Uma sala chamada da espera: da conversa de salão ao discurso analítico 04/12/2014

Por Maria da Glória Vianna

Aqui na Sala Da espera pode-se dizer tudo de maneira relativamente inconsequente, mas, lá dentro, é outra história

A moça que usa a calça apertada descreve sua roupa como uma calça “skinner”. Eu rio, concordando. Fui interrompida pela conhecida que, beijando o ar, pergunta: “- Tudo bem?” Eu respondo, mas não sei se ela ouviu. Ambas sabíamos estar cumprindo rituais de boa educação. O menino que lê – é assim que vou chamá-lo, aludindo ao “Malba Than ou ao homem que calculava” – não se abala. Continua imerso em sua leitura.

Uma conversinha miúda começou entre as senhoras. Alguém comentou que fulana e fulano eram “cuspidos e escarrados”! Uma frequentadora assídua Da Sala – já há muitos anos –disse que, na verdade, a expressão era “esculpido em Carrara”! Outra pessoa discordou. Tinha ouvido falar que se tratava de uma variação da expressão “esculpido e encarnado”. A polêmica teria tomado vulto não fosse uma jovem senhora ter relembrado um texto humorístico que fez sucesso nos almanaques dos anos 1970. Pediu atenção de todos. Para ela, a moral do texto era uma verdadeira lição de vida. Narrou algo mais ou menos assim.

Um passarinho estava no Polo Norte, morrendo de frio. Chegou uma vaca e, paf, cagou em cima dele. Graças a isso, a ave se esquentou e conseguiu sobreviver naquele frio horroroso. Passado algum tempo, conseguiu botar a cabeça para fora da bosta e começou a cantar alegremente. Nisso, veio um gato, o tirou da bosta e o engoliu em um bote só. A moral da história? Nem sempre quem te põe na merda quer o seu mal ou te prejudica. Nem sempre quem te tira da merda quer o seu bem. Quando você está na merda, é melhor ficar de bico fechado!

Gargalhávamos quando alguém saiu de lá de dentro com uma expressão muito emocionada. Um senhor que estava mudo até aquele instante a interpelou:

– “Nossa, hoje foi bom! ”.

A moça, ainda chorosa, retrucou:

– “Depende do que você acha que é bom!”

Como tínhamos acabado de escutar o apólogo do passarinho, a nova rodada de risadas foi inevitável! O senhor foi chamado para entrar. Andando em direção à porta, soltou pequenos trinados em nossa direção e afirmou, maroto:

– “Agora é a minha vez!”.

Até hoje não sei se o Cara lá de dentro escutou os trinados e, caso os tenha ouvido, como os teria interpretado… Aqui na Sala Da espera pode-se dizer tudo de maneira relativamente inconsequente, mas, lá dentro, é outra história.

O tempo cronológico continua a passar. Alguém toma um café atrás do outro. O menino ainda não largou o livro. Outra pessoa saiu de lá de dentro com cara de choro. Uma jovem entra derroubando pacotes, apressadíssima:

– “Ele já chegou?”

Não ouvi respostas. Agora, o assunto emocionante do momento era o estado do cabelo de quem saía da sala: cabelo penteado, senta-se na poltrona; cabelo amassado, deita-se no divã.

–  “Ah! Aquele (a) deita no divã”; “esse ainda senta na poltrona”. Até parece que o divã significa um tipo de promoção. Do jeito que anda o papo, parece que “ir para o divã” está sendo interpretado como equivalente a um aumento de salário por merecimento de contribuição à causa analítica.

– “Não é bem assim! Cara, literalmente, o buraco é mais embaixo!” – Tentei explicar.

Não deu tempo. Agora uma pessoa saiu esfuziante. Beijou e abraçou todos pela segunda vez, como se não tivesse nos cumprimentado ao chegar.

– “Feliz! Feliz! Feliz! Hoje foi demais! O cara não deixou a peteca cair! Bobeou, ele, pá! Foi com tudo, na mosca!”

Engraçado como ao entrar na “Sala de dentro” as pessoas mudam! Parece que começa aquela vontade de parar o tempo, para se ter mais tempo para falar, para chorar, para xingar o chefe, o analista, para reclamar do trânsito… Parece que, às vezes, a psicanálise empresta esta tal de felicidade. Personalizada. 

Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.