Vaias que nos convocam 11/08/2016

Por Dagmar Silva Pinto de Castro

Os atletas não deveriam ser vistos como máquinas de produção de medalhas. Subir ao podium é um momento de glória, algo muito diferente da efemeridade da fama

Enfim estamos vivendo as emoções das Olimpíadas! Na solenidade de abertura, especialmente no desfile das delegações, vimos a multidiversidade de povos, raças e culturas que coabitam o nosso planeta. Profusão de linguagens por meio das luzes, cores e idiomas. Coreografia de gestos vista por bilhões de pessoas ao redor do mundo. Em meio à alegria e celebração da vida, um fato destoou: a entrada da delegação russa sob o impacto de fortes vaias. Um som diferente que se impôs por alguns minutos e mostrou ao planeta que as disputas esportivas – em qualquer modalidade – precisam passar pelo crivo da ética. Um repúdio impetuoso contra o doping, prática que se tornou comum entre atletas russos e, pior ainda, sob o manto protetor do Estado.

Essa questão não é nova. Os registros históricos mostram que atletas da Grécia antiga faziam uso de substâncias que lhes permitiam melhor performance, entre elas chás ou o consumo de determinadas partes de alguns animais. Na história mais recente, o ex-ciclista profissional americano, Lance Armstrong, celebrado e reconhecido mundialmente por ter vencido o Tour de France por sete vezes consecutivas, foi banido do ciclismo por doping e teve todas as suas conquistas anuladas.

O doping ultrapassa a fronteira da prática esportiva profissional. Está presente na sociedade por meio do uso de estimulantes, anabolizantes, hormônios e analgésicos potentes para aliviar a dor. A indústria da alta performance possui capilaridade não só entre atletas – que se veem desnudados com os exames que constatam doping – mas entre pessoas comuns, que ultrapassaram a linha divisória da prática de esportes com saúde em busca da superação do que é possível ao humano.

O uso de substâncias químicas para acelerar o metabolismo desvia o sentido originário do que se espera nos jogos Olímpicos. Espaço onde as conquistas devem ser fruto de treino, domínio de técnicas, controle emocional, investimento, perseverança e dedicação. Os atletas não deveriam ser vistos como máquinas de produção de medalhas. Subir ao podium é um momento de glória, algo muito diferente da efemeridade da fama. O doping, ao contrário, busca garantir no presente imediato os ganhos futuros. É o exercício de um (pseudo) controle sobre a dor do viver. Isso mostra os desdobramentos de uma sociedade que promove estilos de vida e ideais focados no prazer a qualquer preço. Uma sociedade em que o humano afasta-se cada vez mais do que o ancora como ser de desejo. É a tentativa de dominar o futuro pelo controle e não pela invenção.

As vaias recebidas pela delegação da Rússia falam não somente deles, mas de quem somos, de como estamos organizando nossas vidas no contemporâneo. Estamos diante de um mundo regido pelo domínio do espetáculo.  Somos a própria mercadoria a ser consumida. Em uma sociedade de seres desbussolados, o uso de estimulantes ‘potencializadores’ do corpo nos afasta da condição humana vista em sua finitude. É o sintoma de uma sociedade em que o sujeito do desejo se curva em obediência aos desígnios do Outro. Sabemos que os atletas necessitam de forças quase sobre-humanas para suportar as pressões em seu cotidiano. Por isso, não se submeter ao uso de dopagem já é a primeira grande conquista. Assim, tornam-se sujeitos de seus desejos e esvaziam essa tirania.

Há entre os atletas russos aqueles que primam pela escolha do seu desejo. Rompem o controle do futuro forjado no processo de “fabricação” de atletas, cujo jogo não é um risco e a aposta. Para Hélio Pellegrino, “quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria consiste em aceitarmos que perder também faz parte do jogo. Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extremamente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e terei sempre as mãos vazias”. O ressoar das vaias nos convoca a responder sobre o nosso desejo. Cabe a nós escolher entre a finitude – os limites do próprio corpo – e a sedução do doping, que transforma os humanos em pseudodeuses.  

Dagmar Silva Pinto de Castro é docente do doutorado do Programa de Pós-graduação em Administração da Unimep.

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