As crises do pensamento racional e a ética 12/09/2012

Por Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri

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O pensamento ocidental parece revirar-se e mudar em função de crises: a cada alteração político-social revolucionam-se áreas das religiões, às artes, às ciências, acarretando mudanças comportamentais e como conseqüência, mudanças no modo de análise das morais, mudanças na ética.
A primeira grande crise enfrentada pelo mundo ocidental (legado de gregos e romanos) aconteceu na passagem do pensamento mitológico para o pensamento filosófico entre os gregos. A mudança do mito para o pensamento racional faz surgir um homem que abandona a explicação mitológica ou sobrenatural e busca uma explicação natural para si e seu mundo.

Pode-se localizar uma exacerbação dessa primeira crise com Sócrates e sua visão social e comunitária. O pensamento racional abandona as causas físicas e passa a preocupar-se com o destino humano; a ética enquanto estudo das relações entre os homens, enquanto pensamento sobre as ações morais, começa a aparecer a partir daí.
Na esteira de Sócrates surge seu discípulo Platão, um dos filósofos de maior influência na história da humanidade ocidental, que leva a racionalidade socrática e a busca do sentido preciso dos conceitos às últimas conseqüências, propondo uma ética puramente racional.

Aristóteles, discípulo de Platão e uma das maiores mentes já produzidas pelo mundo ocidental, entra no furacão da racionalidade e, embora afastando-se da orientação de seu mestre, talvez excessivamente matemática para um amante da biologia, acaba sendo historicamente considerado o criador da Lógica. Ele pensa a ética no contexto da pólis, sem desconsiderar as paixões, naturais no ser humano, o que influenciaria definitivamente qualquer ética, retirando a possibilidade de uma solução puramente lógica, pois o homem para chegar à perfeição deve alcançar seu objetivo final – a felicidade.

Outra crise ocorre, formando-se a partir do ano I da Era Cristã, com a revolução trazida pelo pensamento cristão. O novo pensamento se difunde; o cristianismo, de origem judaica, desenvolve-se em Roma, umbigo do mundo, que havia conquistado a Grécia e absorvido seus valores: a herança filosófica grega instala-se no meio cristão. A nova crise racional tira do centro o homem e aí coloca Deus e a doutrina cristã da alma eterna. Considerando-se a história do período, a desagregação e queda do Império Romano acarretou desorganização política e subseqüente convulsão social, ao que parece, sem paralelo no mundo, face a seu montante. O desaparecimento dos grandes centros culturais restringe a cultura aos Monastérios, ficando as preocupações filosóficas ligadas à problemática religiosa, no entanto, as pequenas seitas que proliferaram no mundo helenístico sucedendo à Filosofia Grega Clássica, continuaram a existir assegurando (em círculos restritos) a sobrevivência da herança antiga, pelo menos até Constantino declarar cristão o Império Romano.

Do Século VIII ao Século XIV a Igreja Romana dominou a Europa, criou uma nova moral, coroou reis, organizou Cruzadas à Terra Santa, fundou as primeira Universidades. Nesse período a Filosofia Medieval ou Escolástica chega a uma exacerbação da lógica, quando o pensamento racional tenta provar a existência de Deus e da alma imortal, por exemplo.

No período que vai do Século XIV ao XVI gesta-se nova crise, a terceira, a idéia da liberdade política é reencontrada, colocando-se o ser humano como artífice do seu próprio destino, através do conhecimento, da política, das técnicas e das artes. Nicolau Maquiavel nasce no olho do furacão (1469), e percebe que o poder fundava-se apenas em atos de força, e pela força era deslocado – nem religião, nem tradição, nem vontade popular legitimavam o soberano.

Com a crise gestada na Renascença, o mundo prepara-se para uma nova racionalidade, a terceira crise do pensamento.

Descartes, a quem atribuímos a teorização da modernidade, inaugura o que se pode chamar de racionalidade moderna, determinante maior do pensamento ocidental até o final do Séc. XIX e começo do Séc. XX. Essa, caracteriza-se em primeiro lugar pela separação radical entre corpo e alma, valorizando a alma, que em Descartes eqüivale a pensamento, espírito, raciocínio lógico: o corpo passa a segundo plano, como mais difícil de conhecer do que a alma.
A racionalização cartesiana atinge seu ápice no final do Século XIX, momento mesmo em que se entra na “crise da modernidade”.

Immanuel Kant, cujas idéias parecem ser ponto de convergência do pensamento filosófico anterior, além de ponto de partida obrigatório das reflexões nos séculos XIX e XX, faz uma análise crítica do universo espiritual humano e volta suas preocupações basicamente para duas questões: o problema do conhecimento, suas possibilidades, seus limites e sua esfera de aplicação; o problema da ação humana, diante do conhecimento humano possível, ou seja, o problema moral, o que fazer, como agir em relação ao semelhante, como alcançar a felicidade ou o bem supremo.
O imperativo categórico kantiano é puramente racional e vazio, totalmente desvinculado de qualquer condição ou empiria:

“Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer-te sempre como princípio de uma legislação universal”.

Nietzsche, em seu feroz e ético questionamento da moral, repensa radicalmente seus fundamentos e a transforma em um problema, um além do “dever kantiano”, embora seja tão duro ou mais do que o próprio Kant, quando se trata de moral.
Em plena “crise da modernidade”, surge Freud e a Psicanálise, num mundo onde crenças e valores são questionados. Lacan, voltando-se para Freud, leva a Psicanálise às últimas conseqüências: o que teremos depois de Lacan? O fim da Psicanálise como vem sendo profetizado há muito?

Maria Bernadette Soares de Sant’Ana Pitteri
Coordenadora do Núcleo de Filosofia