Por Gisele Vitória
NOTA: Esse texto foi comentado na terça-feira 1/11/16, no curso semanal de Jorge Forbes, como memória da aula anterior, dando continuidade ao estudo do tema que trabalha atualmente – as consequências do pós-humanismo na subjetividade humana e a posição da psicanálise.
O aplauso (do latim applausus, derivado de applaudĕre), expressão humana de aprovação, surgiu na Antiguidade romana durante os combates entre os gladiadores. Em caso de empate, os guerreiros eram condenados a dar cabeçadas um no outro. Para estimular o ato, o público simulava o choque das cabeças batendo a palma das mãos. O aplauso pode ter evoluído para expressar sentimentos mais nobres, como o de reverenciar o talento artístico, mas o que ele ainda guardaria no seu real?
Na aula de 25 de outubro do seminário Terra 2, o psicanalista Jorge Forbes tratava das conclusões do pot-pourri de assuntos da aula quando surgiram os aplausos. Não foi exatamente da forma sonora a que estamos habituados. Os aplausos apareceram em seu discurso como um componente importante no nosso pot-pourri de culpas. Lembremos que o termo pot-pourri vem do francês “vaso podre”, ainda que seja perfumado. O trajeto da explicação que terminou na alusão às palmas tinha a função de apontar como nós adoecemos pelas nossas qualidades.
A dádiva que pacifica a angústia do sucesso
O fio da meada parte do sentido de uma ética aristocrática, ou do direito natural das coisas. A psicanálise resgata esse valor, mas de outro jeito. O interesse é por uma faceta da aristocracia onde não existiria família. Jorge Forbes pinça um ponto específico: a ética aristocrática é o traço distintivo que destaca uma pessoa do grupo. É como se esse traço, que no fim das contas atende pelo nome de talento, gerasse uma família em si mesmo para o respectivo talentoso. Por isso, essa nova ética aristocrática seria pós-edípica, ou além do pai.
“A noção de dádiva apazigua o mal estar diante do sentimento de singularidade que uma pessoa tem. A singularidade exclui você do grupo. Isso gera angústia e lhe põe devedor para poder suportar a diferença”, diz Jorge Forbes. “Ao término de uma grande apresentação, você fica obrigado à sua plateia. Com o aplauso, a plateia autoriza a sua diferença. Quando o público se levanta e aplaude o artista, o artista não teme mais a diferença que causou.” Bis. Quando, humildemente, o artista reverencia sua plateia, isso é um ato de agradecimento à aprovação que lhe foi concedida generosamente. No fundo, fica posto à quem recebe as palmas: minha diferença me exclui de vocês. Mas, com o aplauso, isso está autorizado.
O aplauso é um dos momentos mais bonitos do espetáculo. “O espetáculo se conclui ali e não na última fala. As palmas que fecham o show significam o tempo de incorporação necessária da diferença”, conclui Forbes.
O Evangelho e a parábola dos talentos
O pot-pourri segue seu inventário no decorrer da aula. Antes dos aplausos, já havíamos discutido a parábola dos talentos, registrada no evangelho de Mateus 25. 14-30. O olhar da psicanálise para Mateus vai além do relato, registrado também em Lucas, e narrado no fim de vida de Jesus. Tudo dito pouco antes do Domingo de Ramos, da Quinta-feira da Paixão ou da Sexta-feira Santa. Na real: o que está escrito é a palavra de alguém que sabe que vai morrer e pensa na sua herança:
Na parábola, os três homens ganham quantidades diferentes de talentos (e responsabilidades). “A um deu cinco talentos, a outro, dois e a outro, um, a cada um segundo a sua própria capacidade; e, então, partiu.” (Mt 25.15). No acerto de contas, veio a alegria com os que multiplicaram o talento que receberam: “Então, proximando-se o que recebera cinco talentos, entregou outros cinco, dizendo: Senhor, confiaste-me cinco talentos; eis aqui outros cinco talentos que ganhei. Disse-lhe o senhor: Muito bem, servo bom e fiel; foste fiel no pouco, sobre o muito te colocarei; entra no gozo do teu senhor.” (Mt 25.20-21). Receber talentos é também receber responsabilidades. O último homem, apesar de ter apenas conservado o seu único talento, recebeu dura cobrança por não tê-lo multiplicado: “Respondeu-lhe, porém, o senhor: Servo mau e negligente, sabias que ceifo onde não semeei e ajunto onde não espalhei? (…) Tirai-lhe, pois, o talento e dai-o ao que tem dez”.
O que isso interessa à psicanálise? Para o filósofo Luc Ferry, a parábola dos talentos é uma referência importante em seu livro “Revolução do amor”. Aparece na passagem de uma ética aristocrática para uma ética meritocrática. É quando passamos do tempo da aristocracia para o tempo do merecimento. “A parábola dos talentos é a própria aristocracia. É o que você faz com seu talento. A ninguém é dado o direito de não fazer nada com o seu talento. Ninguém tem o direito de abrir mão dele. É o que diz a parábola”, comenta Forbes, nesse caso, na contra-corrente do comentário de Ferry.
O elo com a Carta da Dissolução
“As questões da Igreja são as mesmas da psicanálise. As respostas, não”, pontua. Forbes cita a Carta da Dissolução de Lacan da E.F.P (Escola Freudiana de Psicanálise), de 8 de janeiro de 1980. Nela, Lacan faz referência à Igreja. (… “ É por isso que eu dissolvo. E não me queixo dos ditos “membros da Escola freudiana” – melhor, eu lhes agradeço, por haver por eles sido ensinado, onde eu fracassei – quer dizer, eu me embaralhei. Este ensino me é precioso. Tiro dele proveito.
Sabe-se o que custou, que Freud tenha permitido que o grupo psicanalítico prevalecesse sobre o discurso, tornando-se Igreja. A Internacional, já que é seu nome, se reduz ao sintoma que ela é daquilo que Freud esperava dela. É a Igreja, a verdadeira, que sustenta o marxismo naquilo que ele lhe restitui de sangue novo… de um sentido renovado. (…) A estabilidade da religião vem de que o sentido é sempre religioso”)
Acabamos sempre religiosos porque não aguentamos viver sem sentido. Para Forbes, há muitas de interpretações para a parábola dos talentos, mas uma delas é a necessidade de tirar o reino de Deus da sapiência, do gozo e das mãos dos iluminados. “Que cada um tome a si a responsabilidade de dar continuidade a essa obra, uma vez que Jesus vai morrer. Cada um deve por de si, nessa continuidade”, interpreta ele. Nesse momento, Forbes aponta a semelhança dessa posição com a de Jacques Lacan. Na fase final de “Os Escritos”, Lacan sustenta que cabe a cada um por de si.
O novo amor
Fato: Freud é um marco regulatório. As obras “O Mal Estar na Civilização” e “O Futuro de uma Ilusão” estão aí para provar. Ele espera que a civilização saiba devolver ao indivíduo aquilo que tira dele. Uma pessoa sempre cede ao movimento civilizatório um tanto da sua libido. Pensando além e para frente, é justo acreditar que a psicanálise possa contribuir com a civilização pós-moderna e fazer algo, por meio do conceito de Real e a partir de uma ética baseada no novo amor.
O novo amor diz respeito a um sentimento amoroso que não é paternal. O amor anterior era paternal, uma vez que se expressava através de valores do pai. “Estou com você por causa disso e daquilo” são valores paternais. O pai é a referência de intermediação e dá sentido
Uma pessoa pode não morrer mais por uma grande ideia, mas morre por um grande amor. Um dos maiores amores é o filho. Isso é uma novidade. Na história, nem sempre foi assim. “O amor filial é filho do capitalismo. É filho da migração da agricultura para a cidade e do processo de individuação”, explica Forbes. Antes disso, não havia amor filial como nós o conhecemos hoje.
O refúgio na culpa
Para terminar, uma volta ao mesmo lugar: sim, nós adoecemos pelas nossas qualidades. Não é fácil arrancar uma pessoa do gozo do sofrimento. Muitos de nós adoramos a dor. “As pessoas confessam o tempo inteiro crimes que não cometeram”, constata Forbes. “Mas, confissão de culpa sem prova do crime não é suficiente para a condenação.”
A culpa, no entanto, pode ser confortável. Porque o sentimento sempre surge em relação ao outro. Ao senti-la, o culpado aposta que alguém está preocupado com ele. Afinal, você só pode sentir-se culpado em relação a alguém. E achar que alguém se importa com seu pecado é uma tremenda vantagem. O problema é quando você peca e ninguém vê.
Onde estão os aplausos?
Gisele Vitória é jornalista, colunista da revista IstoÉ e diretora de núcleo das revistas Planeta, IstoÉ Platinum, da Editora Três
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