Por Gisele Vitória
Um relato sobre o livro “A imprensa entre Antígona e Maquiavel”, organizado pelo filósofo Renato Janine Ribeiro
O professor Renato Janine Ribeiro escreve que não é fácil ser ético no jornalismo. A olho nu ou em ouvidos surdos, soa quase como uma acusação. Mas está longe disso. A ética é um tema prioritário na profissão de jornalista, como também um desafio diário e espinhoso. O fio condutor neste labirinto passa pela credibilidade, pela independência e pelos limites reais que cercam estes valores ideais. Passa pela pressa nos fechamentos, pelos critérios na edição, pelo cuidado com as entrevistas, as apurações e as checagens. Passa pela tensão vivida, pela excelência perseguida, pelos acertos e erros possíveis e impossíveis. A ética no jornalismo se depara ainda com as linhas que desenham as relações de poder, dentro das redações e fora delas.
Esta é a razão de “Antígona”, a peça de Sófocles escrita no século 5 a.C., e de Maquiavel, nos capítulos de “O Príncipe”, vestirem tão bem o figurino da imprensa. Por isso, ambos foram os pilares para o curso de ética que o filósofo e ex-ministro da Educação preparou para os alunos da pós-graduação em Jornalismo e Direção Editorial, na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), entre 2011 e 2013. Onze dos 70 trabalhos de conclusão de curso foram selecionados e o resultado é o livro “A imprensa entre Antígona e Maquiavel – A ética jornalística na vida real das redações” (Ed. Referência/Instituto Cultural ESPM, 133 págs.), organizado por Janine.
Duas visões éticas
Juntar Antígona e Maquiavel no mesmo barco ajuda a navegar sobre as águas revoltas do poder. É como procurar entendê-lo em suas profundezas, e é também saber quanto custa o preço de enfrentar suas ondas imprevisíveis. Com Antígona, em suas aulas, Janine expôs que a conduta mais ética consiste, muitas vezes, em enfrentar o poder e a lei vigente. O rei proibira que um dos irmãos da heroína fosse enterrado, contrariando um costume sagrado do povo de Tebas. Filha de Édipo, Antígona foi fiel aos seus princípios, mas pagou com a morte por desafiar Creonte, que por fim também sucumbiu.
Na outra ponta filosófica, Janine quis mostrar o oposto em “O Príncipe”. Maquiavel joga o jogo em curso e descreve o poder como ele é. Com nitidez e sem fantasias. Estudar o pensador fiorentino é entender como funcionam as regras de quem governa. “O moralismo dominante em nossos dias barra a compreensão da política. Justamente porque impõe critérios que não funcionam nela”, aponta Janine, no prefácio do livro. “Em vez de vermos as relações humanas do ponto de vista da ética dos valores, consideremos o espaço propriamente político. ” Por essa ótica, o filósofo descreve: “Diferentemente de elegermos como herói alguém que dá a própria vida por um princípio ético, teremos um governante que abre mão dos escrúpulos e privilegia a ambição de conquistar ou manter o poder”.
A imprensa no divã da filosofia
Os textos que compõe a coletânea transitam por vertentes diversas. Na “Ordem do Patrão”, de Íris Russo, por exemplo, os dilemas éticos aparecem na habilidade necessária a um jornalista que precisa cumprir uma tarefa controversa, determinada por um dirigente, mas ao mesmo tempo deve alertar os superiores de que determinada ordem colocará em risco a credibilidade do título. Há que lembrar: credibilidade é um edifício que pode levar anos para ser erguido, mas existe dinamite disponível para implodi-lo em minutos. Na tragédia de Antígona, Hémon, filho Creonte, até tentou demover o pai da loucura de enterrar Antígona viva e o alertou que avançar naquela direção seria também o começo de seu fim.
Há outros exemplos. No artigo “Uma praia do Guarujá”, Maria Rita Alonso descreve em detalhes sua primeira grande prova ética, que coincidiu com a primeira oportunidade real de contratação por uma grande publicação. “A cozinha de Antígona” é a narrativa do crítico gastronômico Luiz Américo Camargo sobre as delícias e, às vezes, o gosto amargo na rotina do jornalista especializado. No texto “O Enem e a ética de resultados”, Fabio Mazzitelli aplicou Antígona e Maquiavel para entender a cobertura da imprensa num episódio de fraude do concurso, descoberto dias antes da prova.
A política e os afetos
Em um dos 11 capítulos, devo dizer que também participo do livro. Meu texto “A Rainha, o Amor e o Medo além dos tempos de Antígona e Maquiavel” trata da crise da monarquia inglesa logo após a morte de Lady Di. Utilizo como fonte o filme “A Rainha” e os jornais britânicos de 1997, que refletiram e por certo potencializaram a revolta dos ingleses contra a indiferença de Elizabeth II. É um convite a olhar um momento político sob o ângulo dos afetos. E isso inclui a imprensa. Por ser co-autora, saio à francesa neste parágrafo e, lacanianamente, ‘del-ego’ a parte que me cabe no livro ao olhar da jornalista e editora de cultura Rosane Pavam:
“É um estudo sobre a razão sensível, essa operação que torna nossos tempos estranhamente aliados da afetividade, cobrada também do poder. A fraqueza institucional a nos fazer emotivos… O artigo navega nada menos que pelas concepções de amor. Creonte, contra Antígona, seu filho e seus súditos, deixou de inspirá-lo e perdeu-se na razão. A rainha Elizabeth teve mais sorte, tino ou seu Maquiavel Tony Blair para assegurar que continuasse a ser amada, portanto mantida. Amor ou temor? Em certos momentos, o artigo é ensaio histórico das trajetórias em paralelo de Creonte e da rainha, costuradas pelos preceitos filosóficos de Maquiavel. Em outros, para harmonizar os tempos históricos, nada menos que ficção. ”
Entre Antígona e Maquiavel, hoje
“A Imprensa entre Antígona e Maquiavel” é uma ampla coletânea sobre os caminhos da ética, em múltiplos olhares e situações. Os trabalhos avaliados por Janine foram escritos entre 2011 e 2013, mas, inevitavelmente, o livro convida o leitor a refletir sobre os tempos políticos atuais, ainda que não aborde diretamente o momento brasileiro em 2016.
No posfácio, Janine relata Maquiavel versus Antígona nas redações, mas também busca na história da heroína de Sófocles, difusamente, um pouco deste olhar voltado para o presente. “Antígona expressa a rebeldia. Mas é uma rebelde que pagou um preço alto”, escreve ele. “Hoje, a questão é termos rebeldes sem custo. Gente que pensa que infringir a lei se faz por capricho e não se paga nada por isso. Corremos o risco de viver um Maquiavel e Antígona baratos, sem valor. ” Há que se pensar.
Gisele Vitória é jornalista, diretora de núcleo da Editora Três e colunista da revista IstoÉ.
Deixe um comentário
Você precisa fazer o login para publicar um comentário.