Uma São Paulo ausente

Uma São Paulo Ausente 30/04/2020

Letícia Genesini

No momento em que escrevo, completo 40 dias em casa. A dissonância do termo com o tamanho das incertezas mostra ainda mais que essa palavra apenas empresta um pouco de sentido ao que vivemos. Além das inconfessáveis saudades de nossas pessoas e da nossa rotina, há uma saudade terceira. Menos doída, mas mais insólita: a saudade de São Paulo.

São Paulo é onde estou. É, para todos os efeitos, para onde apontam os meus aplicativos de geolocalização e o CEP que coloco em pedidos. Estou aqui, mas a cidade está um pouco ausente.

Acontece que São Paulo não é o que se vê da janela, como o Rio que se faz presente no mar, na Baía, nos arcos. Ela não é uma paisagem que se pode contemplar. Aqui, a natureza serviu apenas de tela à cidade construída. A ladeira da Ministro que desafia os motoristas e o fôlego, a colina da Avenida Paulista, os vales das esquinas do centro. Antes, disse Gilles Lapouge, em seu “Dicionário dos Apaixonados pelo Brasil”: “O Rio simplesmente se pôs em cenário, ao passo que São Paulo foi obrigada a nascer. Sua existência precedeu sua essência”.

Até mesmo sua arquitetura, nesse isolamento, são apenas linhas, como croquis. O vão do MASP só ganha sentido quando alguém caminha embaixo, as curvas do Copan precisam da vida que circula entre o comércio e os apartamentos, o palco de esculturas do MUBE pede que alguém o atravesse. Precisa Paulo Mendes da Rocha: “Arquitetura somos nós. O objeto da arquitetura é amparar a imprevisibilidade da vida e não determinar como as coisas são”.

São Paulo é a cidade inventada. Não tendo a orla e o calçadão para se fixar na terra, sua topografia é feita de espaços imaginários. Desafia até a História. O Ipiranga que não possui rio, tampouco margens; o mirante escondido em evidência; o elevado que reescreve os traumas.

Quem olha para São Paulo e vê com desdém apenas o trabalho e a pressa, não entende a urgência, de quem, aquém de qualquer essência, é construída a todo momento. É fria, dizem, mas como haver uma cidade mais humana, do que essa que precisa do outro para saber que, sim, existe?

Se Chico Buarque consegue cantar os Dois Irmãos, o morro lá estaria mesmo sem seu poeta. Quando aqui, foi preciso que Caetano cantasse a esquina da Avenida Ipiranga com a São João para ela ganhar vida. Sem o homem, nada seria.

Essa cidade do estranho encontro, aguarda nosso reencontro. Enquanto São Paulo, bem em frente da janela, está ao longe, nós paulistanos damos a ela um pouco mais de concreto, inventando formas frustradas de matar as saudades — como escrever essas palavras.