“Viver é muito perigoso” 10/09/2015

Por Patricia Furlan

Aos 10 anos, Francisco está descobrindo a vida, o prazer que sente no corpo, a ereção e diante da dificuldade de lidar com isso e às vezes até gostaria de passar corretivo

Viver é muito perigoso… Porque aprender a viver é que é o viver mesmo… Travessia perigosa, mas é a da vida…O mais difí­cil não é um ser bom e proceder honesto, dificultoso mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até o rabo da palavra.
Guimarães Rosa

Francisco é um garoto de 10 anos que vem apresentando sintomas de medo. Antes de me procurarem, os pais o levaram para uma consulta com um psiquiatra que o medicou com Ritalina. Desde então tem apresentado fenômenos ansiosos e sua angústia aumentou. Seus pais se separaram, mas conta que são amigos, “eles não dão mais beijos na boca, mas antes também não davam…”

Na escola, Francisco tem medo de fazer alguma coisa errada e levar suspensão. Na internet, por não saber navegar direito, surge o medo de efetuar uma compra que prejudique seus pais. Na rua, ao tirar uma caquinha do nariz ou encostar-se ao muro e achar que estragou o reboco, tem medo de ser preso. Conta que o medo da prisão está ligado a ficar longe da mãe. Tem se orientado pela lógica, transgressão-punição, numa mostra de conflito entre o desejo e a lei.

Francisco é um garoto diferente, tem 10 anos e apresenta um comportamento rígido, adulto demais, demonstra uma carência de alegria e brincadeira. É uma criança doce e tranquila, mas presa à resposta neurótica “pronta pra vestir” do medo.  Em sua primeira sessão, aguardava na sala de espera com a cabeça baixa, as pernas juntas e as mãos sobre os joelhos. A forma que me contava sobre sua vida, era bem detalhada, preocupado em não mentir e cair em contradição temia ser punido por dizer algo errado. Parecia adotar a lógica padrão da causa – consequência, sem incluir o acaso e a surpresa: “se”, logo, “então”. Desta forma acreditava poder ter o controle das coisas que dizia e fazia. Ao perceber que isso era impossível, adotava o “tanto faz”, palavra recorrente em sua fala. Sofria do “tanto faz” que o colocava à deriva do querer do outro.

Francisco chamava seus medos de “besteirinha”, termo dado pelo avô paterno e conta que quando aparece o medo, primeiro ele analisa bem, e se ele achar que é besteira, ele pára de pensar; agora se o medo fica forte, ele fala com sua mãe, sua irmã, ou com o avô, ou até com seu pai, que lhe ajudam a julgar a respeito. Um pensamento que o devora é perder as pessoas que ele ama e ficar sem interlocutores que lhe digam se o medo que ele sente é bobo ou não. Ao que intervi: “Todo medo é bobo, mas você sofre com ele. E isso é o que importa ser trabalhado aqui.”

Ele diz que esses medos começaram há um ano, quando estava na sala de aula mexendo no corretivo. Mesmo sem ter feito nada de errado levou uma bronca do professor, foi mandado à diretoria e levou uma suspensão. No decorrer das sessões, me revelou o que de fato havia acontecido. Estava mexendo no corretivo e seu amigo queria usá-lo. Como ele não queria emprestar, guardou o corretivo na cueca. E em seguida, seu amigo o acusou que ele havia feito coisa errada e tinha passado a mão suja nele. Francisco disse que havia lavado as mãos e que elas não estavam sujas. Ele não chegou a falar que guardou o corretivo na cueca, mas ele apontava, e usava o termo “lá”, guardei o corretivo “lá”. Desde esse ocorrido sempre tem alguma queixa quanto aos professores, como se eles quisessem prejudicá-lo, e levá-lo à suspensão. Seu temor é uma mostra de que não há nada que mais nos apavore do que a sexualidade e isso independe da idade. Aos 10 anos, Francisco está descobrindo a vida, o prazer que sente no corpo, a ereção e diante da dificuldade de lidar com isso e às vezes até gostaria de passar corretivo.

Francisco fica a maior parte do tempo com seu avô, uma pessoa pessimista que assiste a todos os noticiários “desgracentos” e fala ao menino os perigos do mundo. Diz que embora seu avô seja negativo foi quem o ajudou lhe fazendo companhia. Na tentativa de tirar a consistência dessas interpretações disse: “Seu avô poderia trabalhar no programa do Ratinho ou do Datena.”

Francisco quer ser jogador de futebol, mas interrompeu as aulas na Escolinha de Craques. Contou que começou uma dor no joelho e o médico falou: “se você parar de jogar bola, então você vai ficar bom”. Ele adotou a ortopedia: parou de jogar bola, lutar Muay Thai e andar de bicicleta. Seus medos aumentaram ainda mais. Fora da escola, tem poucos amigos. Gosta muito das aulas de teatro, pois no teatro pode ser muitos personagens, tendo como preferência o papel de mau. Contou que queria pegar o papel de vilão na peça que está ensaiando. Perguntei o que ele iria fazer para que isso acontecesse. Respondeu que iria se empenhar. Acrescentei que além do esforço ele poderia dizer dessa vontade ao professor. Ao que ele respondeu: “Ah, mas se eu não pegar o papel, tanto faz, não tem problema.” Numa tentativa de apontar a passividade com que ele se colocava frente ao outro e ao seu querer, falei – “só não deixa seu professor saber disso tá!?…”

Qual a direção a ser adotada no tratamento com a criança? Nesse caso: deslocá-lo da posição de achar-se um peso para sua mãe e seu pai, sair da identificação e alienação ao avô paterno e sua cartilha dos perigos da vida, incluir as mudanças e estranhezas do seu corpo púbere e os desejos dos beijos futuros que quer provar, arriscar-se a dizer o que quer ao outro sem temer as palavras, é o que a análise pode ajudá-lo a empreender na vida.

Patricia Furlan é psicóloga com formação no IPLA-SP e trabalha no Programa de Medicina Preventiva da Unimed Piracicaba.