Por Maria da Glória Vianna
A Sala também atiça a curiosidade maldosa dos que estão sentados e aguardam a vez.
Nesta Sala, só se entra mediante um código. Agora, para sair, basta abrir a porta que você já está “do outro lado”. Sai para o lado daqueles que, muitas vezes, se sentem aliviados depois de tanta dor, o lado dos que mais tarde voltam, dos que voltam mais de uma vez na semana, dos que saíram com raiva por acharem que deveriam ficar mais tempo, dos que voltam no dia seguinte; dos que saíram com a certeza de que não se lembram do que falaram, ou daquele que, por alguma razão, esqueceu-se de contar um sonho “irado”! Pode, até, sair do lado daqueles que saíram sem pagar, daqueles que pagaram a mais e demoraram um tempo para saber por que o fizeram…
Aqueles que entram pela primeira vez nessa Sala costumam se surpreender com o papo rolando solto entre as pessoas que lá estão. Depois, descobrirão que são todos colegas do bonde chamado desejo. Nesse bonde, há pessoas que, sem se conhecer, se tornaram íntimas. Perguntam, tranquilamente, a respeito de filhos, marido, namorado. Outros trocam receitas de cozinha. Alguns murmuram aborrecimentos com filhos. Coisas inusitadas acontecem. Já me ocorreu de alguém que nunca vi arranjar-me uma faxineira.
Há uma moça que sempre está lendo alguma coisa. Ela comenta o que lê. Mas, engraçado, sempre que ela fala, tenho a impressão de que a ouço em outra língua. Não parece português. Às vezes fico pensando se ela entendeu minha pergunta, se está comentando alguma coisa ou apenas se respondeu pelo som de minha voz.
Frequentemente sai alguém lá da sala do Cara com cara de choro… Impressionante como isso mexe com quem já tomou o bonde, mas ainda não foi chamado!
– “O que será que aconteceu?”
– “Será que falou de algum assunto triste?”
Pálido, um rapaz multiplicou as conjecturas. A mocinha que estava ao seu lado achava que chorar era hábito da pessoa, isso porque, na semana passada, ela tinha entrado e saído da Sala no mesmo estado: chorando. A Sala também atiça a curiosidade maldosa dos que estão sentados e aguardam a vez. É comum você imaginar, ao ver alguém que saiu chorando, que “pimenta no olho do outro é refresco”.
Os participantes do bonde impressionaram-se mesmo no dia em que uma pessoa saiu com o passo mais rápido do que entrou e, ainda por cima, bateu a porta! É, os efeitos do que se passa nessa Sala perduram mais… ainda (Encore).
– “Credo, hoje deve ter sido punk”! – arriscou alguém.
Na semana seguinte, repetem-se, praticamente, os mesmos rituais. Muitos desses personagens voltam a entrar em cena. Sorriem, perguntando dos filhos, do marido, se a faxineira apareceu… Comentam que o trânsito estava pesado, que é necessário ligar o ar condicionado… O que será que todos esperam nessa Sala?
A porta se abre. Lá de dentro sai uma voz que chama o nome de alguém que está sentado bem à minha frente. Junto com a voz, sai um paciente com uma cara, por falta de adjetivo melhor, bouleversée. Senta, faz o cheque e me olha. Cumprimenta-me e diz que há muito tempo não nos víamos. Pessoa agradável… Levanta e vai embora. Pela expressão facial, parece que, para ela, a sessão ainda não terminou. Porta-se como alguém que desceu do bonde, mas, dado o susto da parada, ainda demorará um tempo para saber em que estação está ou para onde vai se dirigir. Fica um tempo como quem nem saiu ainda.
Às vezes, imagino a cara dos porteiros do edifício vendo pessoas saindo com olhos vermelhos. O que pensam, ao ver homens que entram berrando no celular, dando ordens aos seus funcionários, e saem macambúzios, silenciosos, carregados pelos seus ternos?
Maria da Glória Vianna é psicanalista, mestre em linguística pela PUC e membro do Corpo de Formação do IPLA.