Por Dorothee Rüdiger
A orientação de tratamento não poderia ser outra: tirar o queixume e fazer com que Dolores falasse sobre coisas suas
Ela trouxe um “balde de queixas”, quando chegou pela primeira vez à Clínica de Psicanálise do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo para uma primeira entrevista com Jorge Forbes e Mayana Zatz. Dolores, senhora de meia idade, dona de uma pequena papelaria numa cidade do interior paulista sofria mais do fato de não conseguir lidar com as pessoas do que propriamente da doença genética que está lhe tirando o movimento das mãos e dos pés. Queixa-se dos outros e escuta logo a primeira intervenção do psicanalista: “Pois é, a gente se depara que somos insuportáveis. ”
Insensível à ironia fina do psicanalista, Dolores desfia seu rosário de queixas: “Não consigo abrir uma lata. …. Eu me exijo, os outros não se exigem. …. Minha mãe era limitada e eu tinha que andar sozinha …. Minha filha caia muito e não achei ninguém que entendesse nossas queixas …. Quase morri no parto …. Estou me lascando com a crise … O meu marido me irrita …. Não consigo mais andar de bicicleta …“ Diante de todo esse queixume, Jorge Forbes nomeia o sintoma: “A Senhora não está com depressão, está com reclamação. A Senhora está um balde de queixas. ” A orientação de tratamento não poderia ser outra: tirar o queixume e fazer com que Dolores falasse sobre coisas suas.
Dolores teve uma história familiar complexa. É filha de pais separados. Seu pai tem 10 filhos de três casamentos. “O pai tinha necessidade de demonstrar sua virilidade“, ela comenta não sem mágoas. Lembra que o pai vivia ausente e só aparecia para fazer cobranças: “Eu tinha que ser perfeita e não podia errar. ” A infância e a adolescência eram difíceis, já que a mãe e uma das irmãs são afetadas pela atrofia muscular que também a acomete. A paciente casou-se jovem e teve três filhos. Uma das duas filhas e o filho mais novo têm a doença da mãe. Com o marido sistemático acabou se dando mal. Mesmo assim, o casamento durou 15 anos porque, como ela diz, “éramos unidos pelo comércio”. Um belo dia, Dolores apaixonou-se por outro homem, separou-se do marido e foi trabalhar num escritório de advocacia onde conheceu seu segundo marido. Sentia-se desejada, amada, mulher. E casou. O casamento não foi bem aceito por seu filho adolescente que começou a consumir drogas. Com o segundo marido abriu a papelaria que lhe dá ocasiões de sobra para se queixar da vida.
É que Dolores não se conforma que nada é do jeito que ela quer. Tudo deveria ser “nos trinques”. Mas o marido, as filhas, o filho, as vendedoras e o office-boy insistem em não fazer o que ela não cansa de falar. Nas sessões, uso o chiste para mostrar o ridículo dessas situações. Numa das sessões ela se queixa: “Faço tudo que eles não fazem, ” diz. “Assim, até eu gostaria de ser sua funcionária, ” comento. “É que eu sou controladora e bato com a cabeça na parede, ” ela responde. “E sua papelaria tem parede de borracha? ” Pergunto. “Vou amassar o cérebro desse jeito, ” ela conclui e ri. Outra hora, ela diz querer controlar o filho, hoje, um homem adulto: “Eu falo e falo e ele não obedece, ” ela se queixa. Questiono com toda seriedade: “Quantos anos ele tem? ” “Vinte e oito”, ela reponde, no que pergunto: “Já tirou as fraldas dele? ”
Mas, há, como disse Jorge Forbes, “um balde de queixas” a esvaziar. Dolores queixa-se de dores que não são sintomáticas para sua doença. Numa das sessões, ela vem manquitolando com dores nas pernas. Seguindo as antigas lições de Sigmund Freud sobre o tratamento da histeria pergunto: “Quando começou essa dor? ” A dor começou, quando, mais uma vez, ela se irritou com a bagunça em sua loja e se sentia impotente: “Deve ser incompetência minha, vai ver por isso me doem as pernas”, ela conclui. Numa outra ocasião se queixa de dores nos braços. Lembra da adolescência, quando era responsabilizada pelo pai por manter a casa em ordem, tinha que tomar conta de um bando irmãos e responder pela bagunça de todos. “Porque você fez isso? ” Quero saber. Ela não sabe responder. Noutra sessão, lembra de ter tido as dores, quando trabalhava na secretaria do escritório de advocacia praticamente falido e se sentia “impotente”. Será que Dolores “sofre de reminiscências no corpo”, como diz Sigmund Freud nos Estudos sobre histeria? Com certeza, ela sofre de seus limites, dos limites de controlar tudo e todos, da impossibilidade de tudo dizer, de se fazer entender, enfim da castração. Expressa isso com uma insatisfação queixosa e com dores no corpo.
Dolores quer se reinventar. Já pensou em tudo e mais um pouco para estudar e trabalhar: administração, história, geografia, computação. Já pensou em abrir novos negócios: um supermercado, uma imobiliária, quem sabe … “Já fez algum plano de negócios? ”, pergunto para saber, se tantas ideias já viraram algo mais palpável. “Pela metade, “ ela diz. “Ok, ” digo, ”de que negócio? ” “Não sei”, ela reponde e ri: “vivo montando empresas, já montei umas seis. ” “Em quanto tempo?” quero saber. “ Em um ano ”, ela ri. “Você está realmente melhorando”, brinco. “Nessa única sessão você já montou outras quatro.” “Quero ser útil,” ela diz. “Precisa ser útil? Não dá para ser inútil? ”, pergunto, pensando no que Jacques Lacan diz sobre ser uma mulher que não se enquadra no conceito de utilidade, mas se inventa. A minha pergunta deve ter sido absurda. Pois a paciente arregala os olhos e, na despedida me diz: ” É mesmo. Não tenho mil e uma utilidades.”
Reencontrou Jorge Forbes e Mayana Zatz numa sessão memorável marcada pelos chistes de conotação erótica com os quais o psicanalista pretendeu deslocar a paciente de sua posição queixosa. De tanto rir, ela não teve nem tempo para se queixar da vida.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo
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