UN: uma sílaba e suas questões analíticas 13/09/2023

Dorothee Rüdiger

O ponto de partida de nossa pesquisa é uma questão submetida à resposta de Jacques Lacan pelo psicanalista Marcel Ritter na abertura da jornada psicanalítica de Estrasburgo que ocorreu em 1975. Ritter quer saber, se das Unerkannte (o desconhecido) relacionado por Sigmund Freud ao umbigo do sonho, corresponderia ao chamado “real pulsional”.  Quando Ritter formula sua questão põe essa palavra no contexto de outras utilizadas por Sigmund Freud na construção da teoria da psicanalítica: as palavras que têm como prefixo “un”: das Unbewusste e das Unheimliche (o inconsciente e o sinistro).

A questão é legítima. Afinal, o próprio Sigmund Freud em seu ensaio Das Unheimliche dedica uma parte à questão gramatical do termo.  Se consultarmos um dicionário alemão sobre o prefixo “un” apreendemos que o prefixo é usado, por um lado, em adjetivos e substantivos para denegar um sentido: bewusst e unbewusst  é nosso exemplo. Por outro lado, o prefixo “un” também é utilizado na composição de palavras para designar, de uma maneira crítica, um extremo de tamanho ou medida. Exemplos: eine Menge (muito) e eine Unmenge (um montão); ou ainda Kosten (custos) e Unkosten (custos que extrapolam).  

Mas, será que podemos dizer que a gramática nos dá uma pista clara que possa estabelecer a regra que o prefixo “un” transforma uma palavra em seu contrário (com as exceções citadas que designam desmedidas)?  Sigmund Freud, em seu ensaio “Das Unheimliche” ,  dirá que não:   “Não há dúvida, que a palavra pertence ao que dá susto, que provoca medo e terror, mas também é certo que esta palavra nem sempre é usada num sentido que podemos estabelecer com exatidão …”. (FREUD, S. Das Unheimliche, Teil I)

Para dizer o que é unheimlich, diz Freud, podemos nos ater à gramática, mas não só.  A experiência mostra que há certos afetos ligados a essa palavra. A palavra vai além da negação. Só um dos sentidos da palavra unheimlich é a negação:  o não pertencente ao lar, ao Heim. As palavras são polissêmicas. A palavra heimlich é ambivalente.

 O uso da língua não é um exercício de lógica matemática! Pois, no inconsciente, não há contradições.  Há, sim, a presença de algo que não chega à consciência, algo recalcado na origem, algo urverdrängt.  Esse algo está presente, mas não pode ser dito.  Sigmund Freud vai encontrar essa presença de algo impossível de ser dito, por exemplo, no conto de E. T. A Hoffmann Der Sandmann (O homem da areia). Freud vai demonstrar que das Unheimliche está ligado à castração, ao impossível de ser realizado, ao amor e ódio pelo pai protetor e ameaçador que são irreconciliáveis e à mulher e ao desencontro amoroso, o indizível. Algo que nos é familiar, conhecido desde sempre, torna-se sinistro. Por exemplo, o útero para o qual é impossível retornar: “Das Unheimliche é nesse caso também o que vem do lar, o antes conhecido. Mas o prefixo un nessa  palavra é a marca do recalque.” (FREUD, S. Das Unheimliche, Teil II).

É, portanto, a Sigmund Freud que Jacques Lacan se refere, quando responde a Ritter traduzindo a palavra unerkannt como impossível de ser reconhecido. O prefixo “un”   denota para Lacan a impossibilidade de ser dito, o limite.   O prefixo “un” pertence, portanto, ao Real – das Unmögliche : não pode ser dito nem escrito “não para de não se inscrever”, é uma negação redobrada, permanece unerkannt  (não reconhecido) e urverdrängt (reprimido para sempre).  “Un” nos leva ao limite do simbólico, à impossibilidade de tudo dizer, à beira do buraco de sentido, enquanto “ur” nos leva à “raiz da linguagem”. Temos aqui um buraco, um limite da análise, porque esta se funda na palavra, no dizível. Enquanto humanos somos parlêtres, seres da fala. Mas, algo no sonho escapa da Darstellbarkeit, outro termo usado por Lacan em alemão.  A Darstellbarkeit  é a capacidade de figurar o inconsciente no sonho. O inconsciente nada mais é, portanto, do que um dos invólucros do Real.  

Se Freud designa aquilo que escapa à capacidade de se figurar como umbigo do sonho, ele remete, diz Lacan, ao cordão umbilical e à placenta que é para sempre perdida, quando o ser humano nasce e é mergulhado, não só na água do banho, como também na linguagem. No lugar resta uma cicatriz que alude ao impossível de ser reestabelecido, alude ao corte, expresso em alemão pelo prefixo “un”. 

Esse fato permite a Lacan ir mais longe em sua interpretação da palavra unerkannt usada por Sigmund Freud: se há na existência humana algo impossível de ser reconhecido e ser dito, o ser humano não é obra prima da criação, não é perfeito, não tem consciência plena. Somos impossibilitados de “conhecer o que diz respeito ao sexo”. Não dá para captar pela linguagem a relação entre os sexos, como também não dá para captar a morte.

Respondendo à questão de Marcel Ritter, Lacan ensina, que o Real nos marca no amor e na morte.  Em torno do Real giram, como descobriu Sigmund Freud, as pulsões de vida e de morte, Eros e Tânatos.