Por Maria da Glória Vianna
Lá dentro não se trata nem de recordar nem de repetir, mas, sim, de produzir algo novo
Há épocas em que a cidade foge ao seu ritmo normal, parece, inclusive, ter outro odor. Da janela, é possível ver que lá fora já não há tantos carros nas ruas. Aqui dentro, o ritmo do entra e sai também diminuiu. De todo modo, quem veio parece querer lidar com algo de si que está à flor da pele, que exala pelo corpo, como um cheiro.
Tão logo entrou, a moça comentou que, no restaurante ao lado do edifício onde fica o consultório do Cara lá de Dentro, estava se fazendo fritura. De fato, o cheiro estava subindo. Com o aroma, todos foram transportados para outras cenas. As recordações de almoços e jantares de família imperaram.
A fragrância que, hoje, por acaso, foi de comida, às vezes é de desespero, de pressa, de pessoa que não sabe o que fazer com o seu próprio cheiro. Não há desculpa, nem disfarce para o que, de nós, transpira com o suor. Pareceu ser o caso do rapaz que entrou marchando, cheio de si e saiu transtornado. Diferentemente do seu habitual, despediu-se beijando até quem ele não conhecia.
O cheiro de comida foi substituído pelo perfume francês utilizado por um velho frequentador, um cirurgião plástico. Brindou a todos ali presentes com um belo e emocionado relato de uma viagem que acabara de fazer à África. Esse senhor contou-nos como, diante de pacientes com deformidades físicas, valeu-se, para além dos bisturis cirúrgicos, dos bisturis da psicanálise para ouvir aqueles que procuravam por ele.
Ouvir histórias e relatos como o do cirurgião plástico não nos ensina um modo de resolver os problemas, mas mostra a singularidade dele ao responder aos desafios que lhe foram apresentados. Quem escuta as histórias, não aprende a reproduzi-las, mas se sente convocado a ser o próximo a contar a sua. Como, talvez, cada qual pensasse a esse respeito, cresceu o silêncio.
Do lado de fora, o tempo estava meio cinza e nublado. Uma senhora comentou: “- Se pelo menos chovesse”. Parecia estar dizendo que, se pelo menos chovesse, aconteceria algo diferente, pelo menos do lado de fora. Sabia que, lá dentro, cada um precisa lidar com o marasmo de suas repetições.
Aqui entra a diferença entre estar na Sala da Espera e na presença do Homem de Dentro. Do lado de fora, o cheiro emociona ou incomoda, mas não transforma ninguém. Lá dentro, tomará a consistência de uma palavra, ainda que temporária. Os acidentes de corpo terão de ser, de alguma forma, pinçados e, então, nomeados. Lá dentro não se trata nem de recordar nem de repetir, mas, sim, de produzir algo novo.
Por falar nisso, um feliz e cheiroso dia!
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.