Uma pequena frase de Jacques Lacan 06/03/2014

Por Jorge Forbes

Não sabemos a priori o que desejamos e quando o encontramos, por surpresa ou azar, não sabemos se queremos

Uma pequena frase de Jacques Lacan: “O traço unário nada tem a ver com o Há-um que tento abordar este ano na ideia de não haver nada melhor a fazer, o que exprimo por meio do …ou pior”.

O traço unário, conhecido conceito de Freud, que diz respeito à base de nossas identificações, não tem nada a ver com o Há-um, nova formulação de Lacan: existe uma diferença importante. Lacan se antepõe a Freud e, se chama a atenção que um conceito é distinto do outro, seguramente é porque sabe da grande possibilidade de serem confundidos. Está dando um passo a mais, no caminho aberto por Freud, e quer ser percebido nesse movimento. Se alerta à possível confusão, é porque sua proposta – Há-um – recobre o campo epistêmico e clínico do traço unário.

De fato, se lermos a sequência dos parágrafos do capítulo XII – O Saber Sobre a Verdade -, do Seminário …ou pior, vamos ver Lacan associar o traço unário ao simbólico, enquanto o Há-um seria da ordem do Real. Ele critica a explicação, através do traço  unário, da Psicologia das Massas, de Freud, erradamente baseada, por sua vez, em Gustave Le Bon que tentaria resolver equivocadamente o não todos da mulher: – “Toda essa psicologia de algo que é traduzido como das massas fracassa no que se trataria de ver aí, com um pouco mais de sorte: a natureza do não todos que a funda, natureza que é justamente a d’a mulher, a ser posta entre aspas, a qual, para o pai Freud, constitui até o fim o problema, o problema do que ela quer.”

Essa crítica de um sentido único nas massas faz Lacan, assim penso, estar mais próximo da herança nietzscheana do que Freud, na radicalidade de pensar um Real sem sentido, embora não por isso menos determinante. Também o faz visionário do século XXI onde, no lugar das massas unidas, vemos a multiplicidade como aquela que se manifestou nas ruas brasileiras em junho e julho deste ano. Todos juntos em passeata movidos por razões muito diferentes. Um exemplo de como o laço social na pós-modernidade funciona pelo ressoar, pelo enxame, Lacan dixit.

Jacques-Alain Miller, seu maior elucidador, chama a atenção a esta característica de atualidade na apresentação do Seminário em pauta: – “No lugar do que assim deixa um furo no real existe uma pletora: imagens que enganam e encantam, discursos que prescrevem o que essa relação deve ser. Não passam de aparências, cujo artificialismo a psicanálise tornou patente para todos. No século XXI, isso é sabido.”

Será então, para concluir esse brevíssimo comentário, que estaríamos fadados ao “salve-se quem puder”, ao cinismo? Seria esse o fim e o final de uma análise na consequência do Há-um? Não seria possível nenhum cálculo orientador do sentido?

Para responder, transcrevo mais um trecho de Lacan, sempre no mesmo capítulo, poucas páginas adiante: “Mas isto não quer dizer que tal sentido não seja calculável. Ele o é, a partir do quê? Do Um que encontramos nele. Só que não devemos nos enganar quanto ao que aí encontramos do Um. Ele nunca é aquele que procuramos. É por isso, como disse a partir de alguém que está na minha situação, que eu não busco, eu acho. A maneira, a única maneira de não nos enganarmos é, a partir do achado, nos perguntarmos o que havia para procurar, se o tivéssemos desejado”.

Assim sendo, fica coerente que Lacan diga, nas páginas seguintes, que o que nos interessa no amor seja a sua estranheza. Uma análise, nessa perspectiva do Há-um, não do traço unário, deve dar ao analisando condição de suportar o estranhamento do amor que o coloca, ao analisando e a todos nós, enfim, em questão. Não sabemos a priori o que desejamos e quando o encontramos, por surpresa ou azar, não sabemos se queremos. Ficam abolidos os planos moralistas do laço social, as cartilhas de qualidade de vida, ao mesmo tempo em que nos afastamos do cinismo. Valorizamos, na decorrência da supremacia do Real, na clínica psicanalítica, duas atitudes: a invenção e a responsabilidade por aquilo que se inventa sobre a contingência do Há-um.

Jorge Forbes é psicanalista. Trabalho apresentado em Buenos Aires, no Seminário haun da Escola Brasileira de Psicanálise – ENAPOL, novembro de 2013.