Por Maria da Glória Vianna
O cara lá de dentro escolhe como e quando chamará a cada um de nós para o trabalho na outra cena.
Não pense que, para entrar na Sala, basta tocar a campainha. Até mesmo, porque ninguém vai abrir, ao menos que seja uma entrega de sedex ou algo parecido. A porta vai ser aberta, claro, mas há um código para se entrar. São quatro números, que, digitados, fazem aquele barulhinho estranho avisando que o “Abre-te Sésamo” aconteceu!
Há muitos anos o código continua inalterado… Espantoso! Esse código é partilhado apenas pelos pacientes ou participantes de grupos de trabalho. Cada um combina com o cara de dentro a frequência na qual vai tomar o bonde. Na maioria das vezes, quando as pessoas entram, cumprimentam-se efusivamente com beijos, abraços, às vezes com os olhos marejados, mesmo quando não se conhecem.
Uma de minhas colegas, também psicanalista, ao menos uma vez por mês digita, nessa Sala, a senha do seu próprio consultório – que, aliás, também fica em um oitavo andar – e fica irritada porque a porta não abre. Quando o silêncio é grande, ouvem-se seus sinais de impaciência de dentro da Sala da espera. Ela sabe que isso ocorre, mas não consegue se corrigir. Só o que faz é rir de si própria.
Não é uma Sala como outra qualquer. É a Sala, não pode ter igual. Essa Sala é mágica, só pode ser! Tem o dom de dar aos seus integrantes o poder da sensibilidade. Parece que todos desenvolvem um sentido que pode ser o sétimo ou o oitavo. Ele dá ao outro lá sentado, fingindo que lê enquanto espera, a sensação de que sua sessão já começou, antes mesmo de encontrar com o psicanalista.
Há pessoas que, na hora que entram, perguntam:
– “Ele já chegou?”.
O “ele”, é claro, refere-se àquele cara lá de dentro, aquele que pára o tempo, dizendo:
– “Hoje ficamos aqui!”.
E amanhã, cara, quem fica com o quê? Será que nessa Sala cabe dizer “amanhã vai ser outro dia”? Será?
Cada um chega do seu jeito: como pode, como consegue, como sempre chegou. Uma senhora chegou maquiada como se saísse de uma revista de moda. Usava óculos tipo gatinho (anos 50) e, rigorosamente, combinava todas as peças, de grife, entre si. Notei, pelo olhar, que ela estava cansada. Imaginei que o cansaço se devesse ao andamento do trabalho analítico que, às vezes, é mesmo cansativo. Alguém lhe perguntou o que estava acontecendo:
– “Estou sem empregada. Antes de sair de casa, ajeitei tudo o que pude!”.
Tive que segurar o riso frente ao ruído semiótico. Como imaginá-la com uma vassoura e um balde na mão?
Outra colega anuncia sua chegada desde a saída da porta do elevador. Faltam-lhe mãos para a quantidade de coisas que vem carregando: mala de rodinha, bolsa, tablet onde vê os últimos e-mails ao mesmo tempo em que fala efusivamente ao celular, preso com o pescoço torto. A sua capacidade de não deixar a peteca cair é realmente espantosa. Ela digita o código sem errar e chega com um sorriso no rosto iluminado cumprimentando a cada um de nós. Ao mesmo tempo, continua falando ao telefone:
– “Vou almoçar em casa. Assim que sair daqui vou passar na Empresa. Já vou ligar pra lá”.
Mal termina os cumprimentos e já faz outro telefonema:
– “Já está tudo pronto? Peraí que eu to falando! Deixa eu terminar de falar!”.
Ela é uma metralhadora verbal. Sempre parece estar com o fuso horário trocado. De algum modo, lembra os que chegam sempre atrasados, com cara de assustados. Muitas vezes, para quebrar um pouco o gelo, há sempre uma colega que aproveita para maquiar aquela que, na pressa, não passou nenhum batonzinho para sair na rua. Funciona, a meu ver, como a preparação que antecede a entrada naquela outra sala onde, para cada um de nós, é sempre uma estreia.
O cara lá de dentro escolhe como e quando chamará a cada um de nós para o trabalho na outra cena.
Vai encarar?
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística e membro do Corpo de Formação do IPLA