Por Mayana Zatz
Nova portaria do Ministério da Saúde limita aconselhamento genético e exclui milhares de cientistas com doutorado em genética humana que já vêm oferecendo o serviço
Em dezembro de 2013, a ANS (Agência Nacional de Saúde suplementar) publicou normas obrigando os planos de saúde a cobrir os custos de testes genéticos para 29 doenças desde que os pedidos sejam encaminhados por médicos geneticistas. Agora, a Portaria 199 (do Ministério da Saúde, publicada em 12/02/14) que institui a Política Nacional de Atenção às Pessoas com Doenças Raras, determina que o Aconselhamento Genético (AG) seja realizado apenas por médicos geneticistas. As duas Portarias são de grande relevância. Mas por que só 29 se existem mais de 20.000 doenças genéticas? Por que restringir a solicitação dos exames e o AG à médicos geneticistas? As doenças genéticas atingem cerca de 3% da população, ou seja, aproximadamente 6 milhões de brasileiros e existem menos de 200 médicos geneticistas no Brasil. Com essas limitações, a imensa maioria das famílias com doenças genéticas não terá acesso nem a testes genéticos nem ao AG. É importante salientar que o AG é um procedimento que inclui além do diagnóstico (quando há pessoas afetadas na família), estimativas de riscos genéticos para parentes saudáveis da pessoa afetada, orientação em relação a testes específicos, análise e interpretação de exames genéticos (o que requer treinamento longo além de especialistas em bioinformática, pois os testes de última geração são de alta complexidade) e a transmissão de informações às famílias. É do médico a responsabilidade de examinar o paciente, estabelecer o diagnóstico clínico e orientar tratamentos, sempre que possível. Porém na prática do AG há inúmeras situações em que não há pacientes a serem examinados. Por exemplo, um casal de primos que procura um serviço de genética, para saber qual é o risco de que uma criança que venha a ter no futuro, apresente doença genética decorrente da consanguinidade. Ou uma irmã saudável de afetado, já falecido, como por exemplo, a distrofia de Duchenne, quer saber qual é o risco de que essa doença ocorra em sua prole. É extremamente preocupante que a portaria 199 exclua centenas de profissionais, com pós-graduação (mestrado ou doutorado) em genética humana (biólogos, biomédicos e outros profissionais de saúde), altamente especializados, que vêm realizando AG há décadas. Vale lembrar que o serviço de AG foi iniciado no Brasil na década de 60, no então Departamento de Biologia, do Instituto de Biociências da USP (IBUSP). Esse serviço gerou o Centro de Pesquisas do Genoma Humano e Células-Tronco (CEGH-CEL), ligado ao IBUSP, o maior centro de atendimento à doenças genéticas da América Latina. Nele atua uma equipe multidisciplinar incluindo médicos geneticistas e geneticistas não médicos (com doutorado e pós-doutorado em genética humana e médica) que já atendeu e beneficiou mais de 100.000 famílias de afetados por doenças genéticas com um AG comparável ao oferecido nos países mais desenvolvidos. De acordo com as restrições agora impostas pela ANS e Ministério da Saúde, isso nunca teria sido possível.
Estas restrições estão na contramão do que ocorre nos países do primeiro mundo. Nos Estados Unidos, a profissão de Aconselhador Genético (Genetic Counselor), exercida por geneticistas não médicos, é reconhecida há anos. Sorte deles. Uma pesquisa recente, publicada na revista científica New England Journal of Medicine, mostrou que só 10% dos médicos americanos sabia interpretar resultados de testes genéticos. As restrições publicadas pela ANS e Portaria 199 em relação ao número de doenças genéticas a serem cobertas pelos planos de saúde, encaminhamento de pacientes e profissionais habilitados a fazer o AG, precisam ser revistas urgentemente. Caso contrário, a grande maioria das famílias brasileiras com doenças genéticas deixará de se beneficiar de um atendimento que tem contribuído para a sua prevenção há décadas.
Nova portaria do Ministério da Saúde limita aconselhamento genético
Mayana Zatz é Professora titular de genética do Instituto de Biociência da Universidade de São Paulo. Diretora-Centro de Pesquisas do Genoma Humano e células-tronco (CEGH-CEL) e Instituto Nacional de células-tronco em doenças genéticas.