A construção de um mito que passa pela angústia do queijo camembert 29/06/2022

Gabriel Guerra Rivera

Esse garoto, aconteça o que acontecer, tem que morrer coberto de piolhos“. Foram essas as palavras que um pai proferiu ao seu filho após este cometer um grande erro de ortografia. Palavras que dão uma ideia da força dessa figura paterna. O próprio filho, ao descrevê-lo, disse que esse pai representava Moisés e Júpiter ao mesmo tempo, ou seja, o poder absoluto.

Esse filho chama-se Salvador Dalí.

Em uma entrevista de 1977 para o programa espanhol “A Fondo” (EDITRAMA, 2001), Dalí faz revelações por demais interessantes e que ilustram algumas características da neurose obsessiva.  Mencionarei algumas delas.

1.

Assim como no caso do Homem dos Ratos (FREUD, 1909, p.206), a relação de Dalí com o pai caracterizava-se por uma divisão de sentimentos: “quando ele ficava bravo, gritava, mas ele me amava muito”, disse Dalí. A mesma característica aparece no caso do homem dos lobos, cujo medo pelo pai foi o motivo mais forte para ele adoecer e para sua atitude ambivalente diante de tudo que passou a representar essa imagem paterna (FREUD, 1917 – 1918, p.42).

Complexo de Édipo? Bom, Dalí, ao ser questionado naquela entrevista, disse que preferia o mito de Guilherme Tell: “Sempre senti uma maçã em cima da minha cabeça com o perigo da expulsão familiar”.  Uma bela descrição da ameaça da castração. E de fato, seu pai acabou expulsando-o.

Mas Dalí encontra na pintura a solução para muitos dos seus conflitos. Com relação ao seu pai, ele o apresenta ao mundo na sua primeira exposição em Barcelona no quadro “Retrato do meu pai”, de 1925, considerado como uma das melhores pinturas da etapa da sua juventude.

Se fizermos um paralelo com a neurose histérica, vemos que a figura paterna também desempenha um papel especial nela, mas com matizes diferentes. Um exemplo é o caso do pintor Christoph Haizmann que sofrera de depressão melancólica derivada da morte do seu pai, e sua única forma de substituí-lo foi mediante um pacto com o demônio (FREUD, 1923 – 1925).  Ou no caso Dora, uma jovem muito apegada ao pai, ao qual demonstra uma ternura especial devido às várias doenças dele. Dora, além de sintomas somáticos também apresentava um profundo desânimo (FREUD 1901 – 1905).

2.

Dalí, na infância, adota atitudes que lembram um pouco a histeria: disse ele na entrevista: “Eu sempre estava doente, eu gostava muito. Para mim 38,5ºera a temperatura ideal… e não ir à escola e ser mimado.” Segundo Freud (1901 – 1905, p.30), o motivo para adoecer é sempre a obtenção de algum lucro. Porém ele mesmo estabelece a diferença entre o histérico e o obsessivo: na histeria o paciente desconhece sua doença, diferente do neurótico obsessivo.

Dalí, anos depois, inventa uma solução a esse momento da vida dele: sua primeira pintura que se tem notícia, o autorretrato “A criança doente” de 1914 (data mencionada na entrevista de 1977).

3.

Freud destaca o papel da incerteza na neurose, que permite que o sujeito seja atraído para fora da realidade. Os pacientes esforçam-se para manter a dúvida diante de tudo e evitar a certeza.  Os neuróticos obsessivos, como consequência, dirigem seus pensamentos a temas que são uma incógnita para a humanidade, como a duração da vida e a vida após a morte, entre outros. (FREUD, 1909, p. 201-202)

Dalí aborda alguns desses temas na entrevista. A morte foi uma das grandes obsessões da vida dele e foi na religião católica que encontrou respostas. Ele acreditava fortemente na imortalidade da alma. Também, quando pensava em vida em outros planetas, ele afirmava: “Incomodar-me-ia pensar que há vida em outros planetas”, por isso preferia duvidar disso.

O mecanismo da dúvida na histeria, por outro lado, aparece de uma maneira particular: as lembranças encontradas em um primeiro estágio de recalcamento, encontram-se cercadas de dúvidas e são substituídas pelo esquecimento ou falsificação da memória. Nesse sentido, quando há duas versões na narrativa do paciente histérico, a primeira será a mais correta, disse Freud. (1901 – 1905, p. 28)

Mas, voltando aos neuróticos obsessivos e sua relação com a dúvida, Freud afirma: “De fato, alguns deles dão uma vívida expressão a essa tendência, numa aversão por relógios (de vez que estes, em última análise, dão certeza da hora do dia)” (FREUD, 1909, p.202).

O que Dalí tem a dizer sobre isso? Ele encontra uma magistral solução. Ele concebe os chamados “relógios derretidos” (relojes blandos), pintados na obra “A Persistência da Memória” de 1931. Uma pintura onde há quatro figuras de relógios derretidos pelo passo do tempo. Dalí explica que a sua inspiração foi o queijo camembert: “é como a carne de Cristo, como queijo, como o camembert, a angústia do camembert do espaço.” 

Como não acreditar que essa foi uma solução criativa que Dalí deu para aquilo que poderia se tornar um sintoma obsessivo limitante? Manipular os relógios, derretê-los, compará-los com o queijo, com o queijo camembert, que assim como os seres humanos sofre de angústia. A angústia do queijo camembert.

Dalí cria um roteiro com soluções pessoais geniais e únicas. Soluções pelas quais ele se responsabilizou. E ele vai além.  Na época da entrevista, Dalí falava de uma das suas últimas obsessões: um museu inacabado, de maneira intencional nunca seria acabado; estaria sempre cheio de coisas novas e desconcertantes. Uma bela aproximação do real, onde não há respostas prontas e o sujeito fica responsável pelas suas respostas criativas.  Lacan afirma: “De fato, como sempre acontece na vivência dos neuróticos, a realidade imperativa do real tem precedência sobre tudo o que atormenta infinitamente”. (LACAN, 2008, p. 25)

Moisés e Júpiter numa pessoa só, uma criança doente, relógios derretidos e a angústia de um queijo, do queijo camembert: um roteiro fantástico, um pequeno drama -diria Lacan (2008, p.25) -, o mito individual de Salvador Dalí!

Trabalho de conclusão do primeiro semestre do Curso Intermediário De Freud a Lacan (2022).

Gabriel Guerra Rivera faz parte do Corpo de Fomação em Psicanálise do IPLA.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

EDITRAMA. Salvador Dalí A Fondo – 27 de noviembre de 1977. [S.I.]: EDITRAMA, 2001. 1 vídeo (60 min 25 seg). Disponível em:  https://www.youtube.com/watch?v=B9Rn7pz2TGE&t=2762s Acesso em: 8 jun 2022.

FREUD, S. (1901 – 1905) Um Caso de Histeria, Três Ensaios sobre Sexualidade e outros trabalhos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 7. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 333 p.

_________ (1909) Duas Histórias Clínicas (o “Pequeno Hans” e o “Homem dos Ratos”). In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 10. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 293 p.

_________ (1917 – 1918) Uma Neurose Infantil e outros trabalhos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 17. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 323 p.

_________ (1923 – 1925) O Ego e o Id e outros trabalhos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. 19. Rio de Janeiro: Imago, 1996. 365 p.

LACAN, J. O Mito Individual do Neurótico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor Ltda, 2008. 100 p.