Por Maria da Glória Vianna
O tempo na sala de espera do analista não segue a lógica do relógio comum
Uma moça bonita reclamou do atraso do Cara lá de dentro. Não podia se conter de tanta ansiedade. Por várias vezes, jogou as revistas na mesa, cutucou a agenda, brigou com alguém no celular, remexeu-se na cadeira inúmeras vezes. Para ela, era inadmissível um atraso de mais de uma hora! Não tinha percebido, ainda, que o tempo, naquele local, não seguia a lógica do relógio comum.
Perguntou-me alguma coisa só para ter com quem conversar. Estava tão nervosa que largou a conversa no meio. Dirigiu-se, tal qual um cão raivoso, em direção às duas secretárias do Cara lá de dentro. Nesse momento, sua beleza deu lugar a expressões de desespero e de raiva.
As secretárias, no entanto, não deixam se intimidar. Foram escolhidas a dedo. Estão preparadas para lidar com diferentes comportamentos. Como a atitude da moça bonita não era novidade, não pareceram se importar. Polidamente, disseram que ele estava para chegar.
Vale a pena comentar a importância dessas personagens. Sabe-se que cabe a cada analista escolher ter ou não uma secretária. Para o Cara lá de dentro elas são imprescindíveis. Vendo-as, como não se lembrar da famosa Glória Gonzalez? Lacan, inclusive, tinha um modo peculiar de chamá-la: cantando. Cantava, bem alto, “Gloria in Excelsis Deo”, ou, ainda, imitando um tenor, “Glooooriaaaaaaa!!!”.
Glória foi a secretária que acompanhou Lacan por mais de 30 anos. Sabemos, por livros de Lacan, e por relatos de pacientes por ele atendidos, que a presença de sua secretária ultrapassava o senso comum acerca das atribuições do cargo. Gonzalez, além de toda parte de gerenciamento das consultas do Dr. Lacan, encarregava-se de datilografar o que havia sido estenografado dos seminários do psicanalista. Venhamos e convenhamos, não se tratava de uma tarefa fácil.
As duas secretárias do Cara lá de dentro também são chamadas de modo peculiar e de acordo com o mood do analista. Pelo que vejo, já entenderam o caso a caso da psicanálise. Entenderam bem a lógica da psicanálise: sem padrão, mas com princípios. Não têm respostas prontas para as perguntas. Sabem que, quando alguém liga para um analista, não se tem um tratamento genérico, tipo ligação de telemarketing. Não acolhem penosa ou dramaticamente as queixas de quem as procura. Nas marcações de horário, não recebem facilmente um “não posso” descompromissado.
Como elas não facilitaram para a moça que reclamava, nós, na Sala de Espera tivemos a ideia de entretê-la. Começamos a fazer planos para montar um grupo para falar a respeito da transformação que a psicanálise pode causar na vida de quem a escolhe. Nosso plano teve de, temporariamente, esperar. Uma a uma, fomos chamadas para entrar. A moça que reclamara da demora foi a primeira. Entrou sapateando.
Nós, de fora, ficamos apostando se ela ia sair ainda reclamando. Lá dentro, a mágica da psicanálise instaurou-se. Ela saiu transformada, como se não tivesse mais chão onde pisar. Nessa sala, você pode até planejar quando vai entrar e o que vai falar. Concretizar os planos é outra coisa. Você não tem a mínima ideia de como vai sair.
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.