Conferência de Jorge Forbes
proferida em 05 de agosto de 2024
por ocasião da abertura do 3º bimestre letivo
do Instituto da Psicanálise Lacaniana – IPLA.
Estabelecimento por Talyta Carvalho.
É bom estar com vocês depois dessas férias. Nós temos uma tarefa hercúlea pela frente. Eu prometi que faria uma série de esquemas que respondam à bagagem do analista nesse momento. Entendi que a melhor forma de o fazer seria através de esquemas, ou do que Lacan chamava de matemas. Irei propor sete deles hoje. Vai ser um esforço de reportagem. Se vocês me perguntarem o porquê de fazer isso, sete esquemas na mesma reunião, respondo que é porque será interessante ver que esses esquemas são diferentes entre si, mas seguem uma mesma lógica. Eu espero que ajude a cada um saber que a psicanálise não tem standards, mas tem princípios. Repito: não tem standards, mas tem princípios. E são os princípios que estão na base desses esquemas. Quanto mais claro isso estiver para cada um, mais fácil será para a pessoa avançar na psicanálise e aumentar a extensão de sua pertinência clínica. Se você igualar standard com princípio, você fixará um modelo que só servirá para aqueles que se adequam a ele, tal como o que ocorre na atual indústria farmacêutica em que o paciente tem que se adequar ao remédio e não o contrário.
A psicanálise subverte essa lógica desde a sua origem e, gradativamente, será compreendido que o que nós fazemos hoje será o futuro da medicina. É isso mesmo que eu acabei de falar, estou fazendo referência ao trabalho de Jacques Lacan quando ele é convidado para falar da relação da psicanálise com a medicina na Associação Médica de Paris, e diz que o futuro da medicina é a psicanálise[1]. Não é uma boutade, como se fala em francês; não é um petardismo; é uma referência ao cerne do que vou estabelecer hoje. Feita essa pequeníssima e leve introdução, quero lembrar dois pontos do que trabalhamos no último encontro:
- Dei o nome de “bagagem do analista[2]” ao processo que visa aliviar o analista de todo excesso de peso desnecessário proveniente de conceitos e ferramentas imprecisos e pouco eficazes. Insisti com vocês que quando alguém vai viajar, fazer uma mala leve é muito mais difícil do que fazer uma mala pesada. Se você precisa pegar um avião dali a duas horas, não dá para ficar escolhendo e pensando o que é necessário, você pega dez camisas, dez calças, dez meias, muda a mala para caber tudo e já vai para o aeroporto sabendo que vai precisar despachar a mala, talvez perder a mala que pode ser extraviada, enfim, aquele inferno que conhecemos. E por quê? Porque nós pusemos tudo e mais um pouco naquela bagagem. Penso que os lacanianos hoje em dia são assim. Meus caros colegas pegam uma mala e põem tudo e mais um pouco: sujeito dividido, Outro, objeto petit a, grafo que sobe, que desce…
É a barbárie do lacanês que vigora e que, a meu ver, desonra o ensino de Jacques Lacan porque é inconsequente, clinicamente inconsequente. Não basta ser lacaniano, tem que saber o que fazer com esses princípios e com esses standards. A psicanálise é uma operação, por vezes Freud a chamou de “operação analítica”. Uma operação tem bisturis, não adianta você ter o bisturi diamante para fazer uma operação em que ele não é de todo recomendável. Assim também ocorre com os conceitos que se simplificam com o decorrer do tempo, uns se mostram mais efetivos na clínica que outros. Aliás, cada um vai ter que escolher, como operador, os seus bisturis. Quando um cirurgião vai fazer uma operação delicada, ele leva sua própria caixa de operação ao invés de utilizar a caixa genérica do hospital. De modo semelhante, a psicanálise também tem que se adequar à mão de cada um. Essa metáfora foi utilizada por Jacques Lacan em seu Seminário.
Eu sei que muitos dizem que eu sou claro. Dá um trabalho de cão para ser claro, e como dá um trabalho enorme, é muito mais fácil dar o trabalho da decodificação para quem escuta. Quando você é claro, todo o trabalho da decodificação foi feito por você. Você decodifica e passa para o outro. Nesse sentido da transmissão, sou absolutamente freudiano e concordo com Freud quando ele dizia “se alguma coisa que eu disser não estiver claro para você, é porque eu não sei o que eu estou dizendo”.
“NESSA DESNATUREZA…”
2. Quero trazer à lembrança de vocês uma síntese da aula anterior. Se me perguntassem “o que você fez naquela aula?” Eu responderia: Fiz a demonstração da diferença entre um pensamento determinista e um pensamento arbitrário. Repito, eu trabalhei a diferença de um pensamento determinista para um pensamento arbitrário. “E como é que você fez isso?” Eu fiz isso através de Ferdinand de Saussure, a pessoa que inaugura a linguística moderna. Trata-se de alguém que era ágrafo, ou seja, “a” de negação, o “grafo” de grafia. Foram seus alunos que, dois anos após sua morte, publicaram o seu único livro chamado Curso de Linguística Geral, onde ele mostra que o sentido é arbitrário.
Curiosamente, a psicanálise foi vista com frequência como tendo algo de determinista. Em frases como “não faça isso com seu filho ou ele vai ficar traumatizado para todo sempre” carregam essa percepção de determinismo. Durante muito tempo a psicanálise foi tida como uma prática que se limitaria a interpretar quais determinações as pessoas haviam adquirido até seus 4, 5 anos de idade. A meu ver, é uma forma muito empobrecida e mesquinha de pensar…e digo isso não pela psicanálise, mas pelo ser humano! Porque se toda a nossa vida dependesse do que nos aconteceu nos primeiros anos da nossa existência… nós estaríamos perdidos! Existiria uma injustiça de base…Se assim fosse, Freud, um dos maiores gênios da humanidade, teria descoberto uma prática que seria inútil em última instância, já que a nossa vida seria um jogo de cartas marcadas definido na infância. Ainda bem que isso não ocorre! Claro, até aqui?
E em que isso que acabo de dizer sobre determinismo e infância se relaciona com a arbitrariedade do sentido na linguística da qual falava Saussure? Foi o que trabalhei na conferência anterior, estabelecendo que a arbitrariedade do sentido é o que possibilita à psicanálise se posicionar como não sendo determinista. Esclareço esse ponto: fiz esse deslocamento da psicanálise que era percebida como determinista para uma psicanálise não determinista, trabalhando por meio de exemplos, a diferença entre sentido determinado e sentido arbitrário através da teoria de Saussure contida no Curso de Linguística Geral. Uma das teses fundamentais dessa teoria é que o sentido se dá na relação dos significantes não na relação de um significante com à coisa. Foi para demonstrar essa ideia que me vali de três exemplos distintos de como isso pode ocorrer. Retomo brevemente essas três maneiras de modificação do sentido:
- O sentido pode mudar pelo acréscimo de significantes em uma dada cadeia de significantes. Foi o exemplo da “casa verde de Mário”.[3]
- Fazendo o inverso, o sentido pode se deslocar pelo decréscimo de significantes. Foi o exemplo da frase “Ai querido assim não podemos mais seguir vivendo.”[4]
- E, por fim, o sentido poderia mudar a partir da pontuação que se faz em uma cadeia significante. Ao mudar a pontuação, o sentido muda também. Ilustrei com o exemplo do quarteto formado por três mulheres apaixonadas pelo mesmo homem que encontram uma carta dele citando os nomes das três[5].
Ainda acrescentei, fora dessa lógica, que também as onomatopéias e o discurso afetivo são arbitrários. Expliquei, por exemplo, sobre a onomatopeia que a galinha lá na Olimpíada, como é em Paris, faz “cocoricô” e a nossa galinha faz “cocoricó”. Mas a galinha do Kremlin faz “cocorieka” e não há jeito do russo não ouvir o “cocorieka”. Aí falamos “mas é cocoricó, não é cocorieka!”Enfim, o mundo é arbitrário e a psicanálise lida com esse arbitrário. É ele que está na base da nossa concepção do homem, da nossa falta essencial ao nascer. Isto é, em termos de uma essência definida do seja o homem, ela nos falta, nós não temos essa essência. Quando falo em essência deste modo estou partindo da concepção existencialista de autores como Jean-Paul Sartre[6] quando este diz que nos homens, “a existência precede a essência”, ao contrário dos animais que tem sua existência já definida por sua essência. Os seres humanos não são seres naturais. Não existe natureza humana. São frases de alto impacto, mas espero que qualquer um aqui nessa sala entenda a definição disso e como é fácil explicar para outra pessoa. Sim, a psicanálise preconiza que não existe natureza humana. Então, é isso que eu entendo ter feito na aula anterior. Passo agora aos esquemas que quero apresentar hoje, todos eles, como falei, partem do mesmo princípio e se diferenciam na sua apresentação.
“ALGUMA COISA ACONTECE NO MEU CORAÇÃO”
O primeiro esquema do qual vou falar é sobejamente conhecido e, por isso, vou dedicar menos tempo a ele. É o esquema do nascimento da pessoa frente ao espelho. Dificilmente alguém desconhece esse esquema, então, eu posso ser rápido. Ele diz respeito ao fato de nós nascermos sem uma essência, da nossa existência ser anterior à nossa essência. Represento isto através de um corpo fragmentado, porque estou me referindo evidentemente a Jacques Lacan. O corpo é fragmentado.

Comentei diversas vezes que é mesmo fragmentado. A bainha de mielina não está pronta. Se perguntássemos para um bebê como ele se sente, ele responderia “aos pedaços”. Portanto, esse corpo nasce, ele está aos pedaços e ele recebe um cobertor civilizatório. Esse cobertor civilizatório é o espelho. Nós utilizamos a metáfora que vem de um trabalho de Lacan chamado “O Sinal do Espelho”, de 1936, que foi perdido. Lacan perdeu esse trabalho e depois o reescreveu de uma outra maneira. Eu tenho esse corpo, que Lacan também chamou de pedaço de carne movediça, frente a um espelho. A imagem desse corpo passa a ser um corpo unificado. É o outro (a mãe, o pai, o tio, a família,…) quem acolhe esse ser humano e o envolve no lençol de um nome, por exemplo, o nome “Teresa”. Se eu perguntar para Teresa aqui do meu lado, por que ela se chama Teresa, ela vai dizer que a mãe dela, que eu conheço, também se chama Teresa. Eu poderia continuar e envolver todo o ideário que foi lançado sobre este corpo que um dia foi fragmentado e se tornou unificado neste ideário.

Este corpo fica alienado nesta imagem. O exemplo, a meu ver, mais do que evidente, é uma criança de dois anos de idade: ela fala em terceira pessoa, não tem jeito. Ela vai falar “Maria quer água” ou vai falar “João quer água”, e a mãe vai dizer “Meu filho, minha filha, vocês já estão grandinhos, não é João quer água, é eu quero água”. Eu brinco dizendo que o menino responde “você também está com sede, mamãe?”. E aí a mãe faz o golpe final sobre a criatura João ou Maria dizendo, “não…eu é você.” Que recupera o verso de Rimbauld, “Eu é um outro”. A pergunta importante, para cada um lembrar desse esquema, é a seguinte: você virou essa imagem? A imagem do espelho recuperou tudo que estava fora do espelho? Resposta: Não, no humano não se recupera. Nós não temos essa recuperação. Geralmente represento com esse emaranhado, dizendo que alguma coisa ficou fora do espelho. No momento, eu chamo de “trolho” o que fica fora do espelho.

“Alguma coisa acontece no meu coração, que só quando cruza a Ipiranga e a avenida São João”. Logo, existe alguma coisa que fica fora. E porque existe alguma coisa que fica fora? A necessidade é respondida no espelho, o desejo é o que fica fora. Eu insisto: estou querendo transmitir a vocês ferramentas que abrem várias portas diferentes. Você pode dizer, por exemplo, para um diretor de empresa, que não funciona ter uma diretora de felicidade, por mais que ele acredite ser possível fazer um estatuto do “trolho”. Claro, isto vende bem porque o homem gosta de ser alienado, ele detesta a liberdade. Não é a troco de nada que o Sr. La Boétie escreveu o Discurso da servidão voluntária, ou seja, nós voluntariamente somos submissos. É mais fácil ser submisso do que suportar a invenção necessária ao ser humano. O ser humano é inventivo por obrigação. Não é que ele goste de ser inventivo, é que não tem jeito. Ou você é inventivo ou você é neurótico, psicótico ou perverso. O normal é o inventivo, os outros são os anormais.
“APRENDE DEPRESSA A CHAMAR-TE DE REALIDADE”
O esquema dois é o do sonho. Pergunto a vocês: analista interpreta sonho? Não! Mas é um “não” bem grande, um “não” imenso! Analista nenhum interpreta sonho. As pessoas acham que sabemos interpretar, vamos em uma festa e sempre tem um que diz “cuidado com o que vai falar porque ele é analista, pode descobrir tudo da gente”. Quando a pessoa fala isso, você já descobriu…Então, analista não interpreta o sonho, analista interpreta relato do sonho. E como é que se interpreta o relato do sonho? Fazendo inconsciente funcionar. Falei da vez anterior que quem interpreta é o inconsciente. O paciente chega e teve um sonho, vou representar as palavras do sonho como essas bolinhas:

Freud escutava o sonho e dizia: “e agora?” Ou seja, você tem que abrir a associação livre. “O que esse sonho te provoca?”; “O que esse sonho te diz?”; “O quê nesse sonho te incomoda?”; “A que esse sonho se refere?” Você pergunta para o analisando. E Freud, no seu método descrito tanto na Interpretação dos sonhos, quanto no livro posterior chamado Sobre os sonhos, que é o resumo da Interpretação dos sonhos, diz que cada uma dessas parcelas se abrem para, ao menos, duas associações:

E de cada uma dessas duas associações, se abrem mais duas associações. E de cada uma dessas, mais duas associações. E assim vão seguindo até o momento que começam a se fechar em relação a um ponto que é o “nó de desejos sexuais infantis recalcados”. Quando Freud analisou um sonho dele próprio e começou a fazer associações e as associações começaram a se juntar, ele escreve no Sobre os sonhos: “não vou continuar falando, não vou continuar essa interpretação por pudor pessoal, porque continuar me levaria a falar sobre coisas íntimas da minha vida que eu não gostaria de repartir nesse livro”. Aí ele continua, ele que está sempre conversando com o interlocutor anônimo e fala com uma clareza assombrosa: “não vou contar outro sonho, porque ao fazer as associações, eu vou chegar ao mesmo ponto desse. E um terceiro sonho chegaria ao mesmo ponto, e um quarto, e um quinto, e um sexto, todos me levariam para o mesmo ponto, ao nó de desejos sexuais infantis recalcados”.

Ou seja, o que dá o sentido das expressões da vida é o recalcamento inicial de um “trolho” que eu não pude compreender, e que é infantil porque não tem palavra, não porque é criança. “Infantil” quer dizer “o que não tem palavra”, “infans”. Eu quero chamar atenção sobre esse aspecto desta amarração do sonho que recebe o nome, em Lacan, de “fantasma”. Em um certo momento, nós pensávamos que a psicanálise tinha como objetivo final o atravessamento do fantasma. Não é que não pensemos assim, é que não é suficiente. É uma topologia, uma forma mais antiga. Nós avançamos em relação a isso e avançamos muito. Vocês notaram que o “trolho” do esquema um reapareceu como “nó dos desejos sexuais infantis recalcados” neste segundo esquema? Vamos seguir acompanhando a viagem do “trolho”.
“QUEM NÃO É RECÔNCAVO E NEM PODE SER RECONVEXO”
Terceiro esquema. Permitam -me ler um pedaço do texto que vou comentar: “Dado um problema definido, pode -se construir uma máquina para resolvê-lo. Mas não é possível fazer uma máquina deste gênero capaz de resolver todo e qualquer problema”[7]. Anotem “todo e qualquer problema”. Não é possível uma máquina resolver todo e qualquer problema. Não é possível um espelho resolver todo e qualquer João. Não é possível um espelho resolver toda e qualquer Maria. Sigo a leitura:
[…] mas não é possível fazer uma máquina deste gênero capaz de resolver todo e qualquer problema. O cérebro humano pode, na verdade, ter limitações próprias inerentes, e talvez existam problemas matemáticos que ele seja incapaz de resolver. Mas, ainda assim, o cérebro parece corporificar uma estrutura de regras de operação muito mais poderosa do que a estrutura das máquinas artificiais comumente concebidas. Não há perspectiva imediata de substituir a mente humana por robôs.[8]
É uma questão atual….seremos substituídos pelas máquinas ou não seremos substituídos pelas máquinas? Essa frase foi escrita em 1958, quando Ernest Nagel e James Newman, comentaram um dos mais importantes e famosos teoremas da matemática: o teorema anunciado por Kurt Gödel, um austríaco refugiado nos Estados Unidos. Aos 25 anos de idade, Gödel demonstrou o erro da tentativa de prova de Whitehead, do Principia Mathematica, de obter a verdade de uma certeza. Compliquei…
Achamos que a matemática é uma ciência exata. Crasso erro. Matemática está longe de ser uma ciência exata porque uma ciência exata seria aquela que pudesse definir uma conjunção completa entre a expressão da frase e a sua verdade. Compliquei de novo. Vamos ao Gödel que tentarei ser mais claro. O que eu quero chamar a atenção é o seguinte: Em que consiste a prova da incompletude? Eu vejo alguma coisa e não sei se ela é verdadeira ou se é falsa:

Quando eu estava no ginásio, a terceira série ginasial era o terror porque é que quando aprendíamos sobre “teorema”em matemática e devíamos provar a veracidade ou falsidade destes teoremas. E fazer esse tipo de demonstração, isto é, se uma expressão (o teorema) era verdadeira ou falsa, dependeria de verificar se ela tinha uma relação completa, sem erro, com uma base que eu definia como verdade, chamada axioma. A fórmula clássica era: “dado que tal coisa é verdadeir, a frase Y é um teorema ou não é um teorema”? Ou seja, trata-se de uma vulgaridade ou é uma visão da realidade? Nós acreditávamos que uma verdade fosse possível como dois mais dois são quatro.

No final do seu segundo ensino, Lacan menciona que o máximo a que chegamos é a uma verité menteuse. Essa ‘verdade mentirosa’ diz respeito a esse aspecto. Da mesma forma que Lacan diz “eu falo sempre a verdade, não toda, porque dizê-la toda é impossível”[9]. É impossível, guardem essa palavra. Não é impotente, é impossível. Impotente é uma coisa, impossível é outra. Impotente é a expectativa de vir a ser potente. Na análise se passa da impotência, não para potência, mas para o impossível. Tenho um esqueminha para isso também, falarei dele mais adiante. O princípio matemático era baseado nessa dedução de uma verdade a partir de um axioma. É a esse princípio que Dr. Gödel responde “perfeitamente, adorei o trabalho de vocês mas destaco um ligeiro detalhe: O fato de uma frase ser verdadeira porque é ligada ao axioma não me autoriza a dizer que aquilo que está fora do axioma seja falso.”

É um erro epistemológico supor que exista uma ciência do completo. Para cada “verdade” a que se chega, haverá algo fora dizendo que isso “não exclui que eu exista”. Diante da incompletude, o cientista vai negá-la afirmando que o axioma é fraco, que é necessário aumentá-lo. Isso se traduz no seguinte exemplo: vou ao médico com uma dor no braço. O médico me prescreve um remédio e, mesmo assim, a dor continua. Volto ao médico; ele decide fazer um Raio-X e conclui que o braço não tem nada. E, no entanto, o paciente diz: “mas o trolho está aqui, meu braço ainda está doendo.” No nosso esquema, representamos isso da seguinte forma:


O médico decide pesquisar mais: “Vamos fazer uma tomografia, aprofundar mais nossa investigação.” Se for um analista, decide fazer mais sessões. Parece que a verdade está na profundeza… Freud já havia insistido várias vezes em como o inconsciente está na superfície. Então, eu aumento o axioma com a tomografia:


O paciente volta e ainda está com o braço doendo. Aprofunda-se novamente a pesquisa para chegar ao novo axioma. O braço continua doendo. Então, raio X, tomografia, ressonância, e assim por diante. E mais sessão, e mais sessão, e mais sessão. É bom que a pessoa note o quanto antes que aumentar a profundidade dessa pesquisa não exclui que exista alguma coisa que não tem nome, nem nunca terá. E que eu fique sempre me perguntando o que será, o que será. Jamais o acaso será abolido.


É da matemática esse exemplo, daquela que é tida como a rainha das ciências! Não é da psicologia ou da sociologia… é da pura e sacrossanta matemática! Então, por mais que eu prove, alguma coisa ainda acontece e continua fora dessa ligação. Gödel tirou duas conclusões: A primeira conclusão é que nenhum sistema abole a existência de uma frase que pode ser verdadeira e independente da prova. Segunda, nenhum sistema abolirá a possibilidade de haver uma verdade fora da prova. Repito, primeira constatação: nenhum sistema de prova abole a possibilidade de haver uma verdade que não pode ser provada dentro daquele sistema. Chamam-se, essas proposições, de “sentenças indecidíveis” uma vez que o sistema não é capaz de fornecer uma prova nem de sua verdade, nem de sua falsidade. Segunda constatação: por mais que se faça para que um sistema seja completo, ele sempre será incompleto, donde o nome “Teorema da incompletude”.
Quando, em psicanálise, nós nos referimos à completude e à incompletude, ao mundo completo e incompleto é a isso que estamos referindo. A epistemologia da psicanálise fala de um mundo incompleto. Se fala do mundo incompleto, nada existe se você não se inserir, consequentemente, na incompletude. Não existe verdade. Se você quiser completar a verdade, terá que fazer um testemunho, isso é Jacques Lacan. E testemunho vem de “testículo”. Quando você fala uma frase que pode ser mentirosa porque errou no teorema, é uma coisa. Mas quando você fala uma frase que se for mentirosa vão cortar seu escroto, é outra coisa. É o que faz com que as pessoas pensem que só homem tem palavra de honra. Divirtam -se. Penso que esse seja o mais forte desses esquemas.
“E ONDE NÃO QUERES NADA, NADA FALTA…”
Vocês já ouviram falar dos quatro discursos. Para quem não ouviu, em um certo momento, Lacan diz que existem quatro discursos. Ele define discurso como laço social, a maneira que eu lido com os outros. Que tipo de laço social eu faço? De que maneira eu me relaciono com o social? Existem quatro possibilidades. Anteriormente, existiam três, mas a psicanálise criou uma quarta possibilidade, um quarto discurso. De acordo com o mito da criação presente na tradição judaico-cristã, no momento inaugural da existência humana nós sabíamos tudo, nós tínhamos a contemplação do divino. E na contemplação do divino, nada nos faltava. Não éramos nem felizes, nem tristes; éramos seres contemplativos. Ficávamos em uma junção complementar com o divino, não havia necessidade e nem desejo dado o fato que nada nos separava da graça obtida da presença do divino. Aí, uma mulher… sempre ela, resolve burlar as ordens de Deus. Essa mulher pega aquela fruta que todos os professores recebem ainda hoje em cima das suas mesas, uma maçã, e leva para o Adão, sendo que a maçã é o fruto da árvore da filosofia, do conhecimento. Em consequência disso, eles são castigados com a expulsão do paraíso. Quer dizer, eles perdem a graça, eles perdem o momento contemplativo, que só será restituído mediante a comunhão que foi estabelecida com a vinda do Filho de Deus, Jesus Cristo, que se sacrificou por nós e nos deixou o que fazer para voltar ao estado de graça: tomar e beber este cálice, que é sangue do meu sangue, tomar e comer deste pão, que é meu corpo. E nós voltamos ao estado de graça através dessa religação com o divino, daí ser uma religião, de me religar com o divino. Então nós temos um primeiro discurso que é um discurso que não tem falta. Esse discurso de caráter magistral é o discurso do mestre: “DM”.
Nós vivíamos no discurso do mestre e fomos expulsos. Ao sermos expulsos, nós não gostamos nem um pouco. Agora temos que trabalhar, temos que pensar, temos que discutir, não estamos mais no estado de graça. Então, passaram a existir duas posições frente a isso. As duas negam a incompletude o qual foram jogadas. Quando você sai do estado de graça, você cai no incompleto. O incompleto é o mundo do pecado. No incompleto, eu posso dizer: “Tudo o que eu tenho, não é tudo que há, mas é tudo o que me importa. Tudo o que eu tenho é tudo o que me importa”. Quem faz isso? Os neuróticos obsessivos. Eles desprezam a falta que têm, negam a falta, razão pela qual Jacques Lacan disse que era muito difícil analisar obsessivos e, por isso, teríamos que histerizá -los. Homens aqui presentes, não fiquem preocupados! Não é com tesoura que se histeriza. Esse discurso tem o nome de “discurso universitário”:

O discurso universitário autoriza um saber e despreza todos os outros saberes. A tal ponto que, quando você vai fazer uma tese, e eu fiz duas, sou louco o suficiente para tê -las feito, a primeira recomendação que seu professor dá é não criar nada original. O discurso universitário proíbe qualquer novidade na universidade. Foi com muita satisfação que fui membro por anos do Instituto de Estudos Avançados da USP, saibam que esse instituto foi criado como o de Princeton, também para pôr em questão a universidade. Há uma oligofrenia presente na universidade quando ela fica o tempo inteiro buscando autorreconhecimento, razão pela qual ela teve que criar no seu bojo uma instituição para dizer que o seu saber é incompleto. É o Instituto de Estudos Avançados da USP que incompleta os doutoramentos da USP. É necessário um local que possa ser contra o fechamento do discurso universitário.
“ÉS O AVESSO DO AVESSO DO AVESSO”
Se o discurso universitário está de um lado do esquema e representa a neurose obsessiva, do outro lado, está um outro tipo de ser humano que reconhece estar em falta, mas acredita que vai chegar a se completar. Não foi completado, mas vai se completar. Isso traduzido em termos de menininhas de 15 anos é a espera do príncipe encantado. “O príncipe virá. Não veio ainda, mas virá.. Eles se perdeu no caminho, ele tropeçou, o cavalo quebrou a pata, mas ele vai chegar.” Enquanto isso, ela vai testando vários cavaleiros…nunca chega aos chevaliers. Então, nós temos um discurso do mestre, um discurso universitário e um discurso histérico.

A ciência, meus amigos, não é do discurso universitário, a ciência é histérica. Então, curiosamente a Universidade está de um lado oposto ao da ciência. Vemos isso na prática. Uma ciência só funciona se conseguir romper com a burocracia universitária. Lacan acrescentou mais um discurso dizendo que esses três discursos fazem uma referência ao todo. O discurso do mestre é o todo, o discurso universitário é “tudo que importa, eu tenho”, e o discurso histérico é “amanhã, eu serei todo”. Posso, com o tempo, dizer que um funciona no passado e o outro funciona no futuro. Alguns já sabem aonde eu vou querer chegar.
Repito, trepito e polipito: O discurso universitário fala do déjà vu. Fala do que eu já vi. O discurso histérico fala do que eu vou ver. Espero que comece a ressoar na cabeça de cada um que eu estou me referindo às paixões tristes. Os dois são tristes. Paixão triste é aquela que nega o presente. “Ontem era melhor…os alunos, quando chegavam aqui, de gravata e terno, cumprimentavam o professor, levantavam-se, não era essa esculhambação.” Então, o discurso universitário é saudosista. Já o discurso da ciência é esperançoso: Nós não sabemos ainda, mas amanhã, talvez saberemos. Não perca a sua esperança. Nós estamos fazendo avanços na pesquisas inacreditáveis!” Qualquer cientista, nesse momento, está falando isso. Um fala do passado, outro fala do futuro.
A psicanálise, meus caros, eu espero que fale do presente. E o presente sem o passado ou o futuro, é eterno. Repito: Eu tenho três tempos nesse esquema: passado, presente e futuro. O passado é o que eu fui e o que eu quero voltar a ser. “Ontem era melhor” … Não, não era. Nada no mundo era melhor há dez, vinte anos atrás. Ou cem anos atrás. Taxa de mortalidade, luz elétrica, os carros. Mas dizer isso é expressar um pensamento saudosista. E ter um pensamento esperançoso tampouco é melhor, são paixões tristes, porque é triste você viver entre o que você era e o que você vai ser. Eu gosto da frase “ontem não é mais, amanhã não é ainda”. Repito, “ontem não é mais, amanhã não é ainda”. Se eu consigo perder a esperança e perder o passado, a única referência que eu tenho é o presente. E se o presente, sem o limite do passado e do futuro, é eterno. É instigante, vocês hão de convir! E é fácil. Quer dizer, é fácil comentar, não sei se é fácil chegar a isso…
Lacan propõe um quarto discurso. O quarto discurso o único que não se refere à totalidade e sim ao vazio. O vazio, ou a falta que Lacan insistia tanto, a tal ponto de haver um ditado, na época que eu era seu aluno em Paris, que dizia. “à chacun sa chacune, à Lacan sa lacune”: A cada um a sua, (a sua parceira), a Lacan sua lacuna…piada de francês…

Bom, a psicanálise tira a pessoa do discurso magistral, ou da esperança do discurso magistral; tira daquilo que Lacan chamou “o avesso da psicanálise”. O avesso da psicanálise é o discurso do mestre e todas as psicoterapias estão na base do discurso do mestre. As diretoras de felicidade tão modernas nas empresas, estão no discurso do mestre. Lacan nos ajuda e aponta que a psicanálise deve fazer a pessoa lidar com o seu desejo. Retomando a frase do meu queridíssimo amigo, Pierre Rey, que escreveu a melhor biografia de uma análise com o Jacques Lacan:
Quero dizer que, em vez de submeter meus desejos a meus meios, decidido a pagar tal preço, eu achara preferível criar os meios para meus desejos – partir do desejo para multiplicar a própria vida em vez de ajustar os desejos limitando-os ao dado da vida. Eu ainda precisava aprender que o objetivo do desejo não é preencher a falta mas que, ao contrário, a falta é causa do desejo.
Sabendo-o, por que não tentar vivê-lo?
Com raras concessões feitas à amizade, ao dever ou à necessidade, é bastante excepcional que eu não esteja bem onde estiver. Por uma razão muito simples: se não fosse assim, estaria em outro lugar.
Está no último capítulo do livro Uma temporada com o Lacan. Observem que o trolho está no esquema, estamos acompanhando o caminho do trolho…
“TUDO MÉTRICA E RIMA”
Mais um esquema. O que muitos não sabem é que, pior que ter feito dois doutoramentos, é ter feito três. Só que o terceiro eu não apresentei, fiz jovenzinho. Lacan me convenceu a estudar linguística e eu estudei tanto que muito jovem me tornei professor da USP, aos 27 anos de idade. E me demiti antes dos 30, porque não aguentava a reunião do colegiado. Minha cadeira era “Psicanálise e linguística”, estudei com um grande semiótico chamado Greimas[10]. Vocês não o conhecem, mas ele é muito importante. E era alguém que fazia esquemas muito claros. Um dia, ele resolveu dizer como é que o discurso funciona e fez um quadradinho da função discursiva. Uma pessoa me pediu para explicar isso, então, estou respondendo a esse pedido. Ele fez um quadrado semiótico, pôs de um lado “discurso” e do outro “fala”:

Discurso e fala. Discurso é o falado e fala é ação sobre o discurso. Ele trabalhou então, quatro possibilidades discursivas. A tensão semiótica entre discurso e fala faz com que você busque a melhor operação discursiva. Quando você fala e não faz nenhum discurso, você cria um neologismo. A fala sem discurso é um neologismo porque a língua não reconhece a fala do discurso. Quando você fala só lugar-comum, um discurso sem uma fala, é arcaísmo.


Isso é muito interessante para uma análise. Existem falas neológicas que a pessoa fala, fala, fala e não diz coisa alguma. É tudo neologismo. A pessoa fica encantada que ela está falando muito. Existem arcaísmos… de novo o obsessivo. Ele está sempre ali onde tem que estar! Você busca onde está o sujeito e não tem sujeito nenhum, não tem subjetividade nenhuma, tem discurso e não tem fala. E quando não tem fala e nem tem discurso, você tem uma unidade vazia Aí é difícil, fazer análise com isso é complicado. No quadrado semiótico, isso se inscreve da seguinte maneira:

A tensão discursiva faz a pessoa sair de um lugar conhecido, que vira a fala que é não discurso, que recupera -se no discurso, e que vira a fala e assim por diante. Eu não vou continuar com o esquema. Só vou falar que isso é apenas a base de Greimas, ou seja, como se relacionam as tensões discursivas e o rendimento discursivo.

“SEM SAMBA NÃO DÁ”
Eu estou pulando coisas que me doem o coração não estar citando. Mas, como eu disse, são bisturis e são muitos os seus campos de atuação. Quando se fala, hoje em dia, por exemplo, de fake news. Eu fico pasmo de ver os debates da televisão, falando em fake news como se houvera news verdadeira. Falam da verdade como se fosse a prima-irmã. É bem mais complicado.Para começar, a verdade é um conjunto de termos associado a um conjunto de regras. Essa é definição de verdade em lógica, “conjunção de termos e regras”. Não há nenhum empirismo em você falar da “verdade”. Outra coisa muito interessante que entra nisso e que está muito na moda, é que através do politicamente correto, as pessoas estão pensando a possibilidade de uma sociedade sem preconceito.
Como se houvesse uma natureza e nós estivéssemos ferindo essa natureza. Agora, descobriram que o natural é “todes” e besteiras semelhantes. É bom avisar essas pessoas que não existe ser humano sem preconceito. Vão ler Kant ou vão ver as aulas que nós demos aqui esse semestre de filosofia. Se nós estamos de acordo que não existe essência humana, nós temos que estar de acordo que tudo é preconceito. Eu posso estabelecer pactos de que não posso usar palavra “x” porque “y”, mas não tem nada de mais verdadeiro nisso, é somente um outro preconceito. É um preconceito contra outro preconceito. O avanço da civilização faz com que o que é admissível hoje, amanhã seja preconceito, e assim pode ser pactuado. Sabemos que não temos coisa alguma que seja naturalmente conceituada, é tudo preconceito. Mas vamos, em uma determinada época e em determinado lugar, pactuar que um preconceito passa a ser normal. Por exemplo, uma sexualidade na Grécia, entre meninos e grandes filósofos era considerada como uma inclusão social legal, mas quando os ministros franceses vão fazer pedofilia no Marrocos e outros locais, não vá dizer que foram influenciados por Platão…
Penso que é muito empobrecedora uma discussão que não levanta esses aspectos. Proibir Monteiro Lobato e demais ações semelhantes são, do ponto de vista da psicanálise, uma excrescência. Eu quase diria assim: ou você fica com “todes” ou você fica com a psicanálise. Mas o “todes” na psicanálise não dá certo. Porque nós somos preconceituosos e quando derrubamos um preconceito, criamos outro.
“CAMINHANDO CONTRA O VENTO, SEM LENÇO SEM DOCUMENTO”
Sexto e quase último, um dos mais bonitos. Chegamos agora à pessoa adulta, o João e a Maria cresceram. Eles são adultos, chegam cheios de vontade para entrar no mundo. Estão felizes, eles olham esse “mundo, mundo, vasto mundo se eu me chamasse Raimundo, seria uma rima não seria uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo, mais vasto é meu coração.”[11] Pense, cada um de vocês, nos poemas que fizeram, nas medalhas que ganharam, nas estranhezas que sustentaram e escutem o que diz o autor desse poema que recitei:
Fui muito criticado e ridicularizado quando jovem. O meu poema “No meio do caminho”, composto de dez versos, repete de propósito sete vezes as palavras “tinha” e “pedra”, e seis vezes as palavras “meio” e “caminho”. Isto foi julgado escandaloso; hoje o poema está traduzido em 17 línguas e me diverti publicando um livro de 194 páginas contendo as descomposturas mais indignadas contra ele, e também os elogios mais entusiásticos. Achávam -me idiota ou palhaço; suportei os ataques porque ao mesmo tempo recebia o estímulo dos meus companheiros de geração e de pessoas mais velhas, nas quais depositava confiança, pela capacidade intelectual e pela honestidade de julgamento que as distinguiam[12].
Notem a importância dessas pessoas para Carlos Drummond de Andrade que, como João e Maria, chegam frente ao mundo e tentam se ligar a ele. Carlos olha para o “mundo, mundo, vasto mundo…” e percebe: “Se eu me chamasse Raimundo, em vez de Carlos seria uma rima, não seria uma solução. Mundo, mundo, vasto mundo. Mais vasto é o meu coração”: eu não sei qual é a ligação de uma coisa com a outra.

Você sabiam que eu fiz esse esquema há muito tempo? Fiz no carro indo para Campinas para gravar um Café Filosófico. Eu pensava em como poderia falar do complexo de Édipo. E, realmente, eu não sabia que ia ser tão repetido esse esqueminha. Eu imaginei um barco, com a vela “pai”, e três maneiras de articular como chegar até o mundo. A primeira maneira: você faz uma negociação com o barqueiro já que não vai poder carregar tudo. Coisas terão que ficar para trás, barco não leva todas as bagagens. Você vai ter que escolher o que quer levar. Como dizia Freud, você terá que fazer uma relação de compromisso e, ao fazer essa relação de compromisso, você chega até o mundo. Mas resulta disso que você é neurótico.

Então você diz: “eu não quero ser neurótico!” Então, há uma segunda maneira de chegar ao mundo: fazer aquilo que “neurótico que deu certo faz”. Você será perverso. É uma referência a Sigmund Freud, o perverso é o neurótico que deu certo. Por quê? Porque ele pega o barqueiro e afunda a cabeça dele na água, matando-o afogado e, com isso, pode ficar perfeitamente feliz e entrar no mundo alegre. O perverso não titubeia, não tem dúvida e não tem culpa. Pense em alguns dos políticos atuais e verão que eles têm uma preferência por esse método de acesso ao mundo.

E, por fim, o terceiro método: aquele no qual não foi possível encontrar o barqueiro. Caminho quer dizer lira, quem está fora do caminho delira. Este é o psicótico.

Costumo dizer que neurose, psicose e perversão são três mentiras. Isso é chocante porque os sintomas são vistos com piedade. Analista não é piedoso… é impiedoso. Daí ele ter “horror do seu ato”, conforme disse Jacques Lacan. Quando um paciente de escroto cortado, chega na entrevista comigo e, em uma sala com 40 pessoas, eu pergunto: “Você cortou com a tesoura de cima para baixo ou de baixo para cima?” Isso é visto como um ato impiedoso. Só que, dezessete minutos depois, essa pessoa que entrou delirando e caindo na sala, saiu falando “que besteira fui fazer de cortar o meu saco!?” Dezessete minutos! Não tem Haldol que faça isso. Mas tem a clínica psicanalítica que faz. Estruturas são mentiras no sentido nietzschiano. E por que que são mentiras? Porque a verdade é o vazio. Nós ficamos discutindo meio de acesso, e tudo mundo acha que é melhor ser neurótico que perverso, que ainda é melhor que ser psicótico… como se psicose fosse uma alteração da realidade diferente das outras! Leiam “A alteração da realidade na neurose e na psicose” de autor bem legal chamado Sigmund Freud. Quer seja neurose, ou perversão ou psicose, todas são formas de tamponamento do vazio. Não são recuperações do trolho. São mentiras frente à dificuldade de a pessoa suportar o trolho, olha só ele por aqui novamente:

São três formas de expulsão desse trolho que não se suporta. É claro que este é o esquema do Édipo, caso alguém não tenha percebido…
“A MAIS NOVA ESPADA E SEU CORTE”
Último esquema, o sétimo. Com ele encerrarei essa série de bisturis que, espero, sejam de serventia a todos vocês. Em razão da leveza deles, vocês poderão carregá-los como bagagem de mão, sem precisar despachar. Vamos ao esquema final: As pessoas que nos procuram… elas se sentem em estado de impotência. Sigmund Freud dizia da dificuldade última de tratarmos essas pessoas. Em 1937, ele estava de mudança para Londres, quando escreve os dois últimos artigos psicanalíticos da sua vida. “Análise terminável e interminável”, e “Construções em análise”. Eles estão na Standard Edition, no volume XXIII. Nas últimas páginas de “Análise terminável e interminável”, ele se pergunta sobre que uma pessoa trouxe de sua análise:
Em nenhum ponto do nosso trabalho analítico se sofre mais da sensação opressiva de que todos os nossos repetidos esforços foram em vão, e da suspeita de que estivémos ‘pregando ao vento’, do que quando estamos tentando persuadir uma mulher a abandonar seu desejo de um pênis, com um fundamento de que é irrealizável, ou quando estamos procurando convencer um homem de que uma atitude passiva para com homens nem sempre significa castração, e que ela é indispensável em muitos relacionamentos na vida[13].
Não vou entrar em discussão de politicamente correto aqui, em outro momento discutimos isso melhor. Só quero chamar a atenção de vocês para este aspecto: Freud ainda mantinha uma esperança de que o incompleto se resolveria:
O repúdio da feminilidade pode ser nada mais do que um fato biológico, uma parte do grande enigma do sexo. Seria difícil dizer se e quando conseguimos êxito em dominar esse fator num tratamento analítico. Só podemos consolar-nos com a certeza de que demos à pessoa analisada todo incentivo possível para reexaminar e alterar sua atitude para com ele.[14]
“A VIDA É AMIGA DA ARTE”
Ele ainda guardava esperança em notas de rodapé e diz, “Bom, talvez amanhã a ciência possa resolver isso”. A ciência não só não vai resolver, como já intensificou isso. Nós estamos na pós -modernidade, a presença do incompleto se aprofunda mediante a horizontalização do laço social. É essa horizontalização mesma que escancarou para todo o mundo a nossa incompletude, e que nós não nos entendemos e nem raciocinamos juntos, nós ressoamos juntos. Quando o menino diz para o outro, em uma balada de música eletrônica, o famoso “tá ligado?”, ele não é imbecil… ele está perguntando para o outro se, na mesma base que está servindo para ele expressar os seus sentimentos também surgem outros sentimentos do seu amigo, que não necessariamente são os mesmos, como era necessário que fossem em épocas anteriores. Antes, ao cantarmos juntos com Tom Jobim, com Frank Sinatra, com Sammy Davis JR., etc., era necessária uma comum unificação, uma comunicação. Hoje em dia, nós temos que suportar essa passagem do mundo do conhecimento, do raisonner, para o mundo do ressoar, résonner.
É homófono em francês, se escreve diferente mas tem a mesma pronúncia. Lacan tocou nesses pontos durante o seu ensino? Sim, tocou. Desenvolveu? Não. Ele morreu. Em 1970, ele percebeu que precisava dar uma volta sobre a determinação do significante porque a essência humana é do Real e não do simbólico. Repito: A essência humana é do Real e não do simbólico. Freud pensava que iríamos da impotência à potência. E como é que conseguiríamos essa potência? Através da interpretação, através do “Freud explica”.

Esta expressão “Freud explica” fomos nós, brasileiros, que inventamos. Não existe o “Freud explica” em espanhol ou em francês. Nós a inventamos para falar de como era essa análise que, até pouco tempo atrás, ia da impotência para a potência. A análise que fazemos hoje é uma análise que reconhece que jamais teremos essa potência. Então, diferentemente de Freud, nós vamos da impotência para o impossível. É o impossível que eu estou perseguindo desde início dessa conferência. Saímos do “Freud explica” para o “Freud implica”.

Frente ao impossível de tudo dizer, frente ao impossível da verdade que não pode ser dita toda, somos levados ao que Nietzsche chamou de amor fati. No amor fati é necessário exercer a criatividade sobre o vazio, criar um sentido para mim e para aqueles que estão em volta de mim, pois preciso deles para me darem um retorno de mim mesmo. Eu me conheço por vocês. O amor fati afasta o passado por um lado, o futuro por outro e, assim, faz com que possamos viver no eterno. Não é poesia. É Friedrich Nietzsche, Jacques Lacan e um pouquinho desse escravo que vos fala desses sete esquemas. Obrigado.
[1] LACAN, Jacques. In Opção Lacaniana. Revista Brasileira Internacional de Psicanálise n.32, p.8-14, 2001. São Paulo: Eolia.
[2] A questão da “bagagem do analista” não é recente na reflexão de Forbes, já em outras duas ocasiões – pelo menos- ele desenvolveu trabalhos sobre aspectos importantes dessa questão. Ver “A bagagem do analista 1”: http://jorgeforbes.com.br/bagagem-analista-1/ e “A bagagem do analista 2”: http://jorgeforbes.com.br/a-bagagem-do-analista-2/
[3] Trata-se de um exemplo usado na conferência anterior, o acréscimo dos termos e alteração do sentido ocorre da seguinte forma:
“A casa”
“A casa verde”
“A casa verde do Mário”
“A casa verde do Mário Vargas Llosa”
[4] O exemplo em questão:
“Ai querido assim não podemos mais seguir vivendo.”
“Ai querido assim não podemos mais seguir.”
“Ai querido assim não podemos mais.”
“Ai querido assim não podemos.”
“Ai querido assim não.”
“Ai querido assim.”
“Ai querido.”
“Ai.”
[5] O exemplo a que Forbes se refere é o seguinte: “Amo Raquel não a Estela de lindo rosto não canta Maria as cordas da minha paixão”. A depender de como se pontua a carta, o sentido se altera:
Possibilidade 1: “Amo Raquel, não a Estela de lindo rosto. Não canta Maria as cordas da minha paixão.”
Possibilidade 2: “Amo Raquel não, à Estela de lindo de rosto. Não canta Maria as cordas da minha paixão.”
Possibilidade 3: “Amo Raquel não, a Estela de lindo rosto não, canta Maria as cordas da minha paixão.”
[6] Referência à formulação de Jean-Paul Sartre em O existencialismo é um humanismo. cf. FORBES, Jorge. “Identidades aos pedaços” (2023). http://jorgeforbes.com.br/identidades-aos-pedacos/
[7] NAGEL, Ernest; NEWMAN, James. A prova de Gödel. São Paulo: Perspectiva, 2001. P.88
[8] Idem, ibidem.
[9] Referência ao texto “Televisão”, de Jacques Lacan. Publicado em Outros escritos, editora Zahar. 2003.
[10] Trata-se de Algirdas Julius Greimas (1917 – 1992), linguista lituano radicado em Paris.
[11] Referência ao poeta Carlos Drummond de Andrade em seu Poema de sete faces.
[12] ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. Rio de Janeiro: Record, 1996. 32ª ed.
[13] FREUD, S. “Análise terminável e interminável”, in Obras completas, vol. XXIII. Standard Edition. Rio de Janeiro: Imago. P. 286
[14] Idem, p. 287.