Luiz de Figueiredo Forbes
1. Introdução
MIRANDA:
O wonder!
How many goodly creatures are there here!
How beauteous mankind is! O brave new world
That has such people in’t! [1]
Quando Aldous Huxley escreveu e publicou o seu “admirável” Brave New World – de título inspirado pela passagem do Vate reproduzida na epígrafe – ambientou sua estória em uma Londres de 2.540, onde a tecnologia de reprodução humana, a engenharia biológica e o aprendizado subliminar fariam parte do dia-a-dia das pessoas. Na ocasião os maiores críticos mundiais elogiaram-lhe a qualidade literária da obra, mas ridicularizaram-lhe a “imaginação feérica”. Isso em 1932, não mais do que há 76 anos. Qual imaginação feérica?
Vivemos os tempos do Second Life e de várias outras demonstrações de uma realidade dita virtual, mas afirmada pela concretude da Internet; da bionanotecnologia, hoje um “palavrão” apenas por sua extensão literal; e da procura incessante pelo hipotético bóson de Higgs, a assim chamada “partícula de Deus”, que, se enfim encontrada, explicaria o próprio Big Bang. Qual imaginação feérica?
É nesse contexto não somente pós-moderno, se não hiper-atual, que se insere a bioética de nossos dias, menos do que sete anos após a morte de Van Rensselaer Potter II; somente 27 anos depois desse bioquímico low profile, professor-emérito da Universidade de Wisconsin-Madison, haver cunhado tal termo[2] em seu famoso livro Bioethics: bridge to the future, publicado em janeiro de 1971.
E é naquela inter-relação de circunstâncias científicas inteiramente novas que o Direito tradicional padece, por não acompanhar com a mesma eficácia da Ética, da Filosofia, da Biologia e da Medicina, os monumentais avanços técnicos contemporâneos.
É preciso então um direito que evolua ao mesmo ritmo que a bioética, para que a esta não fique a dever, nem à sociedade, o indispensável suporte normativo. Um pano de fundo legislativo coerente e completo; e disciplinador com discernimento. Em prol do atendimento eficiente às recém-formuladas demandas e disputas, decorrentes das recém-surgidas exigências e expectativas da bioética. O biodireito, como vários autores já o chamam[3] – um termo que também adotaremos, mas que ainda é muito controvertido.
Faz-se necessária uma “biologização” da lei, pois não há como desvincular as “ciências da vida” do direito. Assim, a bioética e o biodireito caminham pari passu na difícil tarefa de separar o joio do trigo, na colheita dos frutos plantados pela engenharia genética, pela embriologia e pela biologia molecular, e de determinar, com prudência objetiva, até onde as “ciências da vida” poderão avançar sem que haja agressões à dignidade da pessoa humana…[4]
Por isso é que este artigo quer ser mais do que uma mera reflexão acadêmica. Quer se somar às pouquíssimas propostas de incorporação imediata, pelo direito positivo brasileiro, de algumas das melhores respostas, já apresentadas nos países ditos de “primeiro mundo”, por mais irritante que nos seja essa percepção, a certas questões fulcrais nos campos do biodireito e da bioética universais.
Principalmente no que tange a um específico e fundamental aspecto relacionado ao tratamento médico, ou seja, o direito de recusá-lo. Pura e simplesmente. Tout court.
Porque, sob o nosso ponto de vista, a recusa de tratamento médico é um direito maior. Já muito meditamos sobre esse assunto em uma situação pessoal vivida há um par de anos. Agora, mais uma vez, vimos ponderando com “os pés no chão”, conscientemente, não como um tolo nefelibata, com relação à adoção de tal procedimento em um caso que nos diz muito de perto. E daí, para nós, não há mais qualquer dúvida. A rejeição de tratamento médico trata-se, realmente, de um direito essencial da pessoa humana.
Então esta monografia é para elaborar um pouco sobre o nosso conceito e certeza, observada sempre a máxima ne sutor ultra crepidam, de que a recusa de tratamento médico é um direito personalíssimo do indivíduo. E como tal deva ser formalmente estabelecida no direito pátrio, para o que basta uma pequena alteração no texto do artigo 15, do Código Civil Brasileiro. Como já se encontra proposto no Congresso Nacional.
2. Os direitos personalíssimos
Ah, os direitos personalíssimos. Ou direitos da personalidade. Muito se têm escrito sobre eles em nosso país[5], e no Exterior, sobretudo em Portugal[6], recentemente. O tema é, entretanto, tão rico e controvertido, que sempre quando parece estarem solucionadas todas as dúvidas, inevitavelmente surgem várias novas perguntas.[7]
Diz-se que tais direitos são inerentes à condição da pessoa humana. Porém, a pessoa jurídica, independentemente de que se adotem, para conceituá-la, as idéias de Von Savigny, de Gierke, de Hauriou, ou de qualquer outro grande jurista, a pessoa jurídica também os têm, às vezes. Direito personalíssimo ao nome, por exemplo.
Depois, o que exatamente é a pessoa humana? Os escravos não eram pessoas humanas nos Estados Unidos, até a edição da Décima Terceira à Constituição Americana, em 1865. E foi preciso uma guerra terrível (a de Secessão) para que tal definição, aparentemente óbvia, acontecesse. O super-liberal Thomas Jefferson, talvez o maior dos Founding Fathers, tinha vários escravos em sua plantation em Monticello (e aparentemente engravidou e gerou filhos com uma de suas não-pessoas). No Brasil, não fossem Nabuco, Patrocínio, Saraiva e outros estadistas de igual jaez, não teria a Princesa Isabel firmado (e apenas isso) a Lei Áurea. Os silvícolas do Novo Mundo, conforme preceituado pela Igreja Católica poucos séculos atrás, também não eram pessoas humanas. Pior do que isso: “não tinham alma…”. E não estamos sendo cínicos, apenas constatando fatos.
Aí, usa-se o direito de voto como um exemplo do que sejam direitos personalíssimos. E afirma-se (o que hoje em dia é verdade, na imensa maioria dos países) que não se pode votar por procuração. Mas até 1842 (!) era permitido esse “tipo” de voto no Brasil.
E as mulheres? O seu direito personalíssimo de voto, direito delas, intransferível para quaisquer outras pessoas, indisponível, imprescritível, irrenunciável, só passou a valer nos Estados Unidos em 1920, com a ratificação da Décima Nona Emenda. Após anos e anos de dura (algumas vezes mortal) discussão pelas suffragettes. E aqui, nesta Pátria de tão machistas tradições ibéricas, demorou mais ainda: foi preciso que Getúlio Vargas “baixasse” o Decreto nº 21.076, em fevereiro de 1932, para que as mulheres pudessem votar. Por quê? Não eram as mulheres pessoas “plenas”, ou nem sempre foi o direito de voto um direito personalíssimo? (Inclinamo-nos, claro, pela segunda hipótese.)
Outro soi disant direito personalíssimo é o do casamento. Até o Século XX isso era verdade no Brasil. Ninguém podia se casar, ou, mais pernosticamente, contrair núpcias, se não o fizesse pessoalmente. Pode-se agora. O casamento por procuração já era autorizado no Código Civil de 1916 (artigos 194 e 201), e é ainda mais precisamente estabelecido pelo novo Código Civil (artigos 1.535 e 1.542). Logo, não se trata mais de um direito personalíssimo.
Curiosa e contraditoriamente, contudo, nem a separação judicial, nem o divórcio, podem até agora ser pleiteados por outros que não as próprias partes. Conforme, respectivamente, o artigo 1.576 e o artigo 1.582 do novo Código Civil – exceto nos raríssimos casos de incapacidade de uma das partes, quando pode haver representação por curador, ascendente ou irmão (!). Assim, casar por procuração pode, mas separar ou divorciar, não. O que ajuda a comprovar que o Direito, especialmente no Brasil, precisa ser bafejado por um forte sopro de modernidade, tem que experimentar um grande empurrão em direção à realidade vigente.
O pátrio poder também não é mais um direito personalíssimo do pai. Aliás, já de algum tempo a Lei refere-se a tal direito como poder familiar (artigos 1.630 e seguintes do novo Código Civil), vez que partilhado com a mãe. Bem como compartilhados são todos “os direitos e deveres da sociedade conjugal”, conforme a determinação do parágrafo 5º, do artigo 226, da Constituição. Já o direito de testar, o de prestar depoimento pessoal e o moderníssimo pedido de investigação de paternidade, quando apresentado pelo filho, são por enquanto direitos personalíssimos. Competindo exclusivamente ao testador, ao depoente, ou ao filho interessado, conforme o específico caso. Sem exceções aparentes.
Aliás, falando de pátrio poder, e para que se veja como os direitos personalíssimos vêm-se alterando ao longo da história humana, é só se lembrar que segundo a Lex Duodecim Tabularum,a Lei das XII Tábuas, de 451 a.C., o paterfamilias tinha os absurdos direitos (sim, sempre houve alguns direitos absurdos) expressos na Tábua IV, de vida e morte sobre os seus filhos, e de vendê-los.
Destarte o direito à vida, considerado o mais importante de todos os direitos personalíssimos; consagrado no caput do artigo 5º de nossa Constituição que o elenca em primeiro lugar dentre os direitos e garantias fundamentais; antes, portanto, do direito à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; nem sempre foi assim entendido. Como direito da personalidade da pessoa humana (ou do indivíduo, como preferimos).
Basta recordar-se a história da Grécia antiga, e lembrar-se que o extraordinário Licurgo, que construiu do nada a força de Esparta, junto com o Conselho de Anciãos daquela cidade-estado, praticava a “eugenia” mais de dois mil anos antes dos nazistas do monstruoso Hitler, e dos sérbios sob o comando psicopata de Milosevic. Matando qualquer criança que fosse considerada imperfeita. No “benefício da pureza da raça”.
Ainda sobre o direito à vida, a mesma Constituição Brasileira que o assegura, meio que o limita, verdade que em pequena parte. Mas limita. Quando estatui, na alínea a, do inciso XLVII, daquele mencionado artigo 5º, que não haverá pena de morte, “salvo em casos de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX”.
Ou seja: nem o direito à vida é absoluto. Pelo simples fato de que não há direitos absolutos, como tantas vezes enfatiza Ascensão ao correr de seus ensinamentos. Como também pensamos nós, com muito menos substância e conhecimento do que o mestre lusitano.
Absoluto, diz qualquer fiel, de qualquer religião, só o Ente Supremo, só Deus. Absoluto, depreende-se do que disse o Poeta, ao concluir a sua obra-prima, só “l´amor, che move il sole e l´altre stelle”.[8]
Bem, mas o que estamos fazendo aqui? Desconstruindo a importância dos direitos personalíssimos? E, apesar disso, dizendo que o direito de recusa de tratamento médico é um desses direitos típicos da personalidade do indivíduo? E que, como tal, deve ser assegurado por lei no Brasil?
É exatamente isso o que estamos tentando afirmar nesse trabalho. Tudo isso, ao mesmo tempo. Porque se não aceitamos a tese de que os direitos personalíssimos sejam absolutos; nem lhes atribuímos, a todos eles, as notas habitualmente qualificadoras de individualidade, irrenunciabilidade e imprescritibilidade com que os doutrinadores os distinguem; por outro lado sempre os pensamos como direitos diferenciados de todos os outros pela importância de que se revestem. Como direitos maiores, ou prioritários.
Ora, em quaisquer nações civilizadas, há uma hierarquia entre as leis, a Constituição sempre no ápice de todas. Como também existe uma nítida organização piramidal entre os direitos dos indivíduos. E, nesse caso, cimeiros são os direitos personalíssimos.
Onde não pode haver ordem de prioridades é nas relações individuais; o que não se deve fazer é uma categorização das pessoas humanas. Se não, o que acontece com relação aos indivíduos é, mutatis mutandis, o exercício do odioso preconceito estampado na proclamação básica e nos princípios gerais do governo dos porcos, no Animal Farm, de Orwell.[9] Em última análise, o desastroso e desgraçado resultado de que algumas pessoas acabem sendo “mais iguais” do que as outras.
Bem, muito infelizmente, ainda hoje em dia o descaso com os direitos personalíssimos algumas vezes acontece. E os mutila, ou impede. Até nos países ricos. Por simples parti pris, preconceito social, racismo disfarçado, pobreza do indivíduo, ou outras circunstâncias. Como aparentemente aconteceu nos Estados Unidos, em 2005, no caso de uma jovem imigrante da Eritréia, Tirhas Habtegiris, de quem se desligaram, contra a opinião de sua família, os instrumentos de respiração mecânica que a mantinham viva.[10] Daí também a importância dos princípios da bioética e do biodireito. Até para garantir a existência e preservar o exercício dos direitos personalíssimos.
3. Da necessidade de princípios claros para a bioética e do biodireito
A natureza humana tem um lado negro. Ou sombrio, para não usarmos um dos vários termos hoje hipocritamente considerados “politicamente incorretos”. Sob determinadas condições, indivíduos aparentemente nem melhores, nem piores do que os outros, as pessoas “normais”, os good citizens do rótulo americano (e são tantos rótulos…), começam a agir quase como tiranos, brutalmente, perversamente. Hipótese ou constatação?
Recentemente, tal hipótese foi constatada na prática. Mais uma vez. Em um caso acontecido em Waxahachie, no Texas, em abril de 2007. Estudantes da 9ª série do curso médio de uma boa escola, da chamada alta classe média, foram chamados a participar do que seriam apenas eficientes “laboratórios” sobre a realidade da intolerância no Holocausto. Alguns alunos faziam o papel de nazistas, outros, o de judeus. Mas todos realmente incorporaram os seus personagens – os “judeus” encolhidos, de tanto espezinhados que foram; os “nazistas”, o mínimo que fizeram foi cuspir ou bater nos seus “inimigos”. A experiência foi um desastre para os efeitos pretendidos, vários participantes tiveram que receber apoio psiquiátrico, os pais ficaram indignados e a imprensa mundial noticiou a estória.[11] Só isso. O colégio, claro, apenas disse que o “exercício” havia “saído de controle” e que o resultado tinha sido completamente inesperado. Mas absolutamente não foi inesperado.
Porque dois famosos experimentos anteriores já haviam cabalmente demonstrado que as pessoas humanas podem se converter com alguma facilidade, desde que sejam estimulados, ou apenas sugeridos, a desempenhar certos papéis fictícios, em verdadeiros monstros da moral e da ética. O Milgram experiment[12] e o Stanford prison experiment.[13]
Na primeira experiência, desenvolvida em julho de 1961, apenas três meses após o início do julgamento de Adolf Eichmann, Stanley Milgram, um renomado psicólogo de Yale, queria “apenas”, segundo ele, demonstrar os “perigos da obediência”.
E tentar responder a duas estranhíssimas perguntas: 1) Could it be that Eichmann and his millions accomplices in the Holocaust were just following orders? 2) Could we call them accomplices?
Bem, essas duas questões não foram respondidas com a louca experiência. Nem poderiam ser, aliás, porque per se são perguntas absurdas. O que Milgram pretendia? Justificar as atrocidades das bestas-feras nazistas? Nem tanto ao mar, nem tanto a terra, como diria o Sancho Pança. Seria como se sustentar que o “Anjo da Morte”, o famigerado Josef Mengele, o que fez com as centenas de gêmeos que trucidou, teoricamente “só” para estudos científicos aprofundados, não foi pior do que a morte sempre imposta por índios de certas etnias[14] a quaisquer gêmeos nascidos em suas ocas.
Não obstante, o fato é que a descrição da experiência provoca uma amarga sensação, uma perturbadora inquietude, em todos os que dela tomam conhecimento. Um “laboratório” absurdo, que causou vários anos de depressão para todos os que dele participaram, na função de “professores”. Que ficaram absolutamente conflitados psicologicamente, porque entre a obediência cega a uma autoridade (o diretor da experiência) e as suas próprias consciências, optaram, todos, pelo primeiro comportamento. O que os “professores” tinham que fazer era aplicarem o que pensavam serem choques elétricos verdadeiros, cada vez mais intensos, a outros participantes do “teste”, os “alunos” (na verdade atores contratados por Milgram), toda vez que eles errassem uma resposta às perguntas que lhes eram formuladas. E assim fizeram. Cumprindo os seus papéis cegamente, apesar dos berros e lamentos habilmente encenados pelos “alunos”. Aterrorizante, para dizer o menos.
Dez anos depois de Milgram, em 1971, um seu ex-colega de escola, Philip Zimbardo, famoso psicólogo de Stanford, concebeu, organizou e dirigiu um experimento, na mesma linha do tortuoso raciocínio de seu antecessor, e com resultados ainda mais terríveis. O psicodrama de péssimo gosto que ficou conhecido como o Stanford prison experiment.[15] Do qual, como já se disse, o que mais apavora são as suas implicações.
Esse tenebroso laboratório que já rendeu vários documentários importantes (o principal deles do próprio Zimbardo), muitos ensaios, e um ótimo filme alemão (Das Experiment, 2001), pelo menos ajuda a compreender a postura dos soldados americanos comuns que se transformaram em vis torturadores em Abu Ghraib, em 2004. A experiência, prevista para se estender por duas semanas, teve que ser interrompida no sexto dia, tamanhas as barbaridades cometidas. A idéia era apreciar o comportamento de estudantes “normais”, pagos para participarem do projeto, quando transformados por sorteio ou em guardas, ou em prisioneiros, de uma prisão fictícia, encenada teatralmente nos porões de Stanford. Pois bem: logo ao final do segundo dia alguns dos “carcereiros” já tratavam os “presos” com requintes de sadismo e de crueldade. Depois, depois piorou muito.
(Quanto a Zimbardo, em março de 2007 ele lançou um novo livro, de extraordinário sucesso comercial, ainda sobre o experimento, com o excelente título The Lucifer Effect: Understanding How Good People Turn Evil. E vai muito bem obrigado, ganhando rios de dinheiro com direitos autorais e palestras pelo mundo afora…)
Pode alguma outra experiência no campo da pesquisa relacionada às ciências médicas, psicológicas ou sociais ter sido ainda menos ética do que a de Stanford? Pode. Em meados dos anos sessentas um doutorando em sociologia na Washington University de Saint Louis conseguiu esse “feito”. Robert Allan “Laud” Humphreys, de triste memória (morreu em 1988).
Em busca de seu Ph.D. em sociologia, grau que nunca lhe foi conferido porque a Universidade sabiamente julgou que o candidato havia ultrapassado todos os limites ético-sociais, Humphreys resolveu escrever sobre o tearoom sex entre homossexuais masculinos. Tearoom sex é o eufemismo que se usa nos Estados Unidos (na Inglaterra chama-se a isso cottaging) para o fellatio praticado entre homens em banheiros públicos. Aquilo que parece que recentemente certo senador americano pretendia fazer. Seja como for, Humphreys postava-se em sanitários masculinos públicos, apresentava-se aos homossexuais, propunha-se a ajudá-los, funcionando como watchqueen (vigia contra a polícia ou usuários normais dos recintos) dos “casais”; depois os seguia secretamente, anotava-lhes as placas dos automóveis, descobria-lhes os endereços e mais tarde os visitava, apresentando-se como entrevistador dos serviços de saúde. Para obter seus dados pessoais básicos. A degradação levada às últimas conseqüências.
Em 1970 Humphreys terminou e publicou sua tese de doutorado (aquela que nunca foi aprovada) sobre a análise dos resultados da sua “meiga” pesquisa comportamental. O nome desse lixo? Tearoom Trade: Impersonal Sex in Public Places.
Mas é possível, sim, descer ainda mais baixo do que Humphreys em qualquer escala ética “normal”. Os “doutores” do hospital anexo à Willowbrook State School, em Staten Island, Nova York, conseguiram essa proeza entre 1963 e 1966, quando desenvolveram a horrenda pesquisa intitulada Willowbrook Study.
A instituição era orientada à assistência de crianças com retardamento mental, ou deficiência mental, como se queira. Que viviam nas dependências da escola e do hospital. Acontece que àquela época a hepatite grassava entre essas infelizes crianças. Claro, amontoadas, em condições precárias de higiene, etc. Transmitiam os vírus umas às outras, o tempo todo. Então os médicos de Willowbrook resolveram estudar a evolução da doença entre crianças tratadas com gamaglobulina, e aquelas sem esse tratamento. Muito pior: depois de inicialmente alimentarem as crianças ainda sãs com extratos de fezes de crianças doentes, passaram a contaminar os pequenos com inoculações dos vírus “purificados”. Sua alegação? Que “the vast majority of them acquired the infection anyway while at Willowbrook, and it would be better for them to be infected under carefully controlled research conditions”.[16]
A indignação popular foi tão grande quando o malfadado estudo veio a público, que as autoridades da Saúde Pública em Nova York determinaram a sua imediata suspensão. Entretanto, o hospital e a escola de Willowbrook viriam de novo às manchetes da grande mídia alguns anos depois, em 1972, em razão de escândalos levantados por um famoso apresentador de televisão americano (Geraldo Rivera), envolvendo maus tratos e sevícias sexuais das crianças por funcionários das instituições. E mais outros treze anos se passaram até que os estabelecimentos fossem definitiva e felizmente fechados. (É, parece que demoras em providências administrativas óbvias e urgentes pelas autoridades governamentais competentes não constituem “privilégio” brasileiro.[17]) Porém, de todos os diversos e horrorosos casos de pesquisas ditas “científicas” ou “comportamentais” com seres humanos, realizadas nas últimas décadas, que massacraram os mais elementares ditames da ética universal, que aviltaram todas as regras mais comezinhas de conduta moral, deontológica e científica que se espera sejam cumpridas por profissionais da saúde com relação aos seus pacientes, nada supera o desafortunado Tuskegee experiment. Também chamado de Tuskegee syphilis experiment ou Tuskegee syphilis study.
O nome pouco importa. O que importa é que essa “pesquisa”, a nosso ver, foi um dos dois eventos históricos que mais macularam, até hoje, a extraordinária história da grande nação americana.[18] Tão grave o episódio que o presidente Clinton, em 1997 (somente 25 anos após o caso ter-se tornado público!) em um pedido público de desculpas aos oito sobreviventes de Tuskegee, reconheceu o erro do governo dos Estados Unidos usando palavras muito fortes:
The United States government did something that was wrong – deeply, profoundly, morally wrong. It was an outrage to our commitment to integrity and equality for all our citizens. … The American people are sorry – for the loss, for the years of hurt. You did nothing wrong, but you were grievously wronged. I apologize and I am sorry that this apology has been so long in coming. … We need to do more to ensure that medical research practices are sound and ethical, and the researchers work more closely with communities.[19]
Tuskegee é uma universidade[20] no Alabama, que se diz “The pride of the swift growing South”, e que desde seu estabelecimento em 1881, quando se chamava The Normal School for Colored People, (naquele tempo o adjetivo colored não era pejorativo) sempre se dedicou ao desenvolvimento e ao prestígio da cultura afro-americana.
Seu primeiro presidente foi Booker T. Washington, e um de seus mais conhecidos expoentes foi George Washington Carver – ambos sempre citados entre os maiores eruditos americanos e os mais conhecidos representantes de tal descendência.
Mas a Tuskegee University foi enganada por 40 anos, de 1932 a 1972, pelo governo americano. Mais especificamente pelo U.S. Public Health Service, o P.H.S., que solicitou à Universidade o uso de seu hospital anexo para o desenvolvimento de uma pesquisa acadêmico-científica entre os trabalhadores rurais do condado (município) de Macon, onde está localizada a instituição, e que é, seguramente, uma das áreas mais pobres e carentes dos Estados Unidos. A pesquisa foi descrita originalmente como um simples acompanhamento assistido da saúde dos indivíduos escolhidos para o trabalho.
Só que todos os 399 “bóias-frias” escolhidos eram da raça negra, a imensa maioria deles analfabeta, e todos com sífilis em estádio avançado. Doença que não sabiam ter, e sobre a qual nunca foram informados durante os 40 anos em que serviram como cobaias de laboratório. Os médicos apenas confirmavam aos pacientes que eles tinham bad blood, como os pobre-coitados diziam-se uns aos outros quando passavam mal. Só que, mesmo já nos anos cinqüentas, quando a penicilina estava disponível, nenhuma forma de tratamento eficiente foi alguma vez proporcionada a qualquer dos “estudados”. Porque a idéia não era curá-los. Era apenas acompanhar o desenvolvimento e as seqüelas da doença em cada um deles. Realmente muito humanitário.
Só que o governo escondeu os verdadeiros intuitos da pesquisa não apenas dos 399 infelizes. Omitiu a verdade da Universidade, das autoridades locais, dos outros munícipes de Macon, dos fazendeiros da região, enfim, de todo mundo. Até que em 1972 uma jornalista, Jean Heller, fez o que os americanos chamam de blow the whistle. A jornalista soltou a notícia, no Washington Post e no New York Times.[21] Horror, indignação, ranger de dentes. Mas já era tarde demais. Dos 399 indivíduos, 28 já haviam morrido da doença; 100 outros de complicações e seqüelas; 40 de suas mulheres estavam infectadas; 19 de seus filhos tinham nascido com sífilis congênita.
Ora, desses casos aterrorizantes, absolutamente infringentes das mais elementares noções de respeito à dignidade da pessoa humana; e de todas as atrocidades nazistas, que lhes foram um pouco anteriores no tempo, e ainda maiores na perversidade; é que, afinal, se foram convencionando os modernos princípios informativos da bioética e do biodireito. Que aquelas estórias exigiam, para que nunca mais se repetissem na história.
4. Os quatro princípios e um fio condutor: o consentimento informado
Padrões de ética médica, princípios para o exercício dessa nobilíssima ciência-arte chamada medicina, regras-deveres para os profissionais da área, e de todas as outras que lhe são relacionadas, na verdade existem desde Hipócrates. Que se estima tenha vivido de 460 a 377 a.C. Muito tempo atrás. Códigos formais de deontologia para médicos, já existem em forma organizada desde pelo menos 1847, quando a AMA, a American Medical Association, dos Estados Unidos, publicou o primeiro deles, obrigando moral e associativamente os seus afiliados.
Porém já havia tudo isso quando aconteceram o Nazismo, e Tuskegee, e Willowbrook, e quejandos pesadelos. Então parece óbvio que desde o início do Século XX, e muito mais agora, nos emocionantes tempos que vivemos, é preciso que saiamos da inadequação temporal de um belíssimo juramento hipocrático, mas feito originalmente em nome de Apolo, Higéia, Asclépio e Panacéia para nos dedicarmos à atualização ou aperfeiçoamento dos conceitos éticos. À luz de novas necessidades, curiosamente aportadas sob um “O tempora, o mores!” não mais apenas ciceriano, já que muito presente e real. Da ética antiga à metaética moderna.
Essa reformulação, renumeração, ou releitura, talvez uma reconvenção, dos princípios para as condutas médicas em geral, ainda mais especificadamente os procedimentos adotados na experimentação humana em pesquisas científicas de interesse da medicina, foi expressa pela primeira vez em nossos tempos, pelo Dr. Leo Alexander. Um médico psiquiatra, neurologista, escritor científico e professor universitário de grande prestígio internacional; que viveu de 1905 a 1985; que era judeu de povo e de religião; americano de adoção e austríaco de nascimento.
O que Alexander fez e que influiu decisivamente no início da reconfiguração e esclarecimento dos princípios informativos, que hoje geralmente se aceitam como os mais importantes modelos constituintes da bioética e do biodireito, foi uma sugestão por escrito, em 10 de abril de 1947, ao Nuremberg Military Tribunal, o NMT. Proposta feita a meio caminho do primeiro dos julgamentos em série de criminosos de guerra nazistas, acusados de delitos considerados menos graves (quer dizer, menos horrendos), sob a responsabilidade daquela corte militar americana.
Tais julgamentos, que couberam ao NMT, depois de várias disputas de autoridade entre os americanos e seus aliados franceses, ingleses e russos, ficaram conhecidos como Subsequent Nuremberg Trials[22], e foram 12, no total. Alexander participou ativamente, em todos os processos, na dupla qualidade de conselheiro médico do U.S. Chief of Counsel for War Crimes, e de consultor do Secretary of War dos Estados Unidos.
Porém o que aqui importa é a mencionada proposta de Alexander aos juízes do primeiro desses julgamentos, o Doctors´Trial.[23] Consubstanciada em uma “singela” descrição de seis pontos que ele apresentou à consideração dos magistrados, como tópicos a serem perquiridos nas condutas alegadamente criminosas dos réus em suas pesquisas científicas ou práticas médicas, para ajudar a Corte na convicção do acerto acusatório, ou no desfazimento da tipificação delituosa dos fatos imputados.
Esses seis pontos de reflexão levantados por Alexander, tal como enumerados, já eram em si muito claros, objetivos e apropriados à definição de padrões éticos mais consetâneos com a dolorosa realidade revelada pelas “pesquisas” nazistas.
Tanto que, ligeiramente aperfeiçoados em sua redação inicial, e enriquecidos por quatro outros tópicos correlatos, acrescentados pelo próprio NMT e divulgados todos ao final do Doctors´Trial, transformaram-se no decálogo de deontologia médica chamado de Código de Nuremberg. Provavelmente a base informativa de toda a principiologia da bioética e do biodireito modernos.
O Código de Nuremberg, entre várias recomendações éticas fundamentais, dispõe sobre a necessidade de pesquisas médicas terem por objetivo maior o bem da sociedade; de serem sempre conduzidas segundo critérios científicos apropriados; de evitarem qualquer tipo de coerção; de visarem à beneficência dos indivíduos analisados.
Entretanto, a nosso ver, o ponto mais importante do Código de Nuremberg é o primeiro deles, aquele que também iniciava o catálogo de Alexander; e o que lindamente enfatiza a imprescindibilidade do consentimento informado:
The voluntary consent of the human subject is absolutelyessential.This means that the person involved should have legal capacityto give consent; should be so situated as to be able to exercisefree power of choice, without the intervention of any elementof force, fraud, deceit, duress, overreaching, or other ulteriorform of constraint or coercion; and should have sufficient knowledgeand comprehension of the elements of the subject matter involvedas to enable him to make an understanding and enlightened decision.This latter element requires that before the acceptance of anaffirmative decision by the experimental subject there shouldbe made known to him the nature, duration, and purpose of theexperiment; the method and means by which it is to be conducted;all inconveniences and hazards reasonably to be expected; andthe effects upon his health or person which may possibly comefrom his participation in the experiment.The duty and responsibility for ascertaining the quality ofthe consent rests upon each individual who initiates, directsor engages in the experiment. It is a personal duty and responsibilitywhich may not be delegated to another with impunity.[24]
O consentimento informado é realmente, pelo menos ao que nos parece, o conceito básico da bioética e do biodireito, a ser obedecido em qualquer ação biomédica que envolva ou se relacione à pessoa humana. Muito mais do que apenas em pesquisas científicas, em todos os tratamentos médicos e quetais. Muito mais do que uma das conseqüências dos princípios da bioética e do biodireito, a sua intenção primária e o seu melhor resultado. Um inegável direito do paciente, e um irrecusável dever do médico.
Destarte, vemos o consentimento informado como um verdadeiro fio de Ariadne a conduzir através do caminho certo seja quem for que esteja sujeito a observar deveres éticos em procedimentos científicos ou clínicos, dentro da biomedicina.
O consentimento informado, então, como que precede, permeia, perpassa e perfaz todos os princípios ditos como os mais relevantes da bioética e do biodireito.
Princípios que vieram se consolidando em sua formulação e significado nas últimas décadas, principalmente a partir do Código de Nuremberg, redigido em 1947, como já foi dito; logo em seguida pela Declaração de Genebra, desde a primeira redação, de 1948; um pouco depois também pela Declaração de Helsinki, cuja formatação original é de 1964; e, mais recentemente, pelo Belmont Report, apresentado inicialmente em 1975.
Mas por que essa nossa preocupação com as datas de publicação daqueles que são, seguramente, os quatro mais importantes documentos oficiais modernos a dispor sobre a ética em ciências biomédicas? E, portanto sobre a bioética atual? O Código de Nuremberg, a Declaração de Genebra, a Declaração de Helsinki e o Belmont Report?[25]
Porque em 1979 foi publicada a primeira edição do livro que se tornou o texto básico da ética biomédica e, por extensão, da bioética atual. O muito citado Principles of Biomedical Ethics, de Beauchamp e Childress.[26] Articulando com extrema propriedade preceitos profundos, em linguagem profissional, porém de imediato entendimento até por profanos. Aproveitando com vasta sabedoria tudo o que de melhor aqueles quatro documentos apresentaram. Arranjando, em arguta apresentação, os mais importantes subsídios deles todos havidos. Ampliando-lhes os conceitos e resultados essenciais.
E afirmando, ao fim e ao cabo, em bases muito sólidas, os quatro grandes princípios – que os autores preferiram designar como grupos de princípios – que, em sua opinião, fundamentam a ética biomédica. E que, na opinião da imensa maioria dos estudiosos do assunto, fazem mais do que isso. Porque assentam toda a bioética e todo o biodireito.
O princípio do respeito pela autonomia, o princípio da não-maleficência, o princípio da beneficência e o princípio da justiça.
Mas então Beauchamp e Childress, para a formulação da essência de sua doutrina, partiram daqueles documentos, relatórios, ou declarações – como se deseje. Que lhes antecederam à obra, e que já continham várias recomendações bioéticas interessantes, algumas de grande relevo. De novo, foi da análise depurada, da conjugação eficiente e da ampliação inteligente dos paradigmas que em tais escritos já se entremostravam, que os dois “papas” do assunto chegaram à definição daqueles “seus” princípios. Os quatro princípios da bioética e do biodireito.
Por isso é que precisamos abordar, ainda que em poucas palavras – para escapar do supérfluo e do prolixo, e não fugir do tema central deste artigo – as notas mais importantes da Declaração de Genebra, da Declaração de Helsinki e do Belmont Report. Uma vez que, do Código de Nuremberg, já apontamos o que nos parece ser o essencial.
Quanto à Declaração de Genebra, basta dizer que consistiu, basicamente, em uma grande releitura e reapresentação, do Juramento de Hipócrates; em uma reformulação diretamente motivada pelos absurdos nazistas; que já está em sua sexta revisão (2006); e que, pela exagerada “modernidade” de algumas dessas revisões, tem sido bastante contestada na sua forma atual.
Quanto à Declaração de Helsinki, desenvolvida pela WMA, a World Medical Association, inicialmente tentou apenas combinar as 10 recomendações do Código de Nuremberg, com os “novos” juramentos médicos da Declaração de Genebra. Que sua revisão fundamental foi em 1975, quando teve o seu texto estendido de 12 para 35 artigos, e introduziu o importantíssimo conceito da supervisão médica por comitês independentes; idéia que virou norma legal em países tão importantes como os Estados Unidos. Que já passou por cinco revisões e duas clarificações, a última em 2004; e que a próxima revisão está prevista para ser divulgada em Seul em novembro deste ano de 2008, a partir de milhares de opiniões que a WMA vêm recebendo, de médicos do mundo todo.
Quanto ao Belmont Report, assim apelidado porque foi divulgado pela primeira vez em Belmont, Maryland, trata-se de um importantíssimo relatório criado pelo Ministério da Saúde dos Estados Unidos, o atual U.S. Department of Health and Human Services, sob a denominação oficial de Ethical Principles and Guidelines for the Protection of Human Subjects of Research. Sua principal motivação foi o escândalo de Tuskegee; seu maior objetivo, procurar evitar novas barbaridades de igual quilate nas pesquisas médicas, como se depreende de seu próprio nome.
O fato é que o Belmont Report tem duas grandes virtudes. Primeiro, enumerou três princípios éticos, que chamou de fundamentais, como de fato são, a serem respeitados, quando se utilizam seres humanos em pesquisas médicas. Segundo, também ressaltou a importância do consentimento informado. Tudo como sobressai do relatório:
(1) [R]espect for persons: protecting the autonomy of all people and treating them with courtesy and respect and allowing for informed consent; (2) beneficence: maximizing benefits for the research project while minimizing risks to the research subjects; and (3) justice: ensuring reasonable, non-exploitative, and well-considered procedures are administered fairly (the fair distribution of costs and benefits).[27]
Mas, portanto, dos quatro grupos de princípios expostos por Beauchamp e Childress, três deles, o do respeito pela autonomia, o da beneficência e o da justiça já não estavam formulados nos documentos anteriores à sua obra? Assim como só não se havia definido ainda o princípio da não-maleficência? Do mesmo modo que a exigência ética do consentimento informado, sempre, em quaisquer envolvimentos médicos com seres humanos já não tinha sido mais do que estabelecida naqueles escritos? Defluindo com grande clareza do princípio da autonomia?
E se isto é verdade, então por que considerar o trabalho daqueles autores como ímpar nos domínios da bioética e do biodireito?
Indo por partes, como diria Jack the Ripper, primeiro, sim, tudo isso é verdade. Segundo, porque ninguém jamais conseguiu de maneira tão eficiente, consolidar, expor e aprimorar toda a farta doutrina sobre o assunto. Terceiro, porque quando se lê e estuda o principal livro dos dois autores, e todos os vários artigos complementares que escreveram sobre temas que são relacionados à matéria; só aí muitos conceitos que a priori parecem auto-intuitivos, mormente os que se expressam pelos termos autonomia, beneficência e justiça, no sentido da bioética e do biodireito, ficam verdadeira e definitivamente claros.
Tão claros como a síntese que tais autores fazem daquilo que é, para eles, o princípio da não-maleficência:
The principle of nonmaleficence asserts an obligation not to inflict harm in others. In medical ethics it has been closely associated with the maxim Primum non nocere: “Above all [or first] do no harm.” Health care professionals frequently invoke this maxim, yet its origins are obscure ans its implications unclear. Often proclaimed the fundamental principle in the Hippocratic tradition of medical ethics, it does not appear in the Hippocratic corpus, and a venerable statement sometimes confused with it – “at least, do no harm” – is a strained translation of a single Hippocratic passage. Nonetheless, the Hippocratic Oath clearly expresses an obligation of nonmaleficence, and an obligation of beneficence: “I will use treatment to help the sick according to my ability and judgment, but I will never use it to injure or wrong them.”[28] (Notas de rodapé omitidas.)
Destarte, muito pela transparência de seu raciocínio, aceitamos todas as idéias de Beauchamp e Childress sobre quais são, e como devem ser entendidos, os quatro princípios maiores da ética biomédica. Por conseguinte, da bioética e do biodireito. Mais uma vez, o princípio do respeito à autonomia, o da não-maleficência, o da beneficência e o da justiça. Salvo melhor juízo.
Por outro lado, um pouco diversamente do que fazem esses dois autores já tão mencionados neste trabalho, permitimo-nos pensar no consentimento informado como um conceito muito mais amplo do que o de se constituir, somente, em uma das conseqüências dos quatro princípios – principalmente do respeito à autonomia.
Já que para nós, repetindo deliberadamente, o consentimento informado é tanto uma decorrência da bioética e do biodireito, quanto um dever e um direito em si próprio; algo que influencia todos os fundamentos desses novos campos do pensamento, e que é por eles influenciado.
Em sentido figurado, se os quatro princípios desenham um grande conjunto axiológico, o conhecimento informado às vezes é o seu centro; e outras vezes a sua tangente ou intersecção. E sempre, de qualquer forma, o seu melhor fio condutor.
Outra reflexão importante a ser feita, nesse tema, é sobre a sua antiguidade no direito comparado. De fato, não se imagine que o conceito da necessidade de consentimento em práticas médicas seja novo, ou que tenha sido estabelecido por aquele primeiro ponto ético indicado por Alexander e repetido no mandamento inicial do Código de Nuremberg.
Pelo menos não na common law, uma vez que parte relevante da decisão em Stapleton, em 1787,já informava que havia sempre, firmada na lei e nos costumes, a necessidade de obtenção do consentimento simples do paciente:
[I]t appears from the evidence of the surgeons that it was improper to disunite the [partially healed fracture] without consent; this is the usage and the Law of surgeons: then it was ignorance and unskillfulness in that very particular, to do contrary to the rule of that profession, what no surgeon ought to have done.[29]
Depois de Slater, houve várias decisões fundamentais para a construção da teoria contemporânea do consentimento informado no direito anglo-saxão, como a opinião do caso Mohr[30], onde a Suprema Corte do Minnesota manifestou-se de forma inequívoca sobre o consentimento informado, já agora o exigindo de forma expressa:
The free citizen´s first and greatest right, which underlies all others – the right to himself – is the subject of universal acquiescence, and this right necessarily forbids a physician or surgeon, however skillful or eminent, who has been asked to examine, diagnose, advise and prescribe (which are at least necessary first steps in treatment and care), to violate without permission the body integrity of his patient by a major or capital operation, placing him under anaesthetic for that purpose, and operating on him without his consent or knowledge.[31]-[32]
Um pouco mais tarde, o legendário justice Benjamin Cardozo, em outra de suas múltiplas opiniões seminais, para dizer o menos, determinou que o consentimento do paciente, mais do que expresso, devesse também ser voluntário:
Every human being of adult years and sound mind has a right to determine what shall be done with his own body; and a surgeon who performs an operation without his patient’s consent commits an assault for which he is liable in damages. This is true except in cases of emergency where the patient is unconscious and where it is necessary to operate before consent can be obtained.[33]
Só em 1957, portanto alguns anos mais tarde do que a publicação do Código de Nuremberg e da Declaração de Genebra, é que outra corte americana, a California Court of Appeals, disse, pela primeira vez, que o conhecimento tinha que ser mais do que expresso e voluntário. Tinha que ser também informado.[34] Pronto, o termo estava cunhado; começava toda a doutrina moderna sobre o assunto.
Curiosamente, nem bem estabelecido o conceito, hoje vários estudiosos já falam sobre a necessidade de repensar o consentimento informado. E já se escrevem ótimos livros para defender esse ponto de vista.[35]
É assim mesmo. Os princípios, valores e normas da bioética e do biodireito não são nunca estáticos. Logo, têm que ser continuamente reconsiderados e retrabalhados. E então, deles resultam corolários da magnitude da recusa de tratamento médico.
5. A recusa de tratamento médico: um corolário do consentimento informado
Dissemos que do repensar dos modelos da bioética e do biodireito resultam corolários de vasto significado. É verdade. Melhor, porém, dizermos que ressurgem. Porque, na realidade são novos apenas em sua demonstração. Sempre estiveram ao alcance de nossa apreensão intelectual. Apenas não eram percebidos com clareza. Por falta de uma reflexão mais dinâmica, de um encadeamento dedutivo mais bem elaborado.
Aliás, segundo o livro provavelmente o mais bonito da Bíblia, e seguramente o menos “judaico-cristão” de todos eles, o Eclesiastes, “não há nada de novo sob o sol”.[36] Exageros ou licenças poético-literárias à parte, o fato é que, quase sempre, princípios, conseqüências e conclusões decorrem às vezes com obviedade inimaginável, de verdades e padrões já conhecidos, ou já aceitos. Claro que a partir de certo esforço mental.
Daí que dois intelectuais turco-muçulmanos de renome, da Universidade de Harran no grande país otomano, publicaram um artigo surpreendente há poucos anos atrás. Para tentar provar que os quatro princípios da bioética, tais como descritos por Beauchamp e Childress, já se encontravam articulados na obra do famoso pensador sufista persa Mawlana Jalal-ad-Din Rumi, no Século XIII (!), como afirmam em seu abstrato:
In this study we examined the major works of Mawlana to find out to which of the´Four Principles of Bioethics` exist in Mawlana´s ethical understanding. … We have found in our study that all these principles exist in Mawlana´s writings and philosophy in one form or another. … We have concluded that, further to Beauchamp and Childress´ claim that these principles are universal and applicable to any culture and society, these principles have always existed in different moral traditions, in different ways, of which Mawlana´s teachings might be presented as a good example.[37] (Subtítulos omitidos.)
Então os quatro princípios da bioética já estavam pensados e expressos desde o “Rumi”? Será? De toda forma, não precisamos ir tão longe para demonstrar que algumas verdades, evidentes em tese, às vezes demoram muito, muito tempo, para serem concluídas, ou afirmadas. Como o fato da recusa de tratamento médico ser um direito. E mais ainda, personalíssimo. Tema central deste nosso trabalho.
Realmente, depois de um par de séculos em que o direito-dever do consentimento, em geral, já estava definido sem sombra de dúvida; e de algumas décadas em que o conceito de consentimento informado já se havia estabelecido, na doutrina e na jurisprudência; apenas em 1990, com a corte de Cruzan[38], certamente a decisão fundamental no campo da recusa de tratamento médico, é que se afirmou em definitivo uma conclusão que já vinha se mostrando irritantemente óbvia.
Que se o consentimento informado é um direito, a recusa de tratamento médico também claramente é. Por conseqüência direta. A recusa de tratamento médico como corolário lógico do consentimento informado. Como com cristalina clareza se expressou a Suprema Corte dos Estados Unidos, lá em Cruzan, na opinião redigida pelo então Chief Justice William H. Rehnquist:
“The logical corollary of the doctrine of informed consent is that the patient generally possesses the right not to consent, that is, to refuse treatment”.
Não que antes de Cruzan não houvessem acontecido outros julgamentos, em diversas cortes americanas, declarando a existência do direito de recusa de tratamento médico. Ao contrário, houve dezenas deles, somente entre 1976 e 1988.[39] Aliás, algumas dessas decisões pré-Cruzan que estabeleceram a certeza de haver, sim, um direito de recusa de tratamento médico, tal fizeram de forma magistral – para dizer pouco da qualidade de tais sentenças.
Como a opinião em Saikewicz, da Corte Suprema do Massachusetts, que estendeu aquele direito também a incompetentes por força de retardamento mental extremo:
We think that principles of equality and respect for all individuals require the conclusion that a choice exists. For reasons discussed at some length in subsection A, supra, we recognize a general right in all persons to refuse medical treatment in appropriate circumstances. The recognition of that right must extend to the case of an incompetent, as well as a competent, patient because the value of human dignity extends to both.[40]
Decisão essa, em Saikewicz, que fez ainda mais, porque assegurou que a recusa de tratamento médico, em nada e por nada, diminui o inegável valor da vida humana. Que no sentido exatamente oposto, quando não se assegura esse direito, aí sim é que a importância da vida é menosprezada, menoscabada. O que para nós também é certeza.
The constitutional right to privacy, as we conceive it, is an expression of the sanctity of individual free choice and self-determination as fundamental constituents of life. The value of life as so perceived is lessened not by a decision to refuse treatment, but by the failure to allow a competent human being the right of choice. [41]
Além disso, não é que, antes de Cruzan, nunca se houvesse dito que o direito de recusa de tratamento médico é uma conclusão evidente, um corolário imediato do consentimento informado. Como Fenella Rouse, uma jurista e filantropa inglesa de nomeada, demonstrou alguns meses antes daquela sentença. Em um artigo que, segundo as suas próprias palavras, não era sobre o consentimento informado, mas sobre a recusa informada.[42] Em cujo texto a autora assegurava que:
Lawmakers confronted with this situation and familiar with the doctrine of informed consent, reasoned that the necessary corollary of informed consent must be the right to refuse treatment.[43]
E os fundamentos dessa afirmação de Rouse realmente se encontravam, muito claros, em algumas sentenças de tribunais americanos, que haviam resolvido anteriormente casos sobre o consentimento informado e a recusa de tratamento médico.
Principalmente em uma famosa opinião[44] da Corte Superior de Nova Jersey, da qual a parte mais relevante foi reproduzida por Rouse em seu escrito: “The patient’s ability to control his bodily integrity … is significant only when one recognizes that this right also encompasses a right to informed refusal”.[45]
Dessa forma, o mote já era bem conhecido, e a hipótese suficientemente “madura”, quando veio Cruzan. Que deu, enfim, ao que era simples suposição, a glosa definitiva e a comprovação insofismável. Pronto: a partir de tal julgamento, a recusa de tratamento médico estava confirmada como um corolário do consentimento informado.
6. A recusa, a ortotanásia, o suicídio assistido e a eutanásia
Mas afinal, o que é o direito de recusa de tratamento médico? Um corolário lógico do consentimento informado, sim. Porém, em qual lógica? E será que isso importa muito?
Ora, no que concerne a conceitos e valores da bioética e do biodireito, as determinações da lógica clássica, aristotélico-tomista, cedem lugar às proposições da lógica deôntica, da lógica paraconsistente, da lógica paracompleta e de outros sistemas contemporâneos de articulação de argumentos e de interpretação de raciocínios. Os princípios da não-contradição e do terceiro excluído, por exemplo, deixam de se afirmar. Passa a valer o “pode ser”; a busca filosófica deixa de ser da verdade necessária, para tentar chegar à verdade contingente. E os operadores lógicos tornam-se modais.
Assim, pensamos não ser possível uma definição “definitiva” do direito de recusa de tratamento médico, uma que obedeça perfeitamente às cinco leis estabelecidas por Gredt para a boa definição.[46] Contudo, isso não é muito relevante. Porque, ao fim e ao cabo, tanto quanto o termo consentimento informado, a expressão direito de recusa é auto-intuitiva. Perceptível de imediato, genericamente. Então, para os objetivos deste trabalho, o indispensável a fazer, é explicar-lhe algumas das notas específicas. O que tentaremos cumprir, neste capítulo, a partir de agora.
Afirmando, desde logo, o nosso ponto de vista: que a recusa de tratamento médico não se confunde, nem com a ortotanásia, nem com o suicídio assistido, muito menos com a eutanásia. Sutileza, dizem muitos. E completam: é tudo a mesma coisa. Não, não é.
Embora todas essas quatro possibilidades se refiram a posturas frente a pacientes teoricamente terminais, ou que mostrem quadros clínicos diagnosticados como muito graves. O mais das vezes provavelmente irreversíveis, mesmo que ainda não fatais. Aqueles pacientes cujas condições levantam questões éticas fundamentais. Por exemplo, saber se vale a pena insistir no tratamento. E para quê? E para quem?
Mas aquelas quatro atitudes são realmente muito diversas, umas das outras. De início, quanto à sua formalização, começa que a recusa de tratamento médico implica em um não fazer. Os médicos, os profissionais da saúde ou os cuidadores responsáveis pela assistência ao paciente, não lhe providenciam tratamento. Cumprindo-lhe uma vontade expressa ou presumida, direta ou indiretamente manifestada, ou obedecendo a uma ordem judicial que a supra. Não agem. Omitem-se.
Já no suicídio assistido, na eutanásia e na ortotanásia, ao contrário, praticam-se ações.
Nos dois primeiros casos, alguém age ativamente para acelerar a morte do indivíduo – no suicídio assistido, ajudando-o a causar a própria morte; na eutanásia, provocando-lhe diretamente o óbito.
E na ortotanásia, tal como hoje entendida, isto é, a prática de “desligamento dos aparelhos de sustentação vital”, ou a realização de atos similares, alguém age ativamente para evitar que o “falecimento natural” seja retardado por meios mecânicos, bioquímicos, ou assemelhados. Desconecta as máquinas e instrumentos, retira os tubos e cânulas, suspende os soros e medicamentos. E o paciente morre, porque não consegue sobreviver autonomamente.
Depois, agora quanto à essência, a recusa de tratamento médico, a nosso ver, repetindo deliberadamente, trata-se de um direito inalienável e permanente do indivíduo, exercível em quaisquer circunstâncias. Que implica em um dever irrecusável para todos os terceiros que venham a conhecer-lhe essa vontade, e possam cumpri-la. Ainda que seja expressa não pelo paciente, mas por um representante em seu nome. E, claro, além de um dever ético, torna-se uma obrigação legal para os que precisem obedecê-la, quando afirmada através de documento juridicamente válido, ou quando suprida judicialmente.
A ortotanásia, por sua vez, parece-nos também um direito da pessoa humana, dependendo das circunstâncias. E pensamos que seja sempre o melhor a se fazer, na maioria dos casos de tratamentos fúteis; para evitar prolongamentos de vida, absolutamente inúteis, para o paciente; e totalmente desgastantes, para os familiares. E que, por isso, deva ser praticada em tais situações, toda vez que possível. Bem como, claro, sempre que ordenada.
Por outro lado, com relação ao suicídio assistido e à eutanásia, por enquanto, e apenas por enquanto – já que, como diria a boneca Emília, só não muda de idéia quem não as têm – para nós se constituem em graves delitos éticos. A eutanásia muito mais do que o suicídio assistido. Para além de ainda serem tipificados como crimes, na quase totalidade dos sistemas penais.[47]
Não conseguimos até o presente admitir a validade ética do suicídio assistido, nem muito menos da eutanásia. Talvez uma grave falha nossa, um fruto, quem sabe, da formação religiosa básica que tivemos. Talvez. Apesar de que não existe o inteiramente certo, nem o totalmente errado no que concerne à apreensão fina de valores de tal envergadura. De novo, sobre tais conceitos, para qualquer pessoa, sobreleva uma lógica muito individual, realizada por intermédio de operadores fundamentalmente pessoais.
Daí que podemos até imaginar que o suicídio e a vontade de uma boa morte sejam direitos da pessoa humana. Mas de tais direitos não somos capazes de concluir dever algum para quem quer que seja.
Já que, quanto ao suicídio assistido, “Se te queres matar, por que não te queres matar?” perguntava o Bardo português.[48] É verdade. Por que o suicida não se mata sozinho? Qual dever de colaboração com o suicida haveria para qualquer outra pessoa?
E, sobre a eutanásia, para nós é especialmente difícil imaginar que alguém tenha o dever de matar outra pessoa, para lhe proporcionar uma boa morte. Que se acabe cometendo uma eutanásia, por exemplo, para evitar maiores sofrimentos a um parente próximo, somos capazes de entender – embora sem justificar tal ato. Mas se alguém que pratique uma eutanásia diga que assim agiu cumprindo um dever moral ou ético, tal alegação para nós será inaceitável. Eutanásia por dever? Só se estivermos falando dos Sanson[49], ou outros carrascos de igual “prestígio no ramo”. Que tinham dever, sim. O dever legal de matar rapidamente, em uma única tentativa. Bem, de certa maneira, uma boa morte…
Certo que ao se ler a maravilhosa e poética descrição que Suetônio fez da morte de Augusto, texto onde pela primeira vez alguém empregou a palavra “eutanásia”,[50] provavelmente não há quem não queira para si uma boa morte, tal qual. Que não a inveje. Porque foi uma boa morte natural. Mas, de novo, infligir a morte a alguém, sob o pretexto de eutanásia, não nos parece justificável. Já que, sob o nosso ponto de vista, trata-se de assassinato. Ponto.
Com quase a mesma ênfase censuramos o suicídio assistido. Não compactuamos com as teses do infame (para muitos, apenas “injustiçado”) Dr. Kevorkian, sustentadas desde o primeiro caso, o de Janet Adkins,[51] em que proporcionou a um paciente terminal, o uso da mortal “maquininha” de sua invenção. Como não nos importa que o médico tenha sido absolvido naquele caso. E em vários outros, semelhantes. Terminando condenado e preso (hoje está de novo livre, provavelmente leve, e solto), apenas quando se excedeu, e mais do que “somente” ajudar em um suicídio, realmente praticou eutanásia – disso fazendo grande alarde na televisão, ao vivo e em cores. Nem nos leva a mudar de opinião o fato de que, aceitando a “doutrina” Kevorkian, o Oregon tenha passado uma lei[52] que autoriza o suicídio assistido, e que foi validada pela Suprema Corte americana.
Preferimos adotar como nossas as palavras de Angela Merkel, Chanceler da Alemanha: “I am absolutely against any form of assisted suicide, in whatever guise it comes”.[53] Um belo pronunciamento, feito a propósito de um caso recentíssimo, ocorrido na Baviera, quando um ativista do suicídio assistido, filmou a morte de uma mulher a quem havia ensinado um coquetel letal. E colocou o vídeo na Internet. Sendo que a suicida não tinha nada. Só velhice. E não queria se mudar para uma casa de repouso.
Ora, esse caso é tão inusitado, e tão atual, que vale a pena reproduzir parte da matéria que o The New York Times publicou sobre o assunto:
FRANKFURT — When Roger Kusch helped Bettina Schardt kill herself at home on Saturday, the grim, carefully choreographed ritual was like that in many cases of assisted suicide, with one exception. Ms. Schardt, 79, a retired X-ray technician from the Bavarian city of Würzburg, was neither sick nor dying. She simply did not want to move into a nursing home, and rather than face that prospect, she asked Mr. Kusch, a prominent German campaigner for assisted suicide, for a way out. Her last words, after swallowing a deadly cocktail of the antimalaria drug chloroquine and the sedative diazepam, were “auf Wiedersehen,” Mr. Kusch recounted at a news conference on Monday. It was hardly the last word on her case, however. Ms. Schardt’s suicide — and Mr. Kusch’s energetic publicizing of it — have set off a national furor over the limits on the right to die, in a country that has struggled with this issue more than most because of the Nazi’s euthanizing of at least 100,000 mentally disabled and incurably ill people. “What Mr. Kusch did was particularly awful,” Beate Merk, the justice minister of Bavaria, said in an interview. “This woman had nothing wrong other than her fear. He didn’t offer her any other options.”( (Grifos omitidos.)[54]
Parece-nos que a descrição desse absurdo acontecimento basta para mostrarmos até que ponto vão os defensores do suicídio assistido e quão difícil nos é “comprarmos” as suas alegações. Então, quer dizer que se alguém prefere morrer a fazer uma simples mudança de vida, tudo bem contribuir para a sua morte? Com base na autonomia? Ora, ora…
Fica assim claro, pensamos nós, que a eutanásia e o suicídio assistido absolutamente não decorrem, sob qualquer hipótese, do exercício do direito de recusa de tratamento médico. Que toda inferência que se pretenda fazer a esse respeito, nada mais é do que uma grande extrapolação, para usar um termo muito em moda. Uma gigantesca “forçada de barra”, para empregar uma gíria muito aceita.
Já a ortotanásia, que aceitamos, na maioria das vezes, como um direito do paciente terminal e um dever de seu médico, profissional da saúde, ou cuidador pessoal; uma providência cujo maior objetivo é deixar a natureza seguir o seu curso; esta sim, quase sempre decorre da recusa do tratamento médico; e da essência de tal direito pode ser inferida. Apesar de diferir dele por se constituir em ação, e não em uma omissão. Mas com a mesma exata idéia. Não a de provocar a morte, a de permitir que aconteça.
Finalmente, importa ressaltar que estamos, aqui também, em sábia companhia. A do Cardeal Emérito de Milão, Carlo Maria Montini, talvez o mais erudito “príncipe” da Igreja Católica vivo. O qual já se disse em favor do direito de recusa, e da ortotanásia. Esta, algumas vezes; aquele, sempre. Quanto à eutanásia e ao suicídio assistido, nunca.
7. A manifestação da recusa: instrumentos, capacidade e substituição
Mas então, até a Igreja Católica, que antes do Concílio Vaticano II, do Papa João Paulo II, e do Cardeal Montini, de uma forma geral, nem sequer considerava a possibilidade de haver um direito de recusa de tratamento médico – quanto mais aceitar que em algumas situações a melhor decisão, a mais cristã de todas, seja a ortotanásia – vem também atualizando os seus conceitos? Que bom. Que extraordinária mudança. Do obscurantismo do dominicano Torquemada, à clareza mental do cardeal jesuíta.
Mas que esses novos ventos soprados pelos valores bioéticos não se transformem de Zéfiro em Eurus, mitologicamente falando. Se não, com alguma facilidade, chegaremos a alguns exageros. Obviamente indesejáveis. Como tudo o que seja demasiado, ou esteja fora do razoável. E têm acontecido vários excessos.
Por exemplo, há poucos meses um respeitadíssimo médico californiano “avançou o sinal,” e alegadamente apressou a morte de um paciente, para lhe retirar os órgãos aproveitáveis em transplantes.[55]
Por exemplo, em 1999, George W. Bush, então governador do Texas, sancionou o Texas Advance Directives Act, também chamado de Texas Futile Care Law. Em teoria uma boa lei, porque evita a continuidade de tratamentos médicos inúteis em pacientes terminais. Acontece que, como dispõe, qualquer desses pacientes pode ter os tratamentos de sustentação de vida interrompidos, à discrição do hospital, desde que “the attending physician has decided and the review process has affirmed is inappropriate treatment”.[56] E, em razão disso, aquele texto legal deu margem a horríveis eventos, como o caso de Tirhas Habtegiris, mencionado no início deste trabalho.[57] (Aliás, é interessante imaginar-se um milionário texano, nas mesmas condições de Habtegiris, e meditar se ele seria também “desplugado”.)
Exageros absurdos à parte, o fato é que no mundo todo, principalmente nos Estados Unidos, tem-se caminhado muito para o aperfeiçoamento das regras quanto às manifestações da recusa de tratamento médico, e às práticas de ortotanásia.
Ora, três são os principais instrumentos através dos quais o direito de recusa se manifesta, naquele grande país. E, portanto, a ortotanásia se justifica, ética e legalmente – quando o paciente terminal tiver sido “ligado” em máquinas, contra a sua vontade.
As chamadas advance directives, ou determinações antecipadas; as do not resuscitate orders, ou, simplesmente, DNR orders, isto é, as ordens de não ressuscitar; e os living wills, ou testamentos vitais.
Hoje, todos os estados americanos aceitam e dispõem sobre pelo menos um desses três documentos;[58] e a grande maioria admite cada um deles. Alguns estados, como Nova York, preferem as DNR orders; outros, como a Florida, as advance directives; e assim por diante. A formatação desses papéis é sempre pelo menos sugerida em leis estaduais; que, ao mesmo tempo, impõe os requisitos para a sua validação. Número de testemunhas, exigências de registros, cumprimentos de prazos e quetais. Tudo muito claro e prático. Bem à moda ianque.[59]
De qualquer forma, seja através de qual dos três mecanismos for, o que alguém faz, quando de um deles se utiliza, é declarar, enquanto saudável ou na plena posse de suas faculdades mentais, a sua recusa de tratamento médico. A ser cumprida quando e se ficar terminalmente doente ou incapaz. Normalmente, a recusa de qualquer tratamento. Quase sempre, já nomeando, no próprio documento, um agente com durable power of attorney – um tipo de procuração irrevogável – para que lhe realize a vontade final. Aquela de que ninguém tente mais “curá-lo”, ou prolongar-lhe a “vida”, a partir do momento em que for declarado terminal. Tudo segundo orientações usualmente muito detalhadas e precisas.
Um dos maiores problemas com relação a esses três instrumentos de declaração da recusa de tratamento médico, é, saber-se o que seja um paciente terminal. Pela óbvia falta de uma bola de cristal à disposição dos médicos, ou de quem quer que seja. Certo que um doente com câncer pancreático grave (como todos são, nesse órgão), ou um câncer pulmonar de pequenas células, este ou aquele com várias metástases, é seguramente um doente de fato terminal. Com muito pouco tempo de sobrevida.
Mas pense-se na estória de Karen Ann Quinlan,[60] provavelmente a primeira grande batalha judicial americana atinente ao direito de morrer. Um caso[61]que fez história, que gerou uma ampla discussão bioética ao redor do mundo; que contribuiu para o estabelecimento de comitês éticos em hospitais; e que embasou Cruzan. Além de ter levantado a fundamental questão de quem pode exercer o direito de recusa em nome do paciente, quando não há uma determinação expressa anterior – e com isso apressou o estabelecimento de uma política nacional de advance directives.
O fato é que Quinlan, aos 21 anos de idade, ao voltar de uma festa com amigos, e não se sabe se por uso constante de drogas ou por ter feito uma dieta-relâmpago rigorosíssima (para “entrar” no vestido que usaria na festa), de repente, colapsou e entrou em coma. Melhor: no que já se chamava de PVS persistent vegetative state, o estado vegetativo permanente.
Fato também é que depois da Corte haver ordenado o desligamento do respirador mecânico de Quinlan, aparelho que aparentemente lhe dava sustentação vital, a pedido da família e contra a vontade do hospital, a paciente surpreendentemente ainda viveu nove anos. De 1976 a 1985, quando morreu de pneumonia. Então, racionalmente, não se pode dizer que Quinlan fosse terminal. Como uma grande parte dos pacientes em PVS também não é. Há milhares de casos que mostram isso. Pior (ou melhor): há vários casos na literatura médica, a demonstrar que, às vezes, pacientes declarados em PVS, de um dia para o outro “voltam ao mundo”.
Pacientes em PVS morrem, com certeza, obviamente, quando o que se lhes retira são os tubos de alimentação. Foi o que aconteceu com a tristemente famosa Nancy Beth Cruzan.[62] Em 1983, aos 26 anos, a moça teve um desastre de carro e foi “cuspida” do automóvel, por estar sem o cinto de segurança, e caiu de borco em uma poça. Ressuscitada pelos paramédicos, entrou em coma e foi depois diagnosticada em PVS. Em 1987 a família entrou com um pedido judicial para que fosse ordenada a retirada de seu tubo de alimentação Por falta de evidência de que esse fosse o desejo da paciente, a Suprema Corte denegou tal pleito. Mais tarde, com apresentação de novas provas, a retirada foi enfim autorizada. E Cruzan morreu 11 dias depois, em fins de 1990.
Assim foi o caso de Nancy Cruzan o primeiro em que se abordou a ortotanásia definitiva, aquela em que se retiram todos os suportes medicinais e se desligam quaisquer auxílios mecânicos ou instrumentais. Inclusive e especialmente, os tubos de alimentação e de hidratação. Da mesma forma como foi também essa notável estória, que aguçou todos os estudos sobre a terminalidade da vida; o real status físico-mental dos pacientes em PVS e seus possíveis prognósticos; a quantificação da consciência nos pacientes que hoje se diz estarem em MCS, os minimally conscious states, ou estados minimamente conscientes; e a diferenciação, só possível de fazer através de exames de ressonância magnética neurofuncional entre os graus de PVS e MCS, extremamente próximos uns dos outros.
Por fim, de Cruzan em diante, é que se vêm utilizando parâmetros cada vez mais complexos e aperfeiçoados, para chegar à melhor especificação que se consiga dos critérios da morte encefálica, ocorrência determinada pela legislação da maioria dos países, como o fato verdadeiramente definidor da morte.[63]
Mas Cruzan não resolveu em definitivo os complicadíssimos aspectos relacionados à ética e à legalidade da ortotanásia definitiva, com a total retirada da alimentação e da hidratação do paciente dito terminal. Nem apontou os melhores caminhos para impedir ou suplantar os conflitos de opiniões entre os que expressam o direito de recusa de tratamento médico do paciente em seu nome e lugar, por substituição ou representação, sem estarem para isso previa e devidamente formalizados. Através de um durable power of attorney, por exemplo.
Essas questões ficaram muito evidentes no caso de Theresa Marie Schindler “Terri” Schiavo, talvez o mais palpitante e midiático processo judicial envolvendo problemas de bioética e de biodireito, jamais ocorrido.[64] De final recente para a paciente, mas longe ainda de se encerrar, quanto à amplíssima discussão ético-jurídica que motivou.
Terri Schiavo tinha 26 anos em 25 de fevereiro de 1990, quando colapsou em seu apartamento em São Petersburgo, na Florida; tendo, em conseqüência, várias paradas cardiorrespiratórias, que lhe provocaram dano cerebral irreversível. Encefalopatia anóxico-isquêmica, como esclareceu a autópsia. Tudo em razão de múltiplas dietas.
O maior problema foi que, na avaliação médica de Schiavo, os múltiplos profissionais que a atenderam, ao longo de muitos anos, nunca se puseram em acordo quanto ao diagnóstico e ao prognóstico de seu quadro clínico-funcional. Comatosa nos primeiros meses de seu tormento, Schiavo foi depois declarada por alguns como em PVS; e, por outros como em um estádio mental de certa consciência. Dois fatos importantes, a) nunca foi declarada como paciente terminal; b) até o final de sua “vida”, cumpriu um ciclo diário de dorme-acorda, e abre-fecha olhos. Parecendo inclusive reconhecer pessoas de sua família e dos muitos hospitais onde esteve internada. Como demonstrado em incontáveis vídeos da paciente feitos por interesse da família ou por ordem judicial.
Em razão disso, a família biológica de Schiavo, muito religiosa, sempre se insurgiu contra o desligamento dos tubos de alimentação e hidratação que mantinham a pobre moça “viva”; enquanto o marido da paciente, ao contrário, no único benefício de sua mulher, como repetia, queria porque queria sua ortotanásia radical. Bem, foram 15 anos de idas e vindas totalmente irracionais, junto aos órgãos administrativos, legislativos e judiciários, do estado da Flórida e da União.
Foram inúmeras petições a cortes da justiça estadual; cinco processos em cortes federais de primeira instância; catorze recursos a cortes superiores; três denegações de certiorari (acolhimento de pedido revisional)pela Suprema Corte; e a edição um par de leis estaduais e federais específicas, logo depois revogadas. E diversos pronunciamentos, claro que transmitidos ao vivo, de personalidades tão diferentes como o Presidente Bush e o Reverendo Jackson. A opinião pública? Muito dividida, desde o princípio. Entre a posição da família, e a do marido.
Quem decidiu o caso foi o Juiz George Greer, do 6º Circuito da Corte Superior da Flórida, da comarca de Pinellas – ele próprio handicapped, porque é deficiente visual. Legalmente cego pela legislação americana. E talvez por isso mesmo simpático, desde o começo da maratona bioética e biojurídica de Schiavo, à exclusiva defesa dos interesses da paciente. Que em sua opinião (que é a nossa), se pudesse exprimir sua vontade, optaria pela ortotanásia. Foi o que Greer ordenou.[65] E em 31 de março de 2005, absurdos 15 anos após seu colapso inicial, Schiavo, enfim, conseguiu morrer.
Mas o caso Schiavo não se constituiu em much ado about nothing, para usar o nome que Shakespeare deu a uma de suas poucas peças teatrais cômicas. Porque nem foi à toa, nem provoca risos – se não apenas a necessidade geral de melhor reflexão sobre questões bioéticas de extrema importância. Como a substituição na manifestação da recusa de tratamento médico.
Quando o indivíduo é capaz e competente, e se manifesta verbalmente, expressamente, contra certo tratamento ou procedimento médico, nenhum problema. Seja qual for tal tratamento ou procedimento. Qualquer pessoa tem o inequívoco direito de não querer, por exemplo, ser submetido a um eletrocardiograma de esforço ou por estresse químico; a uma cineangiocoronariografia, à introdução de stents em um ou outro de seus vasos sanguíneos; a intervenções que impliquem em circulação extracorpórea provisória; a quimioterapias pré ou pós-cirúrgicas; e, daí em diante. Direito de se recusar até a tomar antibióticos simples por certo período. Mesmo que o médico afirme que este ou aquele tratamento, ou procedimento, seja importante, fundamental ou irrecusável pelo paciente. Bem, esse é o ponto de vista que estamos tentando apresentar e defender neste trabalho o tempo todo. Que o direito de recusa é um direito personalíssimo do indivíduo.
Quando o indivíduo se torna incapaz, incompetente, ou terminal, mas o seu direito de recusa está indubitavelmente manifestado em um instrumento anterior válido, que seja legalmente aceito, também nenhum problema.
Dificuldades surgem quando o paciente é legalmente incapaz ou incompetente; seja um menor de idade ou um “louco de todo o gênero”, como dizia o nosso antigo Código Civil; ou está funcionalmente em PVS, MCS, ou estádio mental correlato, e não havia registrado antecipadamente a sua vontade sobre o assunto em qualquer instrumento anterior; e então compete a terceiros substituí-lo no exercício do direito de recusa, ou ao juiz presumir-lhe a intenção. E, dessa última possibilidade, a razão de havermos nos estendido na apresentação de Schiavo, e a certeza da grande importância desse caso.
Ora, em Schiavo, ainda não havia na Flórida uma ordem hierárquica legal, para a formulação do consentimento informado, e, portanto, de sua conseqüência, a recusa informada. Nos casos de inexistência de qualquer tipo de advance directive do paciente.
Se tal já houvesse, o Juiz Greer não teria tido qualquer dificuldade para decidir sobre Schiavo. E, hoje, não teria qualquer dúvida. E estaria certo, atendendo ao pleito do marido. Porque a pecking order na Flórida, agora está determinada da seguinte forma, em ordem hierárquica decrescente: cônjuge; filho ou filha, maior; ascendente; irmão ou irmã, maior; parente próximo, maior; amigo próximo; profissional apontado por um comitê de bioética. Aliás, depois de Schiavo todos os estados americanos agora têm também uma clara hierarquização da manifestação de recusa por substituição.[66]
Quanto à manifestação de recusa de tratamento médico por incapazes ou incompetentes mentais, assim declarados por junta médica, comitê bioético ou determinação judicial, já houve centenas e centenas de casos – literalmente – apreciados e decididos por cortes americanas, alguns de muito relevo. Porém, deles todos, pensamos que, de longe o mais significativo e importante, seja Saikewicz, referido anteriormente.[67] Processo hoje “velho” de 31 anos atrás, talvez a opinião judicial mais bonita e completa que se consiga sobre esse tema, e atualíssimo na decisão.
Em um breve resumo do caso, Joseph Saikewicz era um homem de 68 anos, com profundo retardo mental (QI 10), que estava internado em uma instituição especializada há 53 anos. E então foi diagnosticado com leucemia. O tratamento quimioterápico prescrito teria uma chance entre 30% e 50% de levar à remissão aparente da doença. Sem qualquer certeza de não ocorrência de recidiva.
O curador apontado pela corte, e perguntado sobre qual a sua opinião nesse assunto, manifestou-se contra o tratamento. Porque Saikewicz já era idoso; porque ficaria muito debilitado com a terapia; porque sofreria muito, sem qualquer maior proveito próprio; e, além disso, porque não tinha a menor possibilidade de entender ou cooperar com o que lhe pediriam que fizesse. Aí a instituição onde Saikewicz “vivia” entrou em juízo, solicitando que fosse ordenada a quimioterapia. O juiz inferior acolheu a manifestação do curador, em nome de Saikewicz, e a instância superior manteve tal decisão, impedindo a realização da terapia.
Em sua opinião, a Corte Suprema do Massachusetts afirmou que o curador havia se pronunciado corretamente, como verdadeiro advogado e substituto do paciente. E assim cumprido o que dele se esperava em tal papel: que imaginasse o que o paciente, em nome de quem se manifestara, haveria de querer. E que, em tais casos, era fundamental buscar e procurar atender aos best interests do paciente incapaz. E nada mais.[68]
Quanto a menores de idade, de uma forma geral, claro que por eles se expressam os seus representantes legais. Pais naturais, pais adotivos, guardiães designados pelas cortes – sejam eles curadores especiais ou foster parents,[69] os “pais provisórios” – ou os dirigentes e assistentes sociais das instituições beneficentes onde os menores vivem.
Ora, atinge-se a maioridade nos Estados Unidos, para a realização dos principais atos civis, em média aos 18 anos. Como no Brasil. A diferença é quanto à responsabilidade penal, que em vários estados é imposta desde idade mais tenra.[70] Além disso, para as decisões de recusa de tratamento médico, as cortes americanas hoje tendem a seguir o padrão denominado Gillick competence, estabelecido na Inglaterra em uma decisão[71]da Câmara dos Lordes, de 1985. O teste foi estabelecido na opinião em separado de Lord Scarman, e determina que crianças, de 16 anos ou menos, podem exercer o seu direito de recusa. Desde que consigam entender, inteiramente, o tratamento proposto:
“As a matter of Law the parental right to determine whether or not their minor child below the age of sixteen will have medical treatment terminates if and when the child achieves sufficient understanding and intelligence to understand fully what is proposed.”[72]
Gillick nos parece o melhor critério, o standard ótimo, para a recusa de tratamento por menores. Da plena compreensão, à possibilidade de recusa total. Por que não?
8. A recusa ou a imposição de tratamento, em casos religiosos e especiais
Ocorre que, em algumas ocasiões, menores se recusam a receber determinados tratamentos médicos, baseados apenas em princípios de fé, em preceitos religiosos, que o mais das vezes ainda não têm suficiente maturidade para apreciar inteiramente. Posições que lhes são incutidas por familiares adultos que professam determinadas crenças, em que tais tentativas de cura são totalmente vedadas. E certos juízes validam as “opiniões” e as recusas desses menores. E aí as crianças morrem.
Foi o que aconteceu nos Estados Unidos, no final de novembro de 2007. Dennis Lindberg, aos 14 anos, leucêmico de pouco tempo de diagnóstico, estava sendo tratado com quimioterapia. De repente, sua contagem de hemácias despencou, abruptamente. Se não recebesse uma transfusão de sangue, disseram os médicos, morreria em poucos dias. O menino morava com uma tia, sua guardiã legal e testemunha de Jeová das mais ortodoxas. A qual, obviamente, já havia convencido o sobrinho de que era “pecado” seriíssimo receber sangue. E então Dennis recusou a transfusão. E o juiz John Meyer, da Suprema Corte de Washington, acatou a decisão do menino, afirmando em sua ordem que, embora Dennis ainda estivesse apenas no 8º grau, ele “was old enough to know that refusing blood transfusions might amount to a `death sentence´, and that he had the right to make that decision”.[73] A Gillick competence levada ao extremo. Que juiz!
As testemunhas de Jeová são uma denominação cristã-restauracionista, cujo nome, como se sabe, decorre de Isaías 43:10;[74] e cuja proibição total de recebimento de sangue, sob qualquer forma, derivada também da peculiar interpretação que conferem a outros textos bíblicos,[75] tem gerado novas, diversas e importantes disputas judiciais.
Porque processos jurídicos envolvendo as testemunhas de Jeová, já os havia muitos, nos Estados Unidos, há bastante tempo. Mas principalmente relacionados à aplicação da extraordinária Primeira Emenda da Constituição Americana,[76] em questões tão variadas como as relacionadas à prestação de serviço militar por fiéis da Igreja, a distribuição de folhetos sobre as normas básicas dessa Fé, a recusa ao Pledge of Allegiance à Bandeira, e outras que mais. E a Suprema Corte dos Estados Unidos normalmente ratificou os direitos dos seguidores dos preceitos das testemunhas de Jeová de procederem segundo os seus ditames religiosos, com base na Primeira Emenda. Não havia quase nenhum pedido de declaração judicial atinente ao direito de recusa às transfusões de sangue.
Agora, porém, já existem várias ações deste tipo. E muitas sobre situações em que a preservação da saúde de outras pessoas fica comprometida, pela estrita observância de mandamentos religiosos. E nem estamos aqui neste trabalho querendo criticar seja a fé qual for, seja qual norma de uma específica crença se siga. Não é nosso objetivo, dizer aqui, por exemplo, que o Levítico, especialmente em seu capítulo 11, nos parece, mais do que qualquer outra coisa, um ótimo código de princípios de higiene pública – principalmente considerada a época na qual se afirmou. Queremos apenas externar nosso ponto de vista sobre o assunto específico. Que uma testemunha de Jeová, de idade adulta, recuse a transfusão de sangue ou o tratamento que quiser. Mas que não imponha, apenas por convicção religiosa, tais negativas também a seus filhos ou dependentes.
Como muito bem colocou Doug Diekema, médico e consultor em bioética do hospital onde Dennis Lindberg morreu. Quando se manifestou, claro, totalmente contra a estranhíssima decisão do juiz Meyer: “The principle there is that parents can make martyrs of themselves, but they can´t make martyrs of their children”.[77]
Contudo, não são apenas as testemunhas de Jeová que às vezes ocasionam a morte de seus filhos por motivos religiosos, em seu caso, a recusa de transfusões de sangue ou de outros tratamentos médicos, onde inevitavelmente aconteça alguma perda sanguínea.[78]
Os adeptos da religião fundada por Mary Baker Eddy, em 1879, são ainda mais rigorosos, porque, de hábito, não aceitam qualquer tratamento médico. Já que, segundo eles, a sua fé e as suas orações bastam para curá-los. Não precisam de mais nada. E tais são os seguidores da Church of Christ, Scientist[79] (no Brasil, a Igreja de Jesus Cristo Cientista).[80]
Pais que deixam seu bebê de dois anos, Robyn Twitchell, morrer de obstrução de vesícula, porque só o que fizeram foi rezar. No Massachusetts, em 1990.[81]Pais que deixam sua filha de 11 anos, Madeline Neumann, morrer de cetoacidose diabética, porque em vez de buscarem um médico, ou um hospital, buscaram orações. No Wisconsin, em março de 2008.[82] Pais que deixam seu bebê de onze meses, Ava Whortington, morrer de pneumonia, porque escolheram a oração no lugar dos antibióticos. No Oregon, também há pouco, no último mês de março.[83]
Gente que, seguramente, não tem má índole. Mas cuja fé desmesurada acaba produzindo efeitos devastadores em outros. Que são totalmente inocentes. Que ainda não têm religião – bem, alguns nem sequer já falam. E isso é que está fundamentalmente errado. Não a fé dos adultos. Mas a imposição de seus preceitos a menores. A substituição errada no exercício do direito de recusa de tratamento médico.
Não criticamos nem mesmo as pessoas que neste país procuraram, para si, as curas “milagrosas” realizadas pelo “espírito” do “médico alemão da 1ª Grande Guerra”, de estranhíssimo nome, Dr. Adolphus Fritz (sic), através do médium “cavalo” da ocasião. “Zé” Arigó, Edson Queiroz, e outros. Criticamos sim, severamente, os que impuseram a seus dependentes tais “curas”, em lugar dos tratamentos da medicina tradicional. Hélàs.
Curiosamente, existem outros casos religiosos, concernentes também à recusa de tratamento médico em nome de menores, que são a contrario sensu daqueles todos. Quando a família, por conta de sua fé pessoal, luta judicialmente, com todas as suas forças, para impedir que o tratamento médico deixe de ser providenciado, ou venha a ser descontinuado. E aí, chega-se também a absurdos. Porque às vezes tais “tratamentos” são absolutamente inúteis, completamente fúteis, totalmente despropositados.
Como no caso do Baby K., [84] um bebezinho que nasceu anencéfalo em outubro de 1992, em Fairfax, na Virgínia. Sua mãe, Ms. H., embora soubesse já poucos meses após o início da gestação, da horrível condição de sua filha, resolveu levar a gravidez a termo – mesmo com grande insistência de todos os médicos para que abortasse.
Muito mais do que isso: nascida a criança (?), brigou com o hospital, o serviço social, os pediatras, e com todo mundo, para que Baby K. não fosse, sob qualquer hipótese, desligada dos tubos e aparelhos que a mantinha “viva”. Porque os seus princípios religiosos, o seu respeito à santidade da vida, repetia Ms. H., não lhe permitiam concordar com isso. Bem, a corte federal do Eastern District da Vírginia, recusando-se a levar em conta questões éticas, morais ou religiosas; baseada apenas na aplicação da lei vigente no estado; como declarou em sua opinião; ordenou a manutenção dos suportes vitais de Baby K., enquanto estivesse viva. E foi assim que o bebê conseguiu “sobreviver” por dois anos e meio. Talvez a maior sobrevida de anencéfalos até hoje. [85]
Então, falamos agora das crianças sem cérebro, as “pessoas” às quais falta a mente. Dos indivíduos com pouca mente, já havíamos tratado antes. Falta-nos considerar as pessoas às quais a mente foge. Os perturbados mentais, ou loucos, como se diz normalmente.
Ora, quando tais indivíduos estão em casa, ou internados em instituições especializadas, o seu direito de recusa, que têm, sem qualquer dúvida, como qualquer outro, é manifestado através de seus representantes legais. Tal qual acontece com os que apresentam retardo mental. O problema acontece quando estão em dependências do Estado. Em prisões, por exemplo. E se lhes impõem tratamento médico à força.
A matéria é complicada. Porque a Suprema Corte americana determinou em 1986, em Wainwright,[86] que executar uma pessoa que seja incapaz de compreender o que lhe está acontecendo, viola frontalmente a proibição da Oitava Emenda contra “cruel and unusual punishments”. Pois bem: veio a U.S. Court of Appeals for the Eight Circuit,[87] em 2003, em Singleton[88]e, inacreditavelmente, ordenou a medicação forçada de um prisioneiro esquizofrênico, só para que pudesse ser executado. Deixar lúcido, para matar, logo depois. É possível um raciocínio tão abstruso quanto esse? Como foi dito em um ótimo artigo[89] sobre Singleton, isso é como imaginar um condenado à forca, mas que o Estado considere muito desnutrido para isso. Vai-se então alimentá-lo à força?
Não conseguimos entender porque a Suprema Corte não deu certiorari a Singleton, como solicitado pelos advogados do réu, e por isso Charles Singleton tenha sido afinal executado em 2004. É meio contraditório, já que a Corte, em 1990, em Harper,[90] afirmara que o Estado só podia compelir um prisioneiro, temporária ou permanente insano, a ser tratado com drogas, se ele oferecesse grande risco aos demais detentos. E depois, em 1992, em Riggins,[91] havia estabelecido que um réu, preso, em estado de perturbação mental, não poderia ser tranqüilizado compulsoriamente, com remédios, apenas para estar calmo, no julgamento. E finalmente, em Sell, logo após Singleton, tinha se declarado em definitivo contra a medicação forçada (com um grande “puxão de orelhas” no Oitavo Circuito, que havia errado mais uma vez):
The Eighth Circuit erred in approving forced medication solely to render Sell competent to stand trial. Because that court and the District Court held the Magistrate’s dangerousness finding clearly erroneous, this Court assumes that Sell was not dangerous. And on that hypothetical the Eighth Circuit erred in reaching its conclusion. For one thing, the Magistrate did not find forced medication legally justified on trial competence grounds alone. … [92]
Seja como for, hoje, nos Estados Unidos, até os insanos, e mesmo que estejam presos, podem se recusar a receber tratamento médico. Como pensamos que seja o correto, e como deveria ser padronizado nas regras de direito internacional atinentes ao assunto.
9. A Recusa no Exterior e no Brasil: afinal um direito personalíssimo?
Porém, essa padronização do Direito no que concerne a regras que se relacionem à bioética, ou seja, uma uniformização geral do biodireito é tarefa dificílima – se não até quixotesca ou impossível. Como conciliar as diretrizes de saúde pública na Islândia e no Butão? Como depurar as diferenças entre o direito de recusa de tratamento médico na Dinamarca e no Haiti? Se isso for realizável, certamente não será para os nossos dias.
Transplantes de órgãos, por exemplo. Pela óbvia escassez dos “produtos”, os critérios de escolha dos recipientes, já de si tendem a ser bastante diversos, entre um país e outro, pelas diferenças entre os padrões éticos prevalentes em qualquer deles. Rins. Talvez os mais “facilmente” disponíveis. Bem como as máquinas de diálise que suprem provisoriamente as suas funções, enquanto os pacientes não recebem “novos”. Mesmo assim, alguns anos atrás já se mostravam as diferenças entre políticas nacionais para essas “trágicas escolhas”:
While Italy sought to avoid a tragic conflict by simply not applying, without ceasing to proclaim, principles of absolute equality, America, as we shall see, generally permitted allocations based on therapeutic and other efficiency considerations, as long as the results did not coincide with well-recognized patterns of race or class discrimination. England, by contrast, seems to have opted for a third alternative: clinical judgment, which could readily reduce itself to a sort of mechanistic, Newtonian efficiency-determined egalitarianism.[93]
Depois, o uso de instrumentos de contenção de pacientes. Os restraints. Houve um caso judicial famoso,[94] nos Estados Unidos, decidido pela Corte Suprema do Massachusetts. A paciente Catherine Shine, de 29 anos, asmática desde criança, tinha sido levada para um hospital, apenas por “super-precaução”, porque suas crises costumavam durar pouco tempo, tinham rápida remissão. Mas o Dr. Vega resolveu entubá-la, apesar da recusa expressa da moça, para “facilitar-lhe a brônquio-dilatação”. Catherine então fugiu pelos corredores, acompanhada por sua irmã. Agarrada pelos seguranças do hospital foi levada de volta ao quarto, restringida por quatro amarras, e entubada à força. Recuperou-se em menos de 24 horas, e seu pai processou o médico e o hospital. Por não terem atendido à recusa de Catherine e até muito mais, por a haverem entubado e restringido. O tribunal, claro, deu-lhe ganho de causa (embora a instância inferior tenha absolvido os réus.
Do caso Vega seguiu-se uma discussão doutrinário-jurisprudencial, sobre o uso de meios de contenção que ainda perdura. À espera, como sempre, de uma decisão definitiva da Suprema Corte americana. Porque o assunto abre, realmente, muitas margens de dúvida. Apesar dos padrões federais aplicáveis aos hospitais que participam nos programas de Medicare e Medicaid:
(1) The patient has the right to be free from restraints ofany form that are not medically necessary or are used as a meansof coercion, discipline, convenience, or retaliation by staff.. . . (2) A restraint can only be used if needed to improvethe patient’s well-being and less restrictive interventionshave been determined to be ineffective. . . . (3) The use ofrestraint must be . . . in accordance with the order of a physicianor other licensed independent practitioner [and] . . . neverwritten as a standing [or as needed] order. . . . (4) The conditionof the restrained patient must be continually assessed, monitored,and reevaluated.[95]
Outro ponto a ser considerado, pense-se nos países onde sabiamente, ao contrário do Brasil, a imensa maioria dos medicamentos só pode ser adquirida, através de receitas médicas. Como os Estado Unidos. Ótimo, não? Acontece que, em razão disso, algumas substâncias comprovadamente úteis na prevenção ou tratamento de doenças graves, fica totalmente fora do alcance de grande número de pessoas. Não é o indivíduo se recusando a tratamento médico, é o ordenamento jurídico impedindo ou dificultando que ele aconteça. Como no caso das estatinas:
Merck recently submitted its third application to the Food andDrug Administration (FDA) to allow it to sell its cholesterol-loweringdrug lovastatin in 20-mg tablets over the counter. … Merck’s arguments for the switch from prescription-onlyto over-the-counter sales focused on the “treatment gap” —at-risk persons who are not receiving therapy — and onthe desire of consumers for more control over their health caredecisions. The treatment gap is real. More than 60% of persons who areat intermediate risk for a cardiovascular event are not receivingtreatment. Some of these persons do not have physicians; thosewho do have one may not have been offered treatment or refusedit when offered. Over-the-counter statins may help narrow thisgap. (Notas de rodapé omitidas.)[96]
Ainda sobre as normas de recusa de tratamento médico no Exterior, e a sua eventual padronização, é curioso de se ver a que ponto vão as discussões sobre o assunto. Bem, chega-se até a analisar os intelectuais que, precisando de “equilibrador”, recusam-se ao uso de Prozac e assemelhados, porque tais “remédios” dificultariam o processo criativo. Ao mesmo tempo em que médicos importantes afirmam exatamente o contrário.[97]
De toda forma, trata-se sempre, a nosso ver de um direito maior, personalíssimo, do indivíduo. O direito de se recusar a seja qual for o tratamento, por seja qual for o motivo. Mesmo um tão “maluco” como o que acabamos de considerar.
Aqui no Brasil, de pouco em pouco, esse direito de recusa de tratamento médico vem-se afirmando. Bem como uma de suas principais conseqüências. A descriminalização da ortotanásia. Felizmente.
Primeiro, veio o belo e moderno Código de Ética Médica,[98] promulgado pelo Conselho Federal de Medicina, que em seu artigo 56 diz que: “É vedado ao médico desrespeitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a execução de práticas diagnósticas ou terapêuticas, salvo em caso de iminente perigo de vida”.
Depois, houve a chamada “Lei Covas”. Uma lei estadual paulista,[99] elaborada e sancionada às pressas, no início da tormentosa doença que vitimou o Governador Mario Covas, e por causa disso. Uma ótima lei, infelizmente muito pouco conhecida mesmo em São Paulo, e em quase nada aproveitada nos outros estados. Quanto mais no âmbito federal. Mas de qualquer forma, um muito bom começo.
Já que essa lei especifica, em seu artigo 2º, os “direitos dos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo”. Entre eles, no inciso VII, “consentir ou recusar, de forma livre, voluntária e esclarecida, com adequada informação, procedimentos diagnósticos ou terapêuticos a serem nele realizados”. E, no inciso XXIII, “recusar tratamentos dolorosos ou extraordinários para tentar prolongar a vida”.
Assim, o principal do tema já foi disposto em lei. Porém, de novo, em uma “simples” lei estadual. Só aplicável aos usuários dos serviços de saúde no Estado de São Paulo. É preciso muito mais.
Vem-se tentando um pouco mais. Nos últimos anos, foram feitas diversas recomendações, por comitês bioéticos, e por órgãos médicos, que resultaram em modelos de instrumentos tão importantes como os termos de consentimento informado.
Outras sugestões, consolidadas, culminaram na ótima Resolução nº 1.805/06, baixada pelo Conselho Federal de Medicina, em 09 de novembro de 2006. Que afirma, logo no seu primeiro artigo:
É permitido ao médico limitar ou suspender procedimentos e tratamentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, respeitada a vontade da pessoa ou de seu representante legal.[100]
Ora, esse artigo da resolução, tal como redigido, claramente assegura, sem força legal, a prática da ortotanásia, nos casos que enumera. O direito de realização de ortotanásia ficará legalmente estabelecido, se aprovado o Projeto de Lei da Câmara (PLC) nº 3.002/08, apresentado em 13 de março de 2008.[101]
Apenas, aquela resolução continua insistindo na mesma incompletude do artigo 15 do Código Civil. Que por sua vez, assim determina:
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou a intervenção cirúrgica.
De fato, só se referem, a orientação do Conselho, e a norma do Código, aos pacientes já declarados terminais, ou em risco de morte. A um direito de recusa de tratamento médico que é apenas parcial. Quando esse direito deveria ser afirmado, repetindo ad nauseam, como existente, ou preexistente, em quaisquer casos.
Daí porque “cruzamos os dedos” para que o Congresso Nacional tenha a sensatez de aprovar o PLC nº 2945, apresentado em 05 de março de 2008, que propõe uma nova redação para o artigo 15 do Código Civil. Que seria alterado para vigorar com a seguinte redação:
Art. 15. Ninguém pode ser constrangido a submeter-se, ainda que com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica.
Apenas o acréscimo de uma locução conjuntiva de largo emprego. O “ainda que”. Todavia, uma mudança radical no sentido e na abrangência do texto legal. E, enfim, o reconhecimento, que para nós é óbvio,da recusa de tratamento médico como um direito personalíssimo do indivíduo.
10. Conclusão
Porventura não são poucos os meus dias?
Cessa, pois, e deixa-me, para que por um pouco eu tome alento.[102]
Assim, de tudo o que vimos dizendo, parece-nos possível concluir que:
- A bioética é um dos assuntos mais instigantes, importantes e intelectivos de nossos tempos hiper-modernos; tema de indispensável abordagem, mas, ainda de muito controversas opiniões;
- O biodireito como que lhe vem a reboque, e, entretanto, deveria se desenvolver pari passu, para maior clarificação das regras jurídicas que possam fazer valer os princípios da bioética;
- Esses princípios, porém, tais como geralmente aceitos, o do respeito à autonomia, o da beneficência, o da não-maleficência e o da justiça, aqui e ali se conflitam – e nenhum deles é absoluto, como qualquer direito também não é;
- Uma das grandes conseqüências dos princípios da bioética é o consentimento informado;
- O direito de recusa de tratamento médico decorre necessariamente do consentimento informado, do qual se afirma como o principal corolário lógico;
- A ortotanásia é uma das formas de exercício do direito de recusa de tratamento médico, e absolutamente não deve ser confundida nem com o suicídio assistido, nem muito menos com a eutanásia;
- Todas as pessoas humanas têm um inequívoco direito de recusa de tratamento médico; em qualquer situação de saúde física, em qualquer nível de competência mental, em que se encontrem; sem exceções;
- Alguns indivíduos, contudo, de extraordinário valor psíquico e força de vontade insuperável, recusam-se a exercer esse seu direito, e então o mundo aproveita-lhes a exemplar companhia, por mais um bom tempo. Tal como foi com Christopher Reeve, tal como ainda é com Stephen Hawking;
- Se for aprovada a alteração na redação do artigo 15 do Código Civil, tal como proposta, a recusa de tratamento médico, no Brasil, será definida, enfim, como um direito personalíssimo;
- Mesmo que tal definição aconteça, como esperamos, a recusa de tratamento médico continuará a ser, como diversos outros pontos da bioética e do biodireito, mais do que tudo, uma Grande Reflexão.
Salvo Melhor Juízo.
E depois disto viveu Jó cento e quarenta anos;
E viu a seus filhos e aos filhos de seus filhos, até a quarta geração.
Então morreu Jó, velho e farto de dias.[103]
São Paulo, 30 de julho de 2008.
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Luiz de Figueiredo Forbes
Nº USP 728082
OAB/SP 37795
Trabalho por Luiz de Figueiredo Forbes, para a disciplina Bioética e Direito I da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP).
Luiz de Figueiredo Forbes atuou na área de Direito, com ênfase na legislação e regulamentação dos mercados financeiros, de capitais e de derivativos; bem como nos temas da ética, critérios de saúde financeira e abertura e globalização desses mercados.
Graduado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (1974) e LL.M. (Master of Laws), “with honors”, em Corporate, Banking and Finance Law pela Fordham University School of Law, de Nova York (1998), era um grande estudioso do Direito, tendo feito doutorado em Direito Penal na Faculdade de Direito da USP (1975-1978), com obtenção de todos os créditos, e orientação do Prof. Dr. Miguel Reale Jr, mas sem apresentação de tese de doutoramento. Ele recebeu também o título de comendador da Ordem de Rio Branco.
[1] William Shakespeare, The Tempest, 5º Ato, Cena 1ª, disponível na Internet em diversos sites, como em http://www.enotes.com/tempest-text, acessado em 25-06-08.
[2] Mas o mesmo Van Potter, a partir de 1988, para evitar as muitas confusões terminológicas que já vinham sendo feitas com relação à bioética por ele descrita e desejada, bem mais ampla e abrangente do que a explicitada por vários outros estudiosos, passou a usar a denominação global bioethics, para designar a “sua” bioética. Ao mesmo tempo, autores tão importantes quanto Tom L. Beauchamp e seu costumeiro co-autor James F. Childress adotaram a expressão biomedical ethics, obviamente mais centrada nos campos biomédicos. Neste trabalho usaremos o termo genérico bioética, por ser o mais em voga, tanto no Brasil, quanto no Exterior, para nomear essa ciência. (Ou filosofia? Ou arte?)
[3] V. James Ming CHEN, Biolaw: Cracking the Code, 56 Kansas City Law Review, nº 4, disponível na Internet em http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1115332, acessado em 20-07-08.
[4] Maria Helena DINIZ, O Estado Atual do Biodireito, 5ª ed., São Paulo, Saraiva, 2008, pp. 8-9.
[5] Três bons livros sobre o assunto, publicados já à luz do novo Código Civil ou pouco antes de sua edição, são: 1) Carlos Alberto BITTAR, Os Direitos da Personalidade, 4ª ed., Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000; 2) Silvio ROMERO BELTRÃO, Direitos da Personalidade, 1ª ed., São Paulo, Atlas, 2005; 3) Enéas COSTA GARCIA, Direito Geral da Personalidade no Sistema Jurídico Brasileiro, 1ª ed., São Paulo, Juarez de Oliveira, 2007.
[6] Imperdíveis toda a obra de José de Oliveira ASCENSÃO, especialmente a O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13ª ed., Coimbra, Almedina, 2006; e de Diogo Leite de CAMPOS, principalmente os Estudos sobre o Direito das Pessoas, 1ª ed., Coimbra, Almedina, 2007.
[7] Parafraseando uma formosa e muito apropriada frase castelhana, “justo cuando me deparé com todas las respuestas, me cambiarón todas las preguntas”, de autor desconhecido.
[8] Dante ALIGHIERI, La Divina Comedia, Il Paradiso, Canto XXXIII, v. 145, disponível entre milhares de sites na Internet, em http://www.mediasoft.it/dante , acessado em 25-06-08.
[9] Cf. George ORWELL, Animal Farm, disponível na Internet em diversos sites, como em http://www.george-orwell.org/Animal_Farm/index.html, passim, acessado em 23-06-08.
[10] V. a descrição do caso em http://www.en.wikipedia.org/wiki/Tirhas_Habtegiris, acessado em 25-06-08.
[11] V. descrição do caso em Holocaust lesson gets out of hand, The Sidney Morning Herald, ed. 11-07-07, disponível na Internet em http://www.smh.com.au/news/world/jews-and-germans-lesson-gets-out-of-hand/2007/04/11/1175971162172.html#, acessado em 10-06-08.
[12] V. descrição em http://www.en.wikipedia.org.wiki/Milgramexperiment, acessado em 10-06-08.
[13] V. descrição em http://www.en.wikipedia.org.wiki/Stanford_prison_experiment, acessado em 10-06-08
[14] V. sobre essa tradição na etnia kamaiurá, Ana Paula BONI, Infanticídio põe em xeque respeito à tradição indígena, Folha de São Paulo, ed. 06-04-08, disponível na Internet em http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/uly96u389427.shtml , acessado em 06-04-08.
[15] Vale “surfar” o site mantido pelo próprio Zimbardo, sobre esse “sucesso” experimental no campo da análise comportamental humana, http://www.prisonexp.org/, acessado em 08-06-08.
[16] Cf. Serena MARSDEN e Melissa MELANDER, Historical Cases of Unethical Research, apresentação acadêmica realizada na University of North Dakota, em 2002, disponível na Internet em www.und.nodak.edu/instruct/wstevens/PROPOSALCLASS/MARSDEN&MELANDER2.htm, 10-06-08.
[17] V. detalhamento desses episódios em Willowbrook State School, rubrica da Wikipedia, disponível na Internet em http://en.wikipedia.org/wiki/Willowbrook_State_School, acessado em 10-06-08.
[18] O outro foi a internação forçada durante parte da 2ª Grande Guerra, em campos de concentração construídos ao longo da costa Oeste dos Estados Unidos, de pelo menos 110.000 pessoas, 38% dos quais japoneses de nascimento, mas os outros 62%, cidadãos americanos de “descendência” japonesa. Descendente japonês considerado todo aquele que tivesse pelo menos 1/16 de “sangue” nipônico. A partir do início de 1942, em razão da Executive Order 9066, assinada pelo presidente Roosevelt.
[19] The White House, Office of the Press Secretary, press release, Remarks by the President in Apology for Study Done in Tuskegee, discurso do presidente Bill Clinton, passim, 16-05-97, disponível na Internet em http://clinton4.nara.gov/textonly/New/Remarks/Fri/19970516-898.html, acessado em 15-06-08.
[20] V. site da Universidade em http://www.tuskegee.edu, acessado em 15-06-08.
[21] V. Jean HELLER, Syphilis Victims in U.S. Study Went Untreated for 40 Years, New York Tmes, ed. 26-07-72, p. 1, disponível na Internet em http://www.nytimes.com/archives, acessado em 20-06-08.
[22] Para evitar confusões com o famosíssimo Trial of the Major War Criminals, realizado também em Nuremberg, um pouco antes deles, de 14-11-45 a 01-10-46, mas conduzido perante o International Military Tribunal, o IMT, e contra 24 acusados considerados os maiores de todos os criminosos de guerra nazistas. Dentre os que não estavam foragidos. Como Borman, Keitl, Göring, Hesse e Von Ribbentrop. A esse específico processo é que normalmente se refere, quando se diz, erroneamente e no singular, “Julgamento de Nuremberg”.
[23] Julgamento onde 20 dos 23 réus eram médicos de profissão, daí o apelido pelo qual se tornou conhecido, realizado em Nuremberg entre 09-12-46 e 20-08-47. O nome oficial do feito é United States v. Karl Brandt et al., e a reprodução dos microfilmes dos registro oficiais do processo estão disponíveis na Internet em http://www.archives.gov/research/captured-german-records/microfilm/m887.pdf, acessado em 24-07-08.
[24] Na Internet em milhares de sites. Porém, um bom local para se consultar o Código de Nuremberg, ao mesmo tempo em que se têm informações ponderadas e qualificadas sobre a sua história e importância para a bioética é no artigo de Evelyne SHUSTER, Fifty Years Later: The Significance of the Nuremberg Code, 337 NEJM 1436-1440, ed. 13-11-97, em http://content.nejm.org/cgi/content/full/337/20/1436, acessado em 24-07-08.
[25] Há, evidentemente, farta literatura sobre todos esses documentos. Suas histórias, seu desenhos originais, suas revisões posteriores. Mas é sempre mais prático, quando o que se quer são apenas informações úteis e suficientes para o entendimento genérico de quaisquer assuntos, consultar enciclopédias. E o fato é que a Wikipedia, totalmente online, é uma boa enciclopédia. Assim, v., sobre a Declaração de Genebra, http://en.wikipedia.org/wiki/Declaration_of_Geneva; sobre a Declaração de Helsinki, http://en.wikipedia.org/wiki/Declaration_of_Helsinki; e, sobre o Belmont Report, http://en.wikipedia.org/wiki/Belmont_Report; todas essas rubricas acessadas em 26-07-08.
[26] Tom L. BEAUCHAMP e James F. CHILDRESS, Principles of Biomedical Ethics, 5ª ed., New York Oxford University Press, 2001. (Já há uma sexta edição desse livro, publicada em maio de 2008.)
[27] Belmont Report, cit., passim.
[28] BEAUCHAMP e CHILDRESS, Principles,cit., n. 25 supra, p. 113.
[29] Slater v. Baker and Stapleton, 95 Eng. 860, 2 Wils. KB 359 (1767), apud Jessica BERG, Paul S. APPELBAUM, Charles V. LIDZ e Lisa S. PARKER, Informed Consent, Legal Theory and Clinical Practice, 2ª ed., New York, Oxford University Press, 2001, p. 42.
[30] Mohr v. Williams, 95 Minn. 261, 104 N.W. 12 (1905).
[31] Id, ibid., 104 N.W. 14.
[32]Como se vê dessa parte da decisão em Mohr, não foi exagero nosso o grande relevo que demos ao consentimento informado nos comentários anteriores. Porque há mais de um século algumas das cortes americanas já lhe enfatizavam a grande importância.
[33] Schloendorff v. Society of New York Hospital, 105 N.E. 92 (N.Y. 1914).
[34] V. Salgo v. Leland Standford Jr. Univ. Bd. of Trustees, 317 P.2d. 170 (Cal. Ct. App. 1957).
[35] V. Neil C. MANSON e Onora O´NEILL, Rethinking Informed Consent in Bioethics, 1ª ed., Cambridge, Cambridge University Press, 2007.
[36] “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol”. Ecle 1:9, trad. João Ferreira de Almeida, at. 1994.
[37] Sahin AKSOY e Ali TENIK, The ´four principles of bioethics`as found in 13th century Muslim scholar Mawlana´s teachings, in BMC Medical Ethics 2002, 3:4, disponível na Internet em http://www.biomedcentral.com/1472-6939/3/4, acessado em 20-07-08.
[38] Cruzan v. Director, Missouri Department of Health, 497 U.S. 261, 270 (1990).
[39] Como informou a própria corte em Cruzan: “Most of the earlier cases involved patients who refused medical treatment forbidden by their religious beliefs, thus implicating First Amendment rights as well as common law rights of self-determination. More recently, however, with the advance of medical technology capable of sustaining life well past the point where natural forces would have brought certain death in earlier times, cases involving the right to refuse life-sustaining treatment have burgeoned. See 760 S.W.2d at 412, n. 4 (collecting 54 reported decisions from 1976-1988). Id. ibid. (Notas omitidas.)
[40] Superintendent of Belchertown State School v. Saikewicz, 372 Mass. 728, 745, N.E. 2d 417 (1977).
[41] Saikewicz, cit., in 742.
[42] ”This article, however, is not about informed consent; it is about informed refusal.” Fenella ROUSE, in Does autonomy require informed and specific refusal of life-sustaining medical treatment?, in Issues in Law and Medicine, Winter ed., 1979, disponível na Internet no site da Bnet, Health Care Industries, em http://findarticles.com/p/articles/mi_m6875/is_n3_5/ai_n25020732/pg_2?tag=artBody;col1, acessado em 20-07-08.
[43] ROUSE, id., ibid.
[44] In re Conroy, 98 N.J. 321, 486 A.2d 1.209 (1985).
[45] Id., in 347 e 1.232.
[46] Definitio sit convertibilis cum definito; definitio sit clarior definito; definitio non debet ingredi definitionem; definitio non sit negativa; definitio sit brevis, Iosephus GREDT, in Elementa Philosophiae Aristotelico Thomisticae, apud Goffredo TELLES JÚNIOR, Tratado da Conseqüência, 2ª ed., São Paulo, José Bushatsky, 1962.
[47] Neste mês de julho de 2008 o suicídio assistido e a eutanásia são quase que inteiramente legais na Holanda; e parcialmente admitidos no Direito (só o suicídio assistido, ou ambos em circunstâncias específicas) no estado do Oregon, na Bélgica, no Luxemburgo, na Suíça e na Tailândia.
[48] Fernando PESSOA, sob o heterônimo Álvaro de Campos, Se te Queres, poema disponível na Internet em milhares de sites, como em http://www.jornaldepoesia.jor.br/facam16.html, acessado em 21-07-08.
[49] Família francesa em que se transmitiam, de geração a geração, o ofício e as “artes” da execução oficial.
[50] In the last day of his life he asked every now and then whether there was any disturbance without on his account; then calling for a mirror, he had his hair combed and his falling jaws set straight. After that, calling in his friends and asking whether it seemed to them that he had played the comedy of life fitly, he added the tag: ´Since well I´ve played my part, all clap your hands, and from the stage dismiss me with applause´. Then he sent them all off, and while he was asking some newcomers from the city about the daughter of Drusus, who was ill, he suddenly passed away as he was kissing Livia, uttering these last words: ´Live mindful of our wedlock, Livia, and farewell,´ thus blessed with an easy death and such a one as he had always longed for. For almost always on hearing that anyone had died swiftly and painlessly, he prayed that he and his might have a like euthanasia, for that was the term he was wont to use. (Notas omitidas e grifo acrescentado.) In C. SUETONIUS TRANQUILLUS, The Lives of the Twelve Caesars, The Life of Augustus, 1ª ed. Inglesa, London, Loeb Classical Library, William Heinemann and Company, 1913, p. 282.
[51] People v. Dr. Kevorkian, Nº 90-20157 (52nd Dist. Ct. Mich. 1991); 534 N.W. 2d. 172 (1995).
[52] State of Oregon Death with Dignity Act, de 27-10-97.
[53] Mark LANDLER, Assisted Suicide on Healthy 79-Year-Old Renews German Debate on Right to Die, The New York Times, ed. 03-07-08.
[54] Id., ibid.
[55] V. Dan SIMON e Paul VERCAMMEN, Doctor accused of hastening death for patient´s organs, em http://edition.cnn.com/2008/CRIME/03/03/transplant.trial/index.html, acessado em 20-06-08.
[56] § 166.046 do Texas Health and Safety Code, introduzido pela Texas Futile Care Law.
[57] “Desligada” contra a vontade da família, por determinação do hospital, consta que a paciente sufocou durante 16 minutos, porque ainda estava consciente e responsiva.
[58] A Suprema Corte já deixou patente em várias decisões, inclusive em Cruzan, que tais assuntos estão exclusivamente nas alçadas estaduais.
[59] Supérfluo referir aqui algumas das fontes fácil e imediatamente disponíveis na Internet, de tantas que são. Além do mais impreciso. Porque é preciso se levar em conta que há 50 estados nos Estados Unidos. E alguns “territórios livres associados”, e assemelhados. Cada qual com a sua específica legislação.
[60] V. descrição do caso em http://en.wikipedia.org/wiki/Karen_Ann_Quinlan, acessado em 19-07-08.
[61] In re Quinlan, 70 N.J. 10; 355 A.2d 647 (1976).
[62] V. descrição do caso em http://en.wikipedia.org/wiki/Nancy_Cruzan, acessado em 19-07-08.
[63] No Brasil, por força do art. 3º da chamada “Lei dos Transplantes”, a Lei nº 9434, de 04-02-97 e como regulamentado pela Resolução nº 1480/97, do Conselho Federal de Medicina.
[64] V. descrição do caso em http://en.wikipedia.org/wiki/Teri_Schiavo, acessado em 20-07-08.
[65] V. a ordem final de Greer,, no último processo de nome In re Schiavo, disponível na Internet em http://abstractappeal.com/schiavo/trialctorder02-05.pdf, acessado em 20-07-08.
[66] V. interessantíssimo quadro sinótico, atualizado em abril deste ano, no site da American Bar Association, in http://www.abanet.org/aging/legislativeupdates/docs/FamconChart-Final4-22-08.pdf, acessado em 21-07-08.
[67] Superintendent, cit., n. 40, supra.
[68] Esse “padrão Saikewicz”, de interpretação dedutiva do que o paciente com retardamento mental, ou grave quadro psicótico, pudesse querer para si, no que concerne à aceitação ou à recusa de tratamento médico, isto é, a busca da determinação e da defesa daqueles que seriam os seus melhores interesses, é o standard que vem norteando a quase totalidade das decisões mais recentes em casos semelhantes.
[69] Nos Estados Unidos existe um Foster Care System, muito desenvolvido e, na grande média, razoavelmente eficiente e benéfico para os menores. Que são afastados por ordem judicial de seus pais verdadeiros, por vários motivos. Principalmente maus tratos. Abrange uma rede de lares civis, de cidadãos comuns, que se inscrevem no sistema e acolhem crianças ou adolescentes em suas casas por certos períodos, e deles cuidam como se fossem membros de suas famílias. Mais ou menos, mutatis mutandis, como as famílias que recebem estudantes estrangeiros em programas de intercâmbio. V. informações sobre esse sistema em http://en.wikipedia.org/wiki/Foster_care, acessado em 15-07-08.
[70] Na Europa muito mais ainda. Na Turquia, por exemplo, a responsabilidade penal começa aos 12 anos. V. Laura JANES, Criminal liability of minors and severity of penalties: European trends and developments, artigo publicado por The Howard League for Penal Reform (England and Wales) 2008, in http://www.europeanrights.eu/getFile.php?name=public/commenti/LauraJanes_en.pdf, 25-07-08.
[71] Gillick v. West Norfolk and Wisbech Area Health Authority, [1985] 3 AII ER 402 (HL)
[72] Id., ibid.
[73] Apud Carol M. OSTROM, in Mount Vernon leukemia patient, 14, dies after rejecting transfusions, interessante artigo publicado no jornal The Seattle Times, ed. 29-11-07, disponível na Internet em http://seattletimes.nwsource.com/html/health/2004041765_transfusion29m.html, acessado em 20-07-08.
[74] “Ye are my witnesses, saith the LORD, and my servant whom I have chosen: that ye may know and believe me, and understand that I am he: before me there was no God formed, neither shall there be after me.” (Aqui na linguagem da versão King James, porque foi a utilizada pelos fundadores da religião.)
[75] The official teaching of Jehovah’s Witnesses regards blood as sacred and rejects allogeneic and storedautologous transfusions of whole blood, red cells, white cells, platelets or plasma. This is based on an understanding of the Biblical admonition to “abstain from blood”, based on Acts 15:28, 29, and also on Leviticus 17:11,12, “For the life of the flesh is in the blood … No soul of you shall eat blood”, and of Genesis 9:3, 4, which they understand to be the first instance of “the Bible’s clear prohibition against taking blood into the body”. Cf. rubrica Jehovah´s Witnesses, na Wikipedia, notas omitidas,disponível na Internet em http://en.wikipedia.org/wiki/Jehovah’s_Witnesses, acessado em 20-07-08.
[76] Congress shall make no law respecting an establishment of religion, or prohibiting the free exercise thereof; or abridging the freedom of speech, or of the press; or the right of the people peaceably to assemble, and to petition the Government for a redress of grievances.
[77] In Mount Vernon cit., n. 73, supra.
[78] Os testemunhas de Jeová aceitam, entretanto e por isso mesmo, as dry surgeries, fáceis de conceituar, difíceis de conseguir fazer.
[79] V. explicação bastante completa no verbete Church of Christ, Scientist, na Wikipedia, disponível na Internet em http://en.wikipedia.org/wiki/Church_of_Christ,_Scientist, acessado em 20-07-08.
[80] Não confundi-la com a Cientologia, uma fé (?), seita (?), crença (?) ou religião (?), difundida atualmente por “expoentes intelectuais” como o ator de Hollywood Tom Cruise, e fundada em 1952 por L. Ron Hubbard, ótimo autor de ficção científica. Et pour cause…
[81] V. David MARGOLICK, In Child Deaths, a Test for Christian Science, in The New York Times, ed. 06-08-90 http://query.nytimes.com/gst/fullpage.html?res=9C0CE0D61030F935A3575BC0A966958260, acessado em 21-07-08.
[82] V. notícia da Associated Press, Girl´s death probed after parents rely on prayer, divulgada online no site MSNBC. com, em 28-03-08, disponível na Internet em http://www.msnbc.msn.com/id/23832053 acessado em 21-07-08.
[83] V. notícia da Associated Press, Faith-healing parentes charged in child´s death, divulgada online no site MSNBC.com em 31-03-08, disponível na Internet em http://www.msnbc.msn.com/id/23882698, acessado em 21-07-08.
[84] In the Matter of Baby K., 16 F.3d 590 (4th Cir. 1994).
[85] Em 19 de novembro de 2006 nasceu uma menininha anencéfala, Marcela de Jesus Ferreira, em Patrocínio Paulista, Estado de São Paulo. A última notícia que encontramos a seu respeito é de 20 de fevereiro de 2008. Ainda estava viva.
[86] Ford v. Wainwright,477 U.S. 399 (1986)
[87]Os Circuitos Federais dos Estados Unidos equivalem, aproximadamente, aos nossos Tribunais Regionais Federais. Esse Oitavo Circuito tem jurisdição sobre os estados de Arkansas, Iowa, Minnesota, Missouri, Nebraska, North Dakota e South Dakota.
[88] Singleton v. Norris, 319 F.3d 1018 (8th Cir. 2003).
[89]Sherry F. COLB, Medicating Prisoners So They Can Be Killed: A Federal Court Approves Antipsychotic Drugs for Mentally Incompetent Convicts, in FindLaw Legal News and Commentary, ed. 26-02-03, disponível em http://writ.news.findlaw.com/colb/20030226.html, acessado em 21-07-08.
[90] Washington v. Harper, 494 U.S. 210 (1990).
[91] Riggins v. Nevada, 504 U.S. 127 (1992).
[92] Sell v. United States, 539 U.S. 166, 168 (2003).
[93] Guido CALABRESI e Philip BOBBIT, Tragic Choices – The conflicts society confronts in the allocation of tragically scarce resources, 1ª ed., New York, W.W. Norton, 1978, p. 184.
[94] Shune v. Vega, 429 Mass. 116, 564 N.E.2d 1017 (1999).
[95] Health Care Financing Administration, Department of Health and Human Services. Medicare and Medicaid programs: hospital conditions of participation, patients’ rights. Fed. Regist. 1998;64:36070-36089.
[96] Mary E. TINETTI, Over-the-Counter Sales of Statins and Other Drugs for Asymptomatic Conditions, 358 NEJM 2728, ed. 19-06-08.
[97] A esse propósito, livro recentíssimo de Richard M. BERLIN, Poets on Prozac – Mental Illness, Treatment, and the Creative Process, 1ª ed., Baltimore, Johns Hopkins University Press, 2008.
[98] Implementado pela Resolução CFM 1.246/88, de 08-01-88.
[99] Lei Estadual nº 10.241/99, de 17-03-99.
[100] Coisas brasileiras, no momento do término deste trabalho, essa muito boa resolução estava suspensa de aplicação e observância, por força de uma decisão liminar prolatada por um nobre juiz federal., nos autos de uma ação civil pública.
[101] Segundo os seus autores, “o projeto pretende regulamentar a matéria, permitindo a ortotanásia em situações bastante específicas e estabelecendo processo criterioso para sua aprovação”. Cf. exposição de motivos, disponível no “Portal da Câmara”, endereço http://www.camara.gov.br, acessado em 30-06-08.
[102] Jó 10:20, trad. João Ferreira de Almeida, at. 1994. Lamento e súplica a Deus, lançados por Jó, no auge do seu desalento e desespero.
[103] Jó 42:16-17, trad. João Ferreira de Almeida, at. 1994.
Fim da estória de Jó, após as penas e os sacrifícios; depois da reconciliação.