Dorothee Rüdiger
Talvez uma das obras de arte mais icônicas da capacidade de transformar uma tragédia em drama é a novela “A peste” de Albert Camus. Valho-me de alguns trechos para guiar reflexões sobre o tema da Conversação.
Cena 1: “Na manhã do dia 16 de abril, o doutor Bernard Rieux saiu do consultório e tropeçou num rato morto, no meio do patamar. No momento, afastou o bicho sem prestar atenção e desceu a escada. Ao chegar à rua, porém, veio-lhe a ideia de que esse rato não estava no lugar devido e voltou para avisar o porteiro.”
Uma doença, estranha e mortífera, estava acometendo os cidadãos de Wuhan na China. Diante das câmeras de televisão do mundo global, os chineses erguiam, em tempo recorde, gigantescos hospitais. Lá na China, longe do coração. Aos poucos, outras imagens são capturadas pelas atentas câmeras globais. A cidade de Bérgamo, na Itália, apesar das medidas sanitárias tomadas pelas autoridades sanitárias, não conseguia mais lugar para seus mortos no cemitério. Filas de caminhões com cadáveres se formavam à espera do enterro. O vírus, agora com nome e endereço, COVID19, estava se espalhando pelo mundo.
Cena 2: “A morte do porteiro, pode-se dizer, marcou o fim deste período, cheio de sinais desconcertantes e o início de um outro, relativamente mais difícil, em que a surpresa dos primeiros tempos se transformou, pouco a pouco, em pânico.”
Um “inimigo invisível” desembarcou no Brasil, no corpo de um passageiro de avião. O doente ainda tinham nome e procedência. Mas, a infecção espalhou-se pela comunidade. A quarentena decretada, nossas cidades também viraram desertos. As pessoas se viam frente a frente com seus familiares no lar, lá onde, como nos ensina Sigmund Freud, é o lugar dos amores, mas também do sinistro, do unheimlich “estranhamente familiar”.
Junto com o vírus, a angústia estava se espalhando. Os sempre atentos olhares televisivos traziam estatísticas compostas por números de infectados e de mortos, no Brasil. Morte de amigos, de familiares, sem despedida, sem velório, sem túmulo cuidadosamente escolhido. Luto, silêncio.
Cena 3: “O flagelo não está à altura do homem: diz-se que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa, e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram as suas precauções.”
A angústia estava batendo na tela do computador. Aulas e reuniões online foram organizadas às pressas. A telemedicina foi autorizada. Todas as sessões de psicanálise passaram a ser por videoconferência. Os sonhos e pesadelos chegaram ao divã remoto. Um paciente adolescente estava paquerando uma menina no colégio, quando as aulas foram interrompidas. Sofria de um amor interrompido. Sonhos profissionais, tal como o sonho de uma chef internacional, foram destruídos. Ela que teve que fechar seu restaurante. E só lhe restava chorar. Já uma paciente enfermeira perdia o sono. Vivia com o medo constante de contaminar a si mesma, ao marido e ao pai. Uma professora de escola pública passava seus dias tentando contato com seus alunos por celular. Em vão. Muitos não tinham dinheiro para colocar créditos. Enquanto isso, os alto falantes de uma igreja numa cidadezinha em Minas Gerais não paravam de anunciar a morte de seus paroquianos. “Também tocam, quando nascem as crianças?” Contra o vírus COVID 19 se fez necessária a virulência da psicanálise.
Cena 4: “Já que a ordem do mundo é regulada pela morte, talvez convenha a Deus que não acreditemos nele e que lutemos com todas as nossas forças contra a morte, sem erguer os olhos para o céu, onde ele se cala. – Sim – concordou Tarrou – compreendo. Mas as suas vitórias serão sempre efêmeras – mais nada. O semblante de Rieux pareceu enuviar-se. – Sempre, bem sei. Não é razão para deixar de lutar.”
O vírus foi estudado, vacinas foram encontradas. Um movimento na sociedade civil e no parlamento se formava para desvendar uma política governamental negacionista. A luta política diante dos olhares da televisão despertou meu paciente mineiro, antes deprimido por tanta morte. “Hoje é dia de CPI, doutora! Vamos nos livrar dessa outra peste?”
Da crise para a criação é uma questão de mudança de letrinhas. Meu paciente estudante, antes ensimesmado, animou-se para escrever, finalmente, sua monografia. A chef parou de chorar. Começou a investir o pouco dinheiro que lhe restava em outro projeto empresarial. As portas, aos poucos, se abriam permitindo a alegria das crianças ao encontrar outras crianças. Meu paciente adolescente podia olhar nos olhos da menina e retomar suas tímidas tentativas de beijá-la.
Cena 5: “Embora esta brusca retirada da doença fosse inesperada, nossos concidadãos não se apressaram em regozijar-se.”
O que nos ensina a clínica da pandemia? Escancarando a morte, o acaso, o Real, como quer Jacques Lacan, afirma e reafirma que a angústia permeia nossos laços amorosos e sociais. Há vacina contra a COVID19, mas não há vacina contra o Real. Reabertas as portas das casas e dos shoppings, o que “não tem nome” chega à clínica psicanalítica. No divã, agora, a angústia de um marido. Sua esposa, depois de dois anos de quarentena, tinha acabado de lhe revelar: “agora quero me libertar também de você”. Outros pacientes relatam como é voltar ao trabalho presencial: “Vou ter que encarar o chefe chato e os sem-noção dos meus colegas?” Os que dedicam seu trabalho à saúde estão se angustiando diante da reorganização dos sistemas de saúde pública e privada: equipes desmanchadas e recompostas, organização empresarial dos hospitais visando eficiência técnica e baixo custo. “Não posso mais acompanhar meu paciente. Para quê então sou médico?” A questão de um médico ortopedista paira no ar. As escolas, mais do que nunca estão em crise. Com a volta às aulas presenciais voltam velhas questões: “O que faço com crianças sem noção de limites?” , pergunta-se uma professora em início de carreira.
“Eu vim para lhes trazer a peste” (Sigmund Freud)
Chegamos à questão dos sintomas da pós-pandemia. Como a psicanálise pode contribuir com sua virulência? Como as pessoas em sua singularidade encontram novas formas de agir? Como pode a psicanálise, em interlocução com a sociedade, alavancar os laços sociais horizontais que já se esboçaram? Diagnosticar é preciso. Conversar também. Quem sabe, poderemos, por esses dias, encontrar propostas criativas capazes de viralizar pelo mundo.