Por Dorothee Rüdiger
O filme é uma homenagem ao cinema e à psicanálise que, como se sabe, nasceram na mesma época, no final do século XIX
Ele não é exatamente um block-buster. O filme Ato, atalho e vento, do cineasta brasileiro Marcelo Masagão, que estreou na semana passada nos cinemas de São Paulo, não atrai o grande público. Atrai, antes, gente que gosta da história do cinema e que se deixa comover por cenas marcantes escolhidas a dedo pelo cineasta que, em seu filme, pretende realizar o encontro do cinema mundial com a obra O mal-estar na civilização, de Sigmund Freud.
Assistir a uma releitura da obra freudiana feita por um cineasta cinéfilo é, num primeiro momento, nada fácil. A tentação é grande de querer reconhecer a teoria de Freud a cada cena que passa. O convite é para desistir da leitura “cabeça” de Freud e mergulhar no mundo das imagens e do som do cinema. É para se deixar levar a uma leitura de Sigmund Freud que passa pelo viés da sensibilidade dos artistas que, como ninguém, sabem valorizar as descobertas do psicanalista. O filme é uma homenagem ao cinema e à psicanálise que, como se sabe, nasceram na mesma época, no final do século XIX.
“Por que somos tão infelizes?” é a pergunta que Sigmund Freud se coloca como fio condutor de sua obra, que apresenta o ser humano como profundamente condicionado pela civilização. “Por que somos tão estranhos?” é a interpretação dada pelo cineasta, que recortou 143 filmes em busca de cenas impactantes capazes de mostrar o ser humano em sua tentativa de dar conta de seu encontro com a civilização. São belas cenas, recompostas e acompanhadas por um fundo musical criado especialmente para dar liga entre elas. A música, portanto, ressalta a estranheza do encontro do ser humano com a civilização. É esta, a civilização, que é nosso habitat. Nascemos e fazemos as nossas primeira descobertas de um mundo muitíssimo estranho. Somos castrados, sofremos limitações. Temos de buscar, nessa civilização, os nossos estranhos objetos do desejo infantil, capturados pelas lentes das câmeras de cineastas nos olhares femininos que o filme destaca numa sequência genial. Vivemos às turras com a civilização do berço até a morte, vivemos encontros e, principalmente, muitos desencontros amorosos capturados pelo cinema sob os mais diversos ângulos. Com a sexualidade aparecem a censura, a religião, o estranho, o assombroso. Aparece o inconsciente, que, como se vê, permanece caro não somente aos psicanalistas, como também aos cineastas.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo