Uma ciência que não é útil não é uma ciência inútil 22/05/2014

Por Marcelo Veras

A tecnologia rompeu com a ideia de que o real é a natureza

Com frequência escuto, em textos de colegas psicanalistas, duas expressões que podem correr o risco de serem tomadas como dogmas irrefutáveis, na melhor das hipóteses, ou simplesmente mantras repetidos à exaustão por um maratonista em final de percurso.

Frase 1: O real da ciência não é o real da psicanálise.
Frase 2: A causa de nossas mazelas vem da aliança entre capitalismo e ciência.

É verdade que ocupo uma posição um tanto quanto singular entre meus colegas, já que divido meu tempo entre a Escola Brasileira de Psicanálise, meu consultório e a direção de uma Fundação de apoio à pesquisa e à extensão, entidade ligada às Universidades Federais. Passo metade do meu dia discutindo projetos científicos, ouvindo pesquisadores, negociando com financiadores de pesquisa e, sobretudo, respondendo aos incontáveis auditores e fiscais que tratam os gastos com a pesquisa do mesmo modo que os gastos na construção de uma rodovia. Certo fiscal quis multar um pesquisador pelo fato do resultado de sua pesquisa ter sido negativo, ou seja, ele teria gasto dinheiro público sem atingir sua meta. Ora, o erro é fundamental para o avanço científico. Percebe-se, obviamente, que nosso fiscal audita cientistas sem provavelmente nunca ter ouvido falar de Karl Popper.

Essa experiência junto ao cotidiano dos cientistas já faz meia década. Ouço diariamente as dificuldades que os pesquisadores enfrentam para levar a cabo seus projetos. Poderia dividir ao menos em dois grandes grupos os problemas enfrentados:

  • o mortal vírus paralisante da burocracia brasileira que faz com que auditores de todo gênero transformem cada vez mais o exercício da ciência em crime policial;
  • o pouco, isso mesmo, pouco interesse que o capitalismo, assim como qualquer forma de poder, tem pela ciência;

Hoje comento a frase 1. Uma grande confusão se faz ao tomarmos como sinônimos ciência e tecnologia. A tecnologia é fundamental para um mundo que, tal como comentou Jacques-Alain Miller, rompeu com a ideia de que o real é a natureza. Enquanto muitos ainda falam da Amazônia como o pulmão do mundo, em uma nostálgica referência à tradição positivista do corpo social, a Amazônia é hoje a tecnologia do mundo. Ou seja, a tecnologia é sempre inscrita em algum discurso, ela é instrumento a ser usado no campo do sentido e dos ideais. Sejam estes ideais magníficos ou perversos.

Contudo, em um mundo tomado pela tecnologia, há um espaço cada vez menor para a ciência pura, em que a pesquisa parte do enigma, e não da imposição de algum significante mestre. O real que atravessa esta ciência é sem sentido e a operação científica, neste caso, dará no máximo resultados que são puros matemas. Aqui falamos de fórmulas que mesmo podendo alterar profundamente a experiência civilizatória continuam sendo apenas escrituras assemânticas. Exatamente por buscarem agir independentes das exigências dos mestres contemporâneos, os cientistas que perseveram nesse caminho conhecem de perto a solidão e a falta de subvenções das estruturas de poder político, econômico e social. Trabalhando com o enigma e o real sem sentido, produzindo escritas do real que, em si, nada dizem, tendo mais a pensar que nestes casos o real da ciência é perfeitamente compatível com o real da psicanálise.

Na próxima vez comentarei a frase 2.

Marcelo Veras é diretor da Escola Brasileira de Psicanálise