Por Antonio Carlos Rossi
Comida e sexo têm enorme importância na psicologia humana, mas o caráter dessa importância foi demasiadamente mal interpretado
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Prá aliviar a dor…
(…)
Desejo, necessidade, vontade
Necessidade, desejo, eh!
Titãs
Na década de 80, quando os Titãs perguntavam “você tem fome de quê?”, cobravam de um Brasil recém-democratizado ações imediatas para a saúde e a qualidade de vida da população. Os acordes titânicos ainda reverberam, três décadas depois, igualmente desafiadores.
No momento, entidades que representam os aposentados querem que mais remédios, entre eles o Viagra, indicado para disfunção erétil, sejam incluídos na lista de medicamentos do programa Farmácia Popular, do Governo Federal.
Comida e sexo têm enorme importância na psicologia humana. Mas o caráter dessa importância foi demasiadamente mal interpretado. Freud considerava que a base de toda energia psíquica era sexual – a fonte secreta do desenvolvimento das civilizações.
Tanto a comida como sexo têm significado óbvio para a sobrevivência das espécies, incluindo a espécie humana. Isso encorajou a defesa de uma forma um tanto diferente de reducionismos, que procuram explicar a variedade de práticas nutricionais e sexuais sob a bandeira da seleção natural de Darwin.
Chamo a atenção para o tema da felicidade ligado ao sexo a partir de duas perspectivas: a concepção da felicidade calcada na moral tradicional e aquela baseada na possibilidade de suportar o encontro.
A filosofia moral em questão, na discussão da inserção ou não do Viagra aos medicamentos de primeira ordem, está lambuzada da concepção utilitarista proposta pelo pensador e filósofo do século XVIII, Jeremy Bentham, ou seja, diminuir o sofrimento e evitar a dor. Dessa forma, “A doutrina que aceita como fundamento da moral, a utilidade, ou o princípio da maior felicidade, defende que as ações são corretas na medida em que tendem a promover a felicidade, e incorretas na medida em que tendem a gerar o contrário da felicidade”.
Na contramão desta concepção, Felicidade para a psicanálise lacaniana ganha um status que difere da felicidade do bom senso, a do merecimento, como pontua Jorge Forbes, ao afirmar que felicidade é fruto do encontro, do acaso e da surpresa, enfatizando que a felicidade da psicanálise não decorre do esforço.
Nesta perspectiva, a segunda clínica de Lacan, responde que a felicidade, assim como o gozo, escapa à nomeação. Gozar e sentir-se feliz são experiências ligadas a uma satisfação singular e íntima, que não encontra correlato no senso comum ou em modelos que podem ser replicados por ideais de conduta.
O programa de inclusão do Viagra na “cesta básica”, deixa uma falsa expectativa – a de resolver o desejo através da objetividade cientifica de dar “desejo comprimido” para o corpo.
Cabe lembrar, nos escritos originais de Freud, duas diferentes designações para corpo: Körper e Leib; Körper designaria um estatuto material, aparente; ao passo que Leib significaria o corpo erógeno, simbólico, da fantasia. Levando em conta tal diferenciação, o ponto de largada no pensamento freudiano, no caso das histéricas, foi exatamente do lugar onde falhou o saber do medicalismo da época.
Compartilho a idéia de Jorge Forbes de que “a felicidade só é possível quando uma pessoa suporta aquilo que a destaca da normalidade”, contrariando, assim, as soluções totalitárias do prazer em comprimido para a maioria da população, como politicas públicas da felicidade em grande escala ao invés de uma chance ao desejo e à invenção do novo.
Antonio Carlos Rossi é psicólogo, mestre e doutorando em ciências da saúde relacionado aos transplantes de coração e rim pela Universidade Federal de São Paulo UNIFESP/EPM