“Tortura técnica”, por que não lhe quero? 07/03/2013

Por Dorothee Rüdiger

Livro A caçada, que relata o cerco a Bin Laden, coloca em xeque a prática da tortura na perseguição a inimigos do Estado. Qualquer tipo de tortura é um ato que reduz o outro a objeto. Quem faz isso é perverso, pois só alguém capaz de sentir satisfação em um ato como esse pode ser torturador

“O troco foi dado.” A caça a um facínora que ameaçava a segurança dos Estados Unidos chegou a bom termo com a morte de Osama Bin Laden. Ao menos essa é a versão presente no livro A caçada , de Marc Bowden. Com o lançamento da tradução brasileira, o autor reflete, em uma entrevista à revista Época de 4 de março de 2013, sobre a operação de captura e sobre “as técnicas de interrogação” que levaram ao esconderijo desse inimigo número 1 do Estado norte-americano.
We did it! Inimigo morto, satisfação dada. Triunfando sobre a morte dos inimigos, diz Sigmund Freud, conseguimos desviar o foco da angústia da nossa própria morte. Na caça a Bin Laden, o Estado norte-americano lançou mão de “técnicas de interrogatório” úteis. Em outras palavras, torturou presos para conseguir informações sobre o paradeiro do chefe da Al Quaeda. Técnicas úteis, mas que devem ser banidas, diz Mark Bowden.
A par dessa entrevista, a questão da tortura por razões de Estado retornou à pauta da imprensa brasileira. Curioso é que a polêmica foi desencadeada na Folha de S. Paulo justamente por um psicanalista, Contardo Calligaris. O conhecido colega, em seu artigo “Para que serve a tortura”, publicado em 21 de fevereiro deste ano, diz que a tortura tem três utilidades: 1. Satisfazer o desejo doentio do torturador; 2. Historicamente, a de perseguir os hereges dentro da Igreja Católica; e 3. Obter informações de bandidos sobre cúmplices, esconderijos e complôs. Esta última utilidade, embora desagradável, “funciona”. Funcionaria, sugere o autor, para livrar uma criança em cativeiro da morte certa. Quem não vai torturar para salvar uma vida?
O artigo recebeu, evidentemente, críticas, dentre as quais se destaca a do também colunista da Folha Marcelo Coelho, para quem o uso da tortura para salvaguardar  uma vida é cinematográfica, hipotética e perigosa. A ideia pode sair das telas e tornar-se prática legitimada.
Existe tortura “técnica”? Data vênia, não!
A tortura como “técnica de interrogatório” tampouco existe como possibilidade de distinguir entre a tortura perversa, religiosa e a útil. Tortura é um ato que reduz o outro a objeto. Quem faz isso é perverso, pois só quem é capaz de sentir satisfação em um ato como esse pode ser torturador. Tanto faz torturar em nome de Deus e da Santa Madre Igreja ou da Razão de Estado. Muda a ideologia. O que não muda é o uso institucional da perversão para alcançar certos fins. Assim, o Estado – pessoa jurídica –, é responsável pelos atos dos torturadores. Mas esses “Senhores” da dor dos outros têm nomes e rostos. Pode ser o rosto de Sérgio Paranhos Fleury e perseguir até a morte, ainda que no delírio, o frade dominicano Frei Tito. O frade suicidou-se porque não conseguia ver as flores sem se lembrar das cenas de tortura que sofreu. Outra vítima desse “Senhor”, “instrumento utilitário” na mão do Estado brasileiro de outrora,  suicidou-se recentemente, no dia 16 de fevereiro último, como relata a matéria “Morrer aos poucos” da revista Carta Maior, edição de 19 de fevereiro de 2013. Ele morreu aos 40 anos porque não conseguia recuperar-se da tortura sofrida com um ano e oito meses de idade no DOPS de São Paulo. Em 1974, o bebê era tratado a pancadas e choques elétricos para fazer sua mãe repassar informações uteis à ditadura militar. A tortura funcionou. No caso, não para proteger a criança do bandido. Era o Estado bandido a servir-se do perverso para torturar a criança.
Ao leitor atento não deve ter escapado que tomo partido contra a tortura, e por diversas razões. Primeiro, ela é inadmissível por ser cruel, isto é, por fazer do ser humano objeto do gozo do torturador e dos interesses de seu mandante. Além disso, a tortura é inútil como fonte de informação. Afinal, a vítima vai sempre confessar aquilo que o torturador quer ouvir: a verdade ou aquilo que ele acha que seja. A tortura serve, no fundo, para nada mais do que dar à instituição que dela se faz valer a ilusão de ser capaz de manter tudo e todos sob controle.