Por Dorothee Rüdiger
Tragicômico, o filme traz a estória protagonizada por Marc, um neurótico obsessivo que parece ter saído das páginas dos Escritos sobre amor e sexualidade de Sigmund Freud
Não é que eles ainda existem, os neuróticos? O filme Três corações, de Benoit Jacquot, em cartaz nos cinemas da Capital paulista, retrata a velha estória do triângulo amoroso neurótico de uma nova maneira. Tragicômico, o filme envolve o espectador não somente com um elenco talentoso, mas sobretudo com sua tragédia familiar, em todos os sentidos. Causa mal-estar, apesar de expor ao ridículo a estória protagonizada por Marc, um neurótico obsessivo que, ao que parece, saiu das páginas dos Escritos sobre amor e sexualidade, de Sigmund Freud.
O fiscal de renda Marc passou a vida fazendo o que mais gosta: cálculos de imposto de renda. A vida passou e Marc chega à meia idade, quando, um belo dia, numa cidadezinha no interior da França, perde o último trem para Paris. Que desespero! No interior, os bares fecham cedo, as pessoas se recolhem para dormir, o silêncio e o tédio se espalham.
No entanto, quem diz que o interior não tem lá seu charme? O destino começa a sorrir para o fiscal de renda parisiense quando encontra, por acaso, Sylvie, enquanto os garçons do bar estão colocando as cadeiras para cima das mesas. Acontece a improvável magia do encontro.
Talvez esse encontro fosse mágico demais para Marc quem, por uma série de contratempos e atrapalhadas, que Freud muito bem explica em seus ensaios, é incapaz se encontrar com Sylvie, em Paris. Consegue manter o desejo bem longe de si.
Mas, Marc se dá uma segunda chance. Volta à cidadezinha pacata do interior, decidido de acertar dessa vez o encontro amoroso. Procurando Sylvie, encontra, sem saber e sem querer, Sophie, irmã, sócia e melhor amiga de Sylvie. Inconsciente traidor!
Sophie é uma mulher para casar. Sylvie é uma mulher casada e, nesse momento, está bem longe da França. Mas, ela volta. Forma-se ao longo da narrativa um triângulo amoroso que deixa Marc dividido entre a esposa e amante. Aliás, Marc arrasta também uma asa para o lado da sogra, a (invejosamente) belle Maman estrelada por Catherine Deneuve. Como não pode com a sogra, que os franceses chamam maliciosamente de belle mère, a “bela mãe”, dedica-se com ternura à esposa e ao filho e com ímpeto sexual à cunhada, pois esta volta para assombrar a felicidade pequena burguesa de Marc e Sophie.
Assim, a tragédia anunciada se desenrola no cinema com um fundo musical que dá conta do sinistro, do unheimlich, da sexualidade censurada que paira no ar. De cena em cena, o espectador já desconfia que “isso não pode acabar bem”. Se, para Marc, a condição do amor é ter um caso com uma mulher casada, duplo da própria esposa, para Sylvie, a condição amorosa é manter o caso secreto. O pacto neurótico está fechado e prende seus personagens. Terão a chance de viver outra cena? Podem sair do dilema entre amor e sexo caminharem juntos, tal como Freud sugere nos Escritos sobre amor e sexualidade? O filme Três corações vale deixarmos essas questões em aberto.
Dorothee Rüdiger é psicanalista e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo