Por Maria da Glória Vianna
Se a sala tem uma rotina que podemos descrever, o tempo do inconsciente é surpreendente.
Como transcorre o tempo na Sala da espera? Quem frequenta o bonde há muito tempo vê as marcas de sua passagem, por exemplo, no corpo dos outros. Esses dias, ao deparar-me com um menino que encontrei por algumas vezes ali, não tive como fugir do jargão: “parece que foi ontem que ele era um garoto”. Depois de alguns meses sem vê-lo, tinha se transformado em um belo rapaz. Estava ao menos uns 20 centímetros mais alto, mudado o rosto e a maneira de se vestir. Educadamente, cumprimentou e conversou, com muita naturalidade, com todos os adultos do bonde.
Quem espera sentado, às vezes nem vê o passar das horas, de tão entretido com as conversas dos companheiros. É um tempo meio bizarro, um misto de um tempo que ou não passou ou já passou. Gira de outro modo. É hora de pensar no tempo que não se mede pelas horas que passam, mas pelas que ainda não chegaram.
A conversa corre solta. Quando o cara chega, silêncio no ar! Esses dias, entrou cumprimentando todo mundo e ainda disse, com cara animada, que o rapaz que nos entretinha com um papo suave tinha de sair da berlinda, pois sua hora tinha chegado. Uma moça que embarcara recentemente no bonde não entendia o porquê da Sala estar cheia.
– “Qual é o seu horário?”, perguntou- me. A Sala ficou tensa. A pergunta soou como: – “Sabia que coelho da páscoa existe? ”
Ela não entendia que o relógio que ali funciona é o dele, ora essa! Os habitués da Sala já não acreditam mais que, para ele, o relógio comum a todos funciona. Duas moças conversavam, preocupadas com a saída, pois o trânsito de São Paulo estava sufocante naquela semana… Aproveitei para conseguir o endereço e o telefone de uma moça que faz uns vestidos lindos. Ela estudou moda fora do Brasil e é cheia de ideias, de invenções.
Ele, lá de dentro, não chama ninguém. Qual é o tempo mais difícil de passar: o desse lado ou o de lá de dentro? O tempo parece não passar. Reparo na estante. Mudaram os livros de ordem.
Em um dia de frio em São Paulo, as pessoas da Sala pareciam mais comportadas! Engraçado, basta fechar a janela para que todos se sentem com as pernas cruzadas, leiam revistas sem passar as folhas fazendo estardalhaço! Parece que até a máquina de fazer café funciona com decibéis ajustados!
Uma moça reclama que engordou. Como não consegui identificar nenhuma diferença em seu corpo, perguntei, curiosa, em quantos quilos ela havia ultrapassado a balança!
– “Quase um quilo! Você nem imagina”!
De fato, quem não podia imaginar era eu mesma! O que mais me espantou foi o “quase”.
Poderíamos até brincar dizendo que quando ela entrou, a Sala ficou mais cheia! Mas, não foi isso. Dada a peculiaridade da moça, a sala encheu-se de humor, de saudades de pessoas que há muito não se viam por aqui… De repente, o riso começou a correr solto, muito solto e as palavras, as piadas e tudo o mais que queridos falam entre si: houve até uma aposta:
– “Com que cara o próximo iria sair lá de dentro?”
Muitos apostaram na de choro. Mas, contrariando as expectativas, saiu lépido e fagueiro. Havia uma alegria no ar. É muito bom poder compartilhar com os outros uma alegria compromissada: todos sabem o porquê de estarem aqui, todos querem continuar o caminho. Todos gostam muito dele. O riso é mais por compartilhar esse momento do que por qualquer outra coisa.
Sempre um contava uma piada, sempre um lembrava um caso e havia uma moça que dizia que precisava se concentrar para poder entrar: ela falava brincando, ria junto, mas sempre pedia que nos calássemos e que não ríssemos tão alto!
E do que ríamos a não ser da comédia que é a própria vida? Do que é risível e não engraçado, do que não tem sentido e nem nunca terá. Como explicar, então, que se ri e se converse, dessa forma, numa Sala dita de espera, a não ser se pensando nela como fazendo parte do bonde?
Falando em tempo, fui chamada. É hora de sair do tempo da sala, do tempo cronológico, e entrar no tempo do setting analítico, o tempo do inconsciente com o qual cada um que decide fazer uma análise precisa lidar. Desse tempo, ninguém foge. Se a sala tem uma rotina que podemos descrever, o tempo do inconsciente é surpreendente. Cabe a cada um saber ouvi-lo, já que, nessa vida, não há tempo a se perder.
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.