Um olhar sobre os cuidados paliativos 03/04/2014

Por Nathália Lima

A psicanálise não passa um verniz na dor, na tentativa de tamponar a experiência inominável e surpresiva da morte

“Certa noite, bateram na sua porta. Era um homem estranho, de cara feia, chapéu e paletó escuro.
– Zé, se prepare – disse o homem. – Sua hora chegou.
– Quem é você? – quis saber Zé Malandro.
– Sou o diabo – respondeu o outro, tirando o chapéu e mostrando dois tristes chifres.
– A Morte não quis vir de jeito nenhum, mas me mandou no lugar dela para buscar você.

– Mas como! – disse Zé espantado. – Já? Deve haver algum engano!”

O trecho do conto, A Quase Morte de Zé Malandro, de Ricardo Azevedo, ilustra a reação humana, na maioria das vezes, frente à finitude, a impermanência, a surpresa da morte. A morte é indisfarçável. O homem até tenta fechar esse buraco existencial que a morte presentifica com significações, mas, não importam os dribles criados pela cultura, pela ciência, a morte insiste, ela é. Na área da saúde, a morte ainda é vista como um fracasso, sendo que as negações ao inevitável e ao que se impõe como condição irrefutável causam sofrimento não só aos profissionais que trabalham nesse campo, mas também aos familiares e aos pacientes que recebem essa assistência.

Na contramão dessa perspectiva, a abordagem de cuidados paliativos, que dá assistência a pacientes acometidos de doenças sem possibilidade de cura, tem como proposta auxiliar essas pessoas e seus familiares no cuidado dos desdobramentos surgidos quando do adoecimento. Nesse momento, imbrica-se a dor física, a dor social, a dor psíquica, impondo ao sujeito uma nova forma de criar sua existência diante daquilo que é inexorável. A equipe profissional em cuidados paliativos assume a conduta de não eliminar a morte da vida, encarando-a de frente, não recuando desse encontro, falando sobre a vida, os fantasmas da morte e a vida que há na morte.

A visão psicanalista cuida do desarranjo, daquilo que não encaixa. A ciência não é a única que busca esgrimar com a morte, pois, diante dela, cada um responde como pode. Assim, a prática da psicanálise respeita a singularidade de cada sujeito, a maneira como cada um constrói suas relações e escolhe passar por esse momento. Oferece uma escuta à angústia dessa hora.  Não passa um verniz na dor, na tentativa de tamponar a experiência inominável da morte. Não se arvora a remediar o irreparável, mas possibilita que a partir desse momento de contato com a finitude, momento da despedida, o sujeito possa falar da sua história, suportar a dor sem transformá-la em tragédia e legitimar alguma verdade daquilo que viveu.

Nathália Lima é psicóloga clinica no Hospital das Clínicas de São Paulo