Por Italo Venturelli
Quando a paciente entrou no meu consultório, algemada, estava ferida na face, no braço, com equimoses pelo corpo e um edema grande nos lábios. Vinha acompanhada por dois policiais e com uma carta na mão
O caso que vou contar trata de uma moça que pagou um preço alto em nome da honra. Não pretendia obter uma decoração por algum ato que entraria na história da humanidade. Ao contrário. Foi presa. Tinha defendido aquilo que Jorge Forbes chama de um “aspecto íntimo e silencioso do sujeito que o orienta a tal ponto que a perda deste aspecto desmerece a própria vida”. Acontece que a moça agiu em nome da honra com um instrumento pontiagudo com o qual tentou perfurar o abdome do encarregado da empresa onde ela trabalhava. Havia “um algo mais forte que o eu” que tinha vindo à tona e mudado sua vida.
Quando a paciente entrou no meu consultório algemada estava ferida na face, no braço, com equimoses pelo corpo e um edema grande nos lábios. Vinha acompanhada por dois policiais e com uma carta na mão, na qual a delegada de polícia referiu atitudes agressivo-hostis da moça e solicitou uma avaliação neurológica além de sugerir atendimento psicanalítico.
Recebo a paciente perguntando seu nome: “Seu nome é Mariza do que?”, no que ela me responde: “Pouco interessa, pode me chamar de Biju.” “Gostei. Biju é nome de guerra?”, quero saber. “Na cadeia, sim”, afirma. “E por quê?”, indago. “Gosto de usar bijuterias, roupas coloridas, pulseiras” explica. “E agora algemas?”, pergunto, no que ela me responde: “Só pra sair e vir te ver.”
Quero saber o que aconteceu lá na empresa. Com jeito de poucos amigos ela diz: “Você não sabe ler? É só ler essa ficha aí.” Convido-a a dar sua própria versão da história, no que ela me faz uma pergunta: “Eles querem saber se eu sou louca. O Senhor acha que sou?” Até aqui estou gostando da conversa. Só não entendi o que aconteceu na empresa: “Você furou o encarregado assim do nada, ou já tinha alguma intimidade com ele?” Desconfiada, ela me devolve a pergunta: “Alguém contou isto para o Senhor?” “Nada disso só estou perguntando porque fiquei curioso, em saber porque alguém agride outra pessoa desta forma sem motivo,” digo, no que ela explica: “Bom a gente já tava meio que ficando!” “ Meio??, meio beijo?”, quero saber. E ela conta: “ Fiz sem pensar. Ele me empurrou. Eu peguei a broca e furei mesmo, e com vontade. Na verdade furei ele para ele acordar pra vida. Ele é casado e um safado. Mexe com todas as moças da empresa”, reclama. “Bonitas ou feias?”. Sou curioso. “Só com as bonitas,” explica. “E como você está entre as bonitas, gosta ?”, pergunto. “Bom não sou sem vergonha, mas até que gosto porque sou bonita mesmo, e sei ligar um homem. Sou sensual, gosto de pulseiras, batom vermelho, cabelo vermelho e laranja com muito brilho , anéis, brincos enormes, sou tipo cigana e tudo mais,” conta. “Bom, aí eu gostei principalmente do tudo mais. Você só beijou ou transou com ele?” ouso perguntar. “Não transei porque fiquei com vergonha do meu corpo e porque sou casada. E também porque não vou transando assim, tenho que sentir que o cara gosta de mim e que vou ficar com ele mais tempo. Fiquei com vergonha das colegas também, mas principalmente do que o meu pai pensaria de mim.”, explica o motivo de sua vergonha.
Ela não é uma sem-vergonha. Ao contrário. Agiu em nome da honra, porque, como diz Jorge Forbes, tem uma vergonha íntima, um pudor a cobrir. Referindo-me ao pai dela, pergunto: “Mas, ele já não morreu?” “Na terra sim, mas na minha cabeça não. Tudo que faço é para salvar o nome dele.” “Até ser presa?”, quero saber. Ela me expõe os motivos do seu ato: “Bom, acabou sendo porque pude provar que sou mulher direita.” Aí tinha, aparentemente, um equívoco: “Mas como assim? Espetando alguém é ser direita?” E ela reflete: “É porque agora eu mostrei o quanto ele não respeita as mulheres. Ele fazia gracinha com todo mundo, agora, foi despedido. Eu contei tudo para a delegada que exigiu que o patrão o mandasse embora.”
Biju conta de sua vida nada fácil na cadeia. Pensa no pai o tempo todo. Ela é obrigada a parecer brava “para não ter que transar com os que tomam conta da gente”, como afirma. Faço o papel do advocatus diaboli perguntando: “Mas não seria mais fácil você ceder um pouco e sair logo de lá?” Ela não arreda pé: “Podem me bater à vontade, que eu aguento bordoada, não aguento é ser desonrada e ficar com vergonha para o resto da vida. Tenho que parecer um tigre de brava para não ser estuprada toda a noite.” “Um tigre, mas de batom!”, concluo. Ela chora, pensa e demora a dizer: “Sempre. Apesar de tudo sou uma mulher.”
Italo Ventureli é neurocirurgião e psicanalista. Diretor-técnico do Hospital Bom Pastor em Varginha – MG.
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