Por Maria da Glória Vianna
Observar a Sala é perceber a teoria da Clínica do Real, a segunda clínica de Jacques Lacan
Como um analista chama as pessoas que estão em sua sala de espera?
Que critério ele usa para decidir quem entra primeiro e quem entra depois? Seria por ordem de chegada?
Como explicar as transformações ocorridas no semblante de quem sai de uma sessão?
Como qualificar as relações duradouras que se estabelecem entre as pessoas habitués da sala de espera de um analista?
O modo como um analista lê sua sala de espera ensina a respeito da Clínica do Real. Por esse motivo, dediquei-me, em pequenas crônicas, que serão publicadas, mensalmente, em nossa Newsletter, a descrever uma sala que não é uma Sala qualquer. É totalmente “peculiar”. Inspirei-me na peça de teatro “Um bonde chamado desejo”, de Tennessee Williams.
Para ilustrar o que estou chamando de “peculiaridade”, recorro a uma lembrança de quando era moça. Na época, quando uma moça tinha algo que escapava a qualquer adjetivação, certo charme, por exemplo, dizia-se que tinha um it – isso mesmo um it. Essa nomeação tentava dar conta de alguma coisa que não se conseguia explicar, mas que se sentia – que exalava no ar, que transpirava! Foi em torno desse it, que pensei em como poderia, minimamente, colocar em palavras a singularidade desse lugar que, em muito, excede a um ponto geográfico.
À frente da Sala está aquele que nunca saiu da proa, menos como uma figura de S1 e mais como aquele que não perde o rumo, melhor assim, o “Spala” da orquestra, o que dá o tom, aquele que afina os instrumentos. Observar a Sala é perceber a teoria da Clínica do Real, a segunda clínica de Jacques Lacan. Vocês podem me perguntar, como então se pode, apenas pelo olhar, descrever essa clínica, especificamente o que da teoria transpira na Sala? Isso é possível quando se atenta para quem é o esperado.
Para cada um que ali entra, o dono da Sala elege um modo singular de chamá-lo: às vezes fala alto, chamando a pessoa pelo nome em altos brados, às vezes cantando, às vezes sério, às vezes, só pelo gesto com as mãos e o olhar (esse sempre direto, focado), que economiza o entorno, não se perde nos perímetros da Sala…
Seria uma Sala aparentemente comum, não fosse o fato de não existir. A Sala Da espera da qual falo é apenas um lugar provisório, um porto de passagem. Dali, uma legião de pessoas parte para outro lugar, onde alguns podem ser tudo o que quiserem, desde que saibam se inventar. Como sozinhas não saberiam fazer isso, elas vão até ali buscando a vez de serem chamadas pelo cara de dentro. Enquanto ele não as chama, ficam na Sala.
Tem cinco cadeiras do tipo que, normalmente, passam como cadeiras confortáveis e bem posicionadas. No entanto, quando você está cansada ou aflita pela sua hora, tornam-se muito desconfortáveis. Um tapete listrado de preto e branco cobre o chão entre as cadeiras, tapete esse que, dependendo do mood, pode ser com muitas listras pretas ou com mais brancas. Duas mesas laterais, uma com um abajur e, outra, com um livro do Guimarães Rosa, parecem convidar àquele que senta, para uma leitura.
Uma janela com a cortina Roman Shade, sempre recolhida, permite a entrada de uma claridade contínua na Sala. Essa claridade às vezes é diretamente proporcional ao sofrimento de quem ali senta e, às vezes, inversamente. Há uma estante com livros dos mais diferentes assuntos (medicina, fotografia, literatura, psicanálise, atualidades etc). Muitos deles, raros e antigos. Como tudo que acontece nessa Sala, espelham sua característica inesperada e surpreendente!
A cozinha torna-se apertada para tanto sofrimento, para o encontro gostoso com os colegas. Fica exígua quando alguém quer um copo d’água, entrar no banheiro ou quando a secretária vai pegar alguma coisa na geladeira. Lota às terças-feiras, dia do módulo de psicanálise, quando ocorre o encontro semanal que o cara de dentro mantém com um grupo de analistas. Livros, pessoas, vozes que leram ou não o texto, que têm ou não algo a dizer. De bocas para falar e tomar café.
Paralela à janela, há um aparador com revistas atuais, que são de grande serventia quando já não se consegue ficar mais quieto ou, também, quando não se consegue mais ficar olhando para o rosto da pessoa que está sentada à sua frente. Chega de papo! Ninguém aguenta mais ficar perguntando como vai o tempo, se está frio ou calor, se o trânsito está travado ou não! Chega! Quem está travado é você e, aliás, se não me falha a memória, essa não seria uma das razões pelas quais você está lá?
O tempo não passa… Quem ele vai chamar agora? Aquele cara que comentou, um dia, que vem de longe e pega ônibus no terminal rodoviário? Aquela senhora com cara de prepotente? A menina que fala no celular sem parar? É sempre uma dúvida. Mas, não se tem uma hora marcada? Por qual ordem alguém é chamado?
De certa forma sim, tem-se uma hora. A hora é marcada em uma agenda que só Deus sabe como é escrita. E, pasmem! Não tem o horário escrito na frente! Então, não adianta você pensar que é pela ordem cronológica, pois aqui, justamente, a ordem não vem de fora, vem lá de dentro, da Sala para onde você vai.
Assim são todos os dias da semana, alguns mais, outros menos. Essa Sala chamada Da espera, assim como no bonde, é a Sala do desejo, do inesperado da surpresa, das emoções incontroláveis, dos homens que entram sorrindo e que saem apoiados no paletó…
Por hoje, ficamos aqui!
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística e membro do Corpo de Formação do IPLA