Por Gisele Vitória
Em 9 de dezembro de 2016, noite chuvosa de sexta-feira em São Bento do Sapucaí, Lola esteve no centro da palestra “Corra, Antígona, Corra”, do psicanalista Juan Jorge Michel Fariña (Illya), professor da Universidade de Buenos Aires, que abriu a Conversação Clínica IPLA 2016: “Sintoma, para que te Quero”
Lola tem cabelos vermelhos. É filha de um banqueiro alemão. Colorida e contemporânea, seus olhos estão aflitos e há neles melancolia. Ela está imersa na tragédia cotidiana de uma família tradicional na qual mãe e pai tocam uma vida rica de indiferenças, cada qual com seus amantes, suas regras, suas vidas. Lola não quer pertencer nem repetir aquele mundo. Ela ama um jovem envolvido com o tráfico de drogas e que corre perigo de vida. Ao receber o chamado de socorro do namorado, Lola corre. Corre para salvá-lo e para salvar-se. No filme alemão de Tom Tykwer (Run Lola Run, 1998), a personagem faz três corridas. Ela se revolta e não aceita o primeiro The End. E, tal como um videogame, a heroína alemã se dá três chances, em três versões para o final da história, com suas respectivas implicações. Em 9 de dezembro de 2016, noite chuvosa de sexta-feira em São Bento do Sapucaí, Lola esteve no centro da palestra “Corra, Antígona, Corra”, do psicanalista Juan Jorge Michel Fariña (Illya), professor da Universidade de Buenos Aires, que abriu a Conversação Clínica IPLA 2016: “Sintoma, para que te Quero”.
Para o professor Illya, Lola é uma representação pós-moderna de Antígona, a heroína da tragédia de Sófocles (442 a.C.). Tendo o cinema como base de seu trabalho sobre a ética da psicanálise na pós-modernidade, o psicanalista argentino ligou as pontas de sua apresentação com outros quatro filmes: “Birdman” (González Iñarritu), “Przypadek” (El Azar, Kieslovsky, 1987), “Remember” (Atom Egoyan, 2015) e “Para Roma com Amor” (Woody Allen, 2012). A conferência, ele explica, foi montada a partir da temática que envolve a ética da filha de Édipo e Jocasta, enterrada viva a mando do tirano rei Creonte, seu tio, após ela desobedecer a ordem do monarca de não sepultar um de seus irmãos, Polinices, e se recusar a deixar o cadáver dele à mercê dos abutres de Tebas.
A análise de Illya passeia não só pelas referências de Sófocles e Lacan, como também pela obra de Zizek (The Tree Lives of Antigone, Londres, 2016). Neste trecho de seu ensaio, Illya faz o elo entre as histórias dos filmes: “Pela narrativa de Birdman, a história se escreve em várias direções para poder ser contada. Só assim o sujeito pode inventar-se. Mas novamente uma verdade tem estrutura de ficção, o que significa que não se trata de histórias paralelas ou sucessivas”. E emenda: “Cada corrida de Lola, cada entrada em cena do ator em Birdman, cada corrida de Witak para alcançar o trem são retroativamente desempenhadas como performances.”
Em todos esses poéticos paralelos, Illya se debruça sobre os três tempos propostos por Jacques Lacan: o instante de ver, o tempo para compreender e o momento de concluir.
Pagliacci, em duas tentativas
Corta. Vamos direto para uma cena que pouco tem a ver com corridas, mas também trata de tentativas e de nós. No filme de Woody Allen, “Para Roma com Amor”, há uma homenagem do cineasta à ópera Pagliacci, do século XIX. É o momento em que um dos personagens do filme, o dono de uma funerária que cantava óperas divinamente debaixo do chuveiro é posto à prova diante de uma banca de audição e fracassa. Os agudos não saem da garganta e ele volta para casa frustrado. A experiência ruim gera um conflito familiar, onde o personagem de Woody Allen se torna o culpado pela insistência em dar voz e microfones ao talento de um homem simples. Mas, na insistência do personagem de Allen, há uma segunda tentativa. E uma invenção se impõe: levar o chuveiro para o palco do teatro, onde o cantor de banheiro se sinta em casa para, assim, seu talento fluir.
Ao comentar a cena, a psicanalista Liége Selma Lise diz que o quarto nó lhe ressoou e que a passagem lhe remeteu à posição do sujeito frente às contingências. Ela indaga a Illya se o chuveiro poderia se assemelhar ao papel de um analista numa recondução para que o sujeito se invente e se responsabilize. Illya responde: “Esse movimento nos interessa como analistas como um sintoma, como um déficit, como um fracasso. O personagem do chuveiro inventa a si mesmo como artista, outra vez, e naquela peça extraordinária do palhaço. No último ato, depois de atuar como o personagem de “Pagliacci”, ele não quer mais voltar a cantar em público, e se sente realizado completamente neste papel, por uma única vez”. E o psicanalista argentino completa: “Ele não se repetiu nem coagulou isso em uma nova estética. Foi um acontecimento de uma única e última vez.”
Os retornos de Lola
Para acharmos o fio da meada de toda essa trama ética e cinematográfica proposta por Illya, é importante voltar ao começo. Ou, como diria Jacques Lacan ao definir o Real, retornar ao mesmo lugar. Por isso, é crucial voltar à Lola, esta Antígona da pós-modernidade, e ao ponto de partida da conferência. Em que momento do filme, e de suas três corridas, Lola se torna Antígona? Na análise de Illya, o filme é organizado a partir das três corridas cronometradas da protagonista e de dois encontros íntimos entre dois amantes. Paira nesta atmosfera, a relação do pai com a mãe de Lola e do pai com a amante dele, que lhe propõe terem um filho pouco antes de Lola entrar na sala, esbaforida. Paira ainda a relação de amor com o homem por quem ela se apaixonou e a quem se dedica a salvar. O filme age para que as três corridas, com seus três finais diferentes, deem sentido ao destino de uma mesma mulher.
“No momento em que se depara com a conversa do pai e da amante, Lola deve tomar uma decisão para não repetir o legado de um patrimônio mortífero”, sugere Illya. “Nesse sentido, Lola é Antígona. Antígona vem de um legado de um patrimônio mortífero desde o desenlace do pai, Édipo, da mãe, Jocasta, e dos irmãos Etéocles e Polinice. E ela se subtrai a essa sede e faz um suspenso no caos familiar para enterrar o irmão. Nesse ponto, Antígona não é repetição da sina e do destino.” E Lola, prossegue Illya, estava a ponto de se repetir nas três corridas, para depois encontrar-se nelas. “Lola deseja enfrentar-se como uma mulher que pode amar verdadeiramente um homem, não igualar-se com ele, não aparelhar-se com ele, mas amá-lo dentro da diferença”, expõe o professor, que conclui com a frase, de Jorge Forbes, que deu o título à Conversação: “Sintoma, para que te quero?” Para querer-te melhor. É o que todos podemos fazer.
Gisele Vitória é jornalista, colunista da revista IstoÉ e diretora de núcleo das revistas Planeta, IstoÉ Platinum, da Editora Três
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