Por Ariel Bogochvol e Teresa Genesini
(NEPPSI-IPLA/Ipq-HC-FMUSP)
Contrariando suas expectativas, o analista não se solidarizou com seu drama nem com sua tese fatalista. Não discutiu os princípios de sua teoria, mas suas consequências
O Caso M.
M., 41, era atendido no ambulatório do Ipq-HC-FMUSP desde 2004. Recém-demitido do hospital onde trabalhava como auxiliar de enfermagem por ter trocado a medicação de um paciente ficou, à época, “muito perturbado”. Tratado com antidepressivos, recebeu vários diagnósticos: reação depressiva, transtorno de personalidade, transtorno afetivo uni e bipolar e, por último, paranóia[i]. Desenvolvera um sistema delirante que misturava temas de perseguição, grandeza e invenção. Comparecia irregularmente às consultas, trazendo seus escritos.
Encaminhado para atendimento no NEPPSI – Núcleo de Ensino de Psicopatologia e Psicanálise, participou de um dispositivo institucional que incluia entrevista inicial com J. Forbes, acompanhamento psicanalítico com analista praticante e novas entrevistas a cada quatro meses. Na primeira, entregou a JF a introdução do livro que escrevia reunindo suas reflexões sobre Freud, Nietsche, Hegel, Jung, Marx, Deus, psiquê, alma, consciente, inconsciente – a Nefessíntese. Forbes leu alguns trechos em voz alta, ressaltou a beleza do texto. Ao longo da entrevista, não permitiu que M. fizesse uso de sua teoria.
JF – Você lida bem com o universal, mas derrapa no singular. Sua teoria é uma forma de tamponar a dificuldade de lidar com coisas banais da sua vida. É necessário cuidar disso.
Surpreendente o analista não ter feito uso, ao modo freudiano, dos escritos, das teorias, do delírio ‘quase schreberiano’ que reordenava o mundo e a posição de M. Não era aí que residia sua singularidade, sua invenção? Não era o caso de apoiar-se nesta solução, a sua tentativa de cura? O analista se dirigia ‘para além’ ou ‘para aquém’ do delírio. Estabelecia-se uma direção do tratamento: sair do universal e entrar no singular, nos pequenos temas de sua vida; deixar o tratado e fazer a crônica; falar do autor, não da obra.
Na segunda entrevista, quatro meses após o início de sua análise com a Dra T., M. compareceu de terno, gravata, tênis sem meia. JF pediu que falasse de três coisas com que lidou no tratamento.
M – A paixão, o ceticismo, o vazio, o buraco sem fim da perda da minha mãe. Meu pai alcoólatra, traído por ela, a madrasta… Eu tinha tudo para sucumbir, podia ter ido para o crime.
F – Não tinha! Você conta uma história terrível, um filme tocante, mas as pessoas não reagem todas da mesma forma. Não há nenhuma casualidade tipo “abandonado pela mãe, logo filho delinqüente”.
M – Estou morando num abrigo da prefeitura, ‘debaixo da ponte’, mas minha teoria é minha vida, ela me dá suporte.
F – Então você precisa deixar essa teoria. Eu não quero uma teoria que me deixa debaixo da ponte!
Contrariando suas expectativas, o analista não se solidarizou com seu drama nem com sua tese fatalista. Não discutiu os princípios de sua teoria, mas suas conseqüências. Citou Lacan, frases como a “insondável decisão do ser”, “por sua posição, o sujeito sempre é responsável”. M. encontrava-se outra vez em situação precária. Era necessário inventar outras saídas. Passar de uma ética dos princípios a uma ética das conseqüências.
Na terceira entrevista, oito meses após o início da análise com Dra T., vestido de enfermeiro – acabara de sair de um plantão – disse que retomou seu trabalho e estava bem. Desculpou-se pela “agressividade nos outros encontros” e leu seu escrito sobre um sonho recente que “mudou sua vida”.
M – Enfrento uma tempestade com uma espada na mão e ao final encontro as três mulheres de minha vida – mãe, ex- mulher, e a filha, que me pede dinheiro; respondo que perdi tudo na guerra. Minha ex-mulher diz com ternura: dê, mesmo que seja pouco, mas dê. Minha filha tira da minha mochila dois cadernos, me devolve um dizendo: “uma nova história deveria ser escrita”.
JF- E então?
M – O sonho foi revelador. Estou escrevendo um livro sobre erosofia – o amor sábio, a busca de saber amar – autobiográfico. Procurava o amor da minha mãe e descobri que amo minha ex-mulher e quero reatar com ela. Precisei de todo esse tempo sozinho, sofrendo e escrevendo uma teoria do amor, para descobrir aquilo que existia desde o início.
O analista combinou um novo encontro, em quatro meses. Verificava-se uma mudança da posição subjetiva de M.
Conclusões
Trazemos o caso M. por ser emblemático das incidências da psicanálise, de um psicanalista e de um dispositivo analítico numa instituição psiquiátrica. Possibilitou a relativização do diagnóstico, o estabelecimento da direção do tratamento, da ‘transferência a vários’ (ao entrevistador, à analista praticante, ao NEPPSI) e a verificação da análise em curso. Experimentou-se uma nova forma de abordagem da paranóia, pela ‘segunda clínica de Lacan’, com resultados evidentes.
[i]
texto apresentado no V ENAPOL – Rio de Janeiro, 2011
[ii]
CID 10 – F22.0: transtorno delirante persistente
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