta para a insondável decisão do ser na escolha pela neurose, psicose ou perversão?
· A Verneinung pode ser articulada ao “troumatisme”, à nossa inessência e à responsabilidade pela escolha de como fazer com o mais forte do que eu?
TerraDois, agosto 2021
Liége Lise é psicanalista. Atende na Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano – USP/SP. É membro do IPLA- Instituto da Psicanálise Lacaniana- SP