A tarefa hercúlea de Jacques Lacan 07/10/2021

Alain Mouzat [1]

Quem varrerá esse estrume descomunal dos estábulos de Augias, a literatura analítica?

Jacques Lacan [2]
La psychanalyse d'aujourd'hui - Collection l'actualité psychanalytique - 2e  édition abrégée. by S.Nacht: bon Couverture souple (1968) | Le-Livre

Apresento aqui alguns apontamentos da leitura que fiz de um artigo de Sacha Nacht publicado em 58 na Psicanálise de hoje, coletânea de artigos mais conhecida talvez pelas menções e críticas que Lacan faz dela na Direção do tratamento e os princípios do seu poder.

Achei que podia trazer alguns elementos contextuais sobre as posições polêmicas de Lacan no início de seu ensino, e das quais ele se explica no seminário 11, no momento (1964) em que estão preparando a publicação dos escritos (1966):

Há algumas pessoas aqui, eu sei disso, que se estão introduzindo ao meu ensino. Elas se introduzem através de escritos que já fizeram época.

Eu gostaria que elas soubessem que uma das coordenadas indispensáveis para apreciar o sentido desse primeiro ensino deve ser encontrada no seguinte: que elas não podem, onde estão, imaginar até que grau de desprezo, ou simplesmente de desconhecimento para com seu próprio instrumento, podem chegar os praticantes. Que elas saibam que, durante alguns anos, foi preciso todo o meu esforço para revalorizar aos olhos deles esse instrumento, a fala – para lhe devolver sua dignidade, e fazer com que ela não seja sempre, para eles, essas palavras desvalorizadas de antemão que os forçavam a fixar os olhos em outra parte, para lhes encontrar um fiador.  (Lacan, Seminário 11, p. 24).

Já falei – e acho que foi suficiente –  da cisão de 1953[3], da luta intestina que agitou a Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP)  e que podemos reencontrar na carta de Jacques Lacan a Rudolph Loewenstein[4]. Detive-me mais longamente na publicação da coletânea de artigos de 56 de La Psychanalyse d’Aujourd’hui – A Psicanálise de Hoje. Entre os primeiros artigos, o de Maurice Bouvet, La clinique psychanalytique, la relation d’objet, e o de Sacha Nacht, La thérapeutique psychanalytique, escolhi apresentar o de Sacha Nacht porque propõe um quadro geral da orientação tanto da teoria quanto da prática clínica.

O artigo é dividido em duas partes. A primeira, “A evolução da terapêutica analítica” começa com um retrospecto da teoria analítica – da primeira descoberta do inconsciente  – e Sacha Nacht  não deixa de apontar que Freud foi precedido por Janet e Breuer – até a mudança de rumo da segunda tópica que ele resume assim:  “a psicanálise deixava de ser um ‘estudo’ apaixonante do inconsciente para se tornar um trabalho de reorganização de um Eu perturbado pela pressão das pulsões, de um lado e pela exigências do meio ambiente, por outro lado”.

Assim, Nacht faz uma apresentação rápida, da evolução das conceituações freudianas, insistindo nas mudanças impostas pela limitação da rememoração: a cura não aparece ligada à supressão da amnésia infantil, mas às modificações da personalidade que a terapêutica analítica é capaz de provocar. E Nacht cita F. Alexander: “A gente não se cura ao lembrar, mas lembra ao se curar”.

Outra dimensão que marca essa evolução da terapêutica analítica, é a dimensão do afetivo, introduzida, diz Nacht, mais especificamente por Ferenczi e Rank (opondo a reconstrução intelectual da interpretação ao vivido afetivo do paciente).

Na segunda parte do artigo, “Princípios e meios da terapêutica psicanalítica de hoje”, Nacht vai apresentar os processos que levam à cura pela psicanálise: lembrando que o “aparelho psíquico” freudiano é constituído de três instâncias, o Id, o Ego e o Superego, cuja interação determina a atividade psíquica do indivíduo, mas também constrói ao longo de sua vida, a sua personalidade.

Assim, diz Nacht, aos poucos se renunciou a procurar a fonte dos transtornos psíquicos num evento traumático, mas a encontrá-las num “feixe de condições desfavoráveis para o desenvolvimento natural, harmonioso, ‘normal’ da personalidade.”

Mas para obter mudanças “só o Ego e o Superego são passíveis de ser influenciados pelo tratamento”. Não podendo intervir no Id, resta abrandar o Superego, que vai poder permitir o que era antes proibido e que será depois “acolhido, integrado, diferenciado e enfim agido pelo Ego em vista de obter satisfações realizáveis.”

A situação analítica com acolhida permissiva autoriza então o Superego a ser mais tolerante, e o Ego a se tornar mais corajoso e aceitar as exigências do Id. Uma cura que vem como efeito do “clima” acolhedor da própria situação analítica.

Mas isso é um ganho fácil e efêmero, “uma cura por fora”…  Trata-se de obter “a cura por dentro”. Na página 132, Nacht explica:

Digamos, em resumo, que o “clima” da situação psicanalítica favoreceria por si só uma tendência espontânea, natural, à cura por “fora” (a criança tornando-se melhor ao encontrar pais melhores). Mas a cura por “dentro” – a verdadeira – só pode ser obtida através de uma participação consciente do sujeito nessa espécie de diálogo, participação não apenas vivida por ele, mas também explicitada, atualizada, pensada, a fim de poder ser integrada pelo Ego.

O papel ativo do analista é, pois, duplo: através de suas intervenções, ele provoca no sujeito reações que animam a situação analítica com seu conteúdo emocional e afetivo, ao mesmo tempo que, através de suas interpretações, ele deve tornar essas reações acessíveis ao pensamento consciente. São essas “tomadas de consciência” sucessivas que, a longo prazo, determinam as modificações do Ego que o tratamento se propõe a obter.

Mas, essas mesmas reações, quer surjam espontaneamente na situação analítica, quer sejam ativamente determinadas pela intervenção do analista, provocam no sujeito resistências que tentam se opor às tomadas de consciência e, assim, à cura. O analista se encontra assim paradoxalmente na origem de resistências opostas à cura e também na origem dos meios de consegui-la.

Assim se manifesta sua dupla função na evolução do tratamento: ele provoca a eclosão de estados emocionais que, analisados, transformam o Ego, mas suscita também uma oposição a algumas de suas manifestações, ou à análise destas. Assim, ele se vê curiosamente levado ao mesmo tempo a favorecer e a entravar toda mudança possível do Ego, pelo menos enquanto as resistências não são seriamente afetadas pelo tratamento.

A técnica psicanalítica tende precisamente a manter um clima que favorece as manifestações emocionais, já que suscita constantemente tomadas de consciência, ao mesmo tempo que procurar destruir as resistências que elas provocam, à medida que vão aparecendo.

É tudo isso que torna a transferência o pivô desta técnica. Freud fez essa descoberta logo no início de suas pesquisas, mais exatamente quando abandonou o método catártico. Todos os seus escritos fazem da transferência o instrumento por excelência da terapêutica analítica.

Me perdoem a longa citação.

Resumindo:

Para Nacht, o analista teria um duplo papel:

  • por suas intervenções ele provoca reações que animam a situação analítica com seu conteúdo emocional e afetivo;
  • por suas interpretações torna essas reações acessíveis ao pensamento consciente;

E isso provocaria, no analisado, resistências. O analista se encontra paradoxalmente na fonte das resistências opostas à cura, e também na fonte dos meios de chegar nela.

É tudo isso que faz da transferência o pivô dessa técnica.

No entanto, para Freud a transferência (e destarte a situação analítica) representava um movimento em sentido único, do analisado ao analista.

Hoje, porém, todos os psicanalistas, diz ele, estão convencidos da importância primordial do modo de troca, da relação a dois que se cria entre analista e analisado assim que se instala a situação analítica. Deste fato, o papel da contratransferência toma um valor pelo menos igual ao da transferência.

A situação analítica com mão única promove a reconstrução do passado, mas a via mais completa da análise, incluindo um modo relacional de troca, a contratransferência, condiciona “uma reeducação emocional”.

Comentários:

Lendo o artigo de Sacha Nacht, entendi as críticas de Lacan na Direção do tratamento e na Introdução ao Comentário de Jean Hyppolite. De fato, a exposição da “terapêutica psicanalítica” de Nacht expõe muito seu autor, e Lacan só teve que catar as pérolas para alimentar seus sarcasmos: a cura por dentro e por foraa reeducação emocionalafinal um sonho é apenas um sonho, o superficial e o profundo, são palavras, fórmulas pouco conceitualizadas das quais Lacan vai se alimentar.

Lacan faz um diagnóstico: na falta de poder expor os conceitos, a análise das resistências desemboca numa versão psicologizante da sugestão, em nome da contratransferência. Dito de outra maneira: “Neles, com efeito, trata-se apenas, na impossibilidade de se adstringirem às vias dialéticas em que se elaborou a análise, e na falta de talento para voltar ao uso puro e simples da sugestão, de recorrer a uma forma pedante desta última, em favor de um psicologismo que permeia a cultura.” (Introdução ao comentário de Jean Hyppolite, Escritos, P.377- grifo nosso)

Assim todos os conceitos parecem alisados, achatados; as dúvidas e os problemas desaparecem, passamos longe de repetição, pulsão de morte, castração…  Uma paisagem que carece muito de “dialética”.

Mas afinal, a crítica é de 1954. E até um ano antes todos partilhavam as mesmas tribunas e instituições (a SPP e seu Instituto), publicavam na mesma revista (a Revue française de psychanalyse), assistiam e intervinham nos mesmos congressos (Congresso dos psicanalistas dos países de línguas romanas). Tive a curiosidade de buscar nas revistas da época conservadas nos arquivos da BNF (Biblioteca Nacional da França), acessível no portal Gallica, traços dessa convivência, e também consultei um artigo muito interessante de um psicanalista da SPP, Alain de Mijolla[5], historiador emérito da psicanálise, sobre a história dos Congressos de psicanalistas de língua francesa (Congresso fundado em 1926, o nome mudou várias vezes).

Apesar das denegações do presidente da “Conferência” de 1928 que sublinha a “cordial emulação”, a ausência de “clãs ofensivos” e de “espírito político” e reafirma o “profundo respeito pela pessoa e pela obra de Freud” que reina na SPP… (Rev. franç. Psychanal., II, 1, 1928, p. 178-194.), ao ler a Introdução ao discurso de Jean Hyppolite, não podemos pensar numa convivência tão pacífica.  E particularmente sempre me intrigou saber como eram recebidas as intervenções de Lacan que nunca colaborou com a SAMCDA, a “Sociedade de assistência mútua contra o Discurso analítico” (Televisão, 1973).

Pesquisando nos artigos da Revue Française de Psychanalyse encontrei alguns rastros das reações às falas de Lacan. Como por exemplo em 1950, Marie Bonaparte comentando a “Introdução teórica às funções da psicanálise em criminologia” exposto oralmente por Lacan. Diz a Princesa:  “O fundo é tão rico e de tão vasta erudição, mas muitas vezes tão abstrato, e a forma tão sutil do relatório do senhor Lacan, lido, aliás, com tão magistral e sedutora elocução, impediram-me certamente de captar todas as suas finezas e me proíbem assim de discuti-lo detalhadamente. Com relação àquilo que acreditei entender, eu levantaria, contudo, três questões…” (Revue Française de Psychanalyse, 1951, Tomo XV, p.62).

Temos que reconhecer: Lacan não facilitava a tarefa, precisava encontrar alguém disposto a “pôr de si”. O que aconteceu por exemplo com um velho psicanalista, psiquiatra, erudito, um dos mestres de Lacan (nem sempre reconhecido como tal) Edouard Pichon que comenta, em 1939, com muito humor, a redação do artigo de Lacan “Os complexos familiares na formação do inconsciente”, concordando e elogiando a análise de Lacan, mas se queixando da formulação que mostrava por demais que Lacan tinha lido Hegel e Charles Marx…

O Sr. Lacan leu Hegel e Charles Marx, mas nós, nós lemos o Sr. Lacan. E ler o Sr. Lacan, para um francês, é como se diz familiarmente, dureza. Acredito que podemos ousar dizer-lho, pois ele sabe escrever, e escrever bem, muitas passagens de suas obras nos convencem disso. As dificuldades das quais seu estilo está encouraçado são portanto blindagens com as quais se encarapaça secundariamente, para se mostrar apenas sob o aspecto premeditado de cavaleiro de tais ou tais confrarias”

(Revue Française de Psychanalyse, 1939, Tomo XI, No.1, p.107).

E particularmente Pichon se queixa do uso da palavra dialética em sentido hegeliano!

Olha só! Estamos de volta com o comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung[6]. De volta?  Não: estamos adiantados. Veja o que Lacan diz em 38, nos Complexos familiares na formação do inconsciente, comentando o desmame: “Traumatizante ou não, o desmame deixa no psiquismo humano a marca permanente da relação biológica que ele interrompe. Essa crise vital é acompanhada, com efeito, por uma crise do psiquismo, sem dúvida a primeira cuja solução tem uma estrutura dialética. Pela primeira vez, ao que parece, uma tensão vital resolve- se numa intenção mental. Através dessa intenção, o desmame é aceito ou recusado; a intenção, por certo, é muito elementar, já que nem sequer pode ser atribuída a um eu ainda em estado de rudimento; a aceitação ou a recusa não podem ser concebidas como uma escolha, já que, na falta de um eu que afirme ou negue, não são contraditórias; todavia, como polos coexistentes e contrários, elas determinam uma atitude essencialmente ambivalente, ainda que uma das duas prevaleça. Essa ambivalência primordial, quando das crises que asseguram a continuação do desenvolvimento, se resolverá em diferenciações psíquicas de nível dialético cada vez mais elevado e de crescente irreversibilidade.” (Outros Escritos, p.31)

Pichon está certo. Dureza!

Segunda à noite assistimos a aula de Jorge Forbes[7]: a cada um seu estilo. Lacan encouraçado, Jorge Forbes generoso.


[1] Texto apresentado no Curso da TerraDois, 5 outubro 2021.

[2] A direção do tratamento e os princípios do seu poder, Escritos, p. 648

[3] O comentário foi apresentado em encontro anterior do Curso da TerraDois

[4] Tradução em português:  https://revistalacuna.com/2016/05/22/carta-de-jacques-lacan-a-rudolph-loewenstein/

[5] Mijolla, A. (1991). Le Congrès des Psychanalystes des pays romans: quelques éléments d’histoire. Rev. Franç Psychanal, 55(1):7-36

[6] A apresentação desse texto é precedida pela discussão do comentário de Jean Hyppolite sobre a Verneinung, que pode ser acompanhada no texto de Dorothee Rüdiger “O Psicanalista e o Filósofo” https://ipla.com.br/conteudos/trabalhos-cientificos/o-filosofo-e-o-psicanalista/

[7] Aula inaugural do quarto bimestre de 2021 para o Corpo de Formação do IPLA