Gabriel Guerra Rivera
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Não faz muito tempo que os noticiários mostravam imagens chocantes de uma das piores tragédias causadas por fenômenos naturais no país, precisamente no Rio Grande do Sul. As chuvas intensas – acima do que é considerado normal –, as enchentes e suas consequências na população deixaram o país bastante sensibilizado.
Diante disso, foi comum ver nos meios de comunicação iniciativas de arrecadação de fundos através de inúmeras chaves PIX. Reportagens frisando (e quiçá explorando) o sofrimento das pessoas que tudo tinham perdido. Chamados para solidarizarmos com o sofrimento. Matérias com relatos que faziam com que os desabrigados se sentissem unidos na tragédia.
As autoridades ativaram protocolos para fazer frente a tudo isso que superava qualquer previsão feita. Dentro das ações imediatas, a resposta inicial foi: restaurar as vias de acesso e o transporte de insumos hospitalares, alimentos e combustíveis[1]. Posteriormente foram publicados guias de cuidado, como o “Guia Básico para riscos e cuidados com a saúde após a enchente” do Governo do Rio Grande do Sul[2]. Nesse guia encontramos orientações de todo tipo, inclusive sobre saúde mental e transtornos mentais relacionados ao trabalho.
O Instituto da Psicanálise Lacaniana (IPLA), numa direção contrária, priorizou o cuidado com as emoções como parte das ações imediatas. Com apoio da Escola de Humanidades da PUCRS, o IPLA não demorou muito para criar o projeto “Eu te escuto – Rio Grande do sul”, com a finalidade de dar escuta àqueles que se viram afetados e aos profissionais da saúde que trabalhavam nesses lugares devastados. O intuito era agir imediatamente e, como já foi mencionado, colocar o cuidado das emoções em primeiro lugar.
Jorge Forbes, em entrevista a um canal de notícias[3], alertava sobre a importância de dar ouvido às pessoas o mais rápido possível, para evitar criar o que ele chamou de “queloides psíquicos”, que é um risco muito grande quando o cuidado das emoções fica para depois. “É importante ajudar no momento do ferimento”, disse Jorge Forbes. Escutar, ouvir e não ficar falando no lugar dessas pessoas. Falar no lugar delas leva à resignação e não à ação.
Tragédias como essa colocam em xeque qualquer prática protocolar, pois o que está em jogo é o imprevisível.
Em 2022, o IPLA debatia outra grande tragédia, a pandemia da COVID-19, na Conversação Clínica (evento anual do IPLA) daquele ano, cujo tema foi “Os impactos da Pandemia na Subjetividade”. A pandemia, assim como as enchentes do Rio Grande do Sul, trouxe o imprevisível, o desafio de lidar com o intangível, com a impotência, com o que não se sabe; e assim, os protocolos foram postos em xeque.
Os relatos, tanto daqueles que foram afetados diretamente como dos profissionais da saúde, mostraram que os protocolos não conseguem dar conta dos impactos que as tragédias produzem.
Dois anos já se passaram desde aquela Conversação Clínica (que trouxe uma proposta para o tratamento dos sintomas pós-pandemia, descrita na Bula de São Bento[4]) mas a reflexão que Jorge Forbes fez na ocasião segue vigente. Para ele, no meio de tantos relatos, podemos perceber dois tipos de testemunhas diante da tragédia.
1. A testemunha dos fatos. É aquela que busca conceitos, busca como avançar a partir deles. A testemunha dos fatos se apega aos protocolos e, tomando como exemplo o que aconteceu no Rio Grande do Sul, considera que o cuidado das emoções não faz parte das ações imediatas, ou seja, esse cuidado fica para depois.
2. A testemunha do Real. Esse tipo de testemunha, segundo Jorge Forbes, não transmite conhecimento, é a força do desconhecimento do Real que é transmitida. A testemunha do Real não se articula a nenhuma lógica, não fala da impotência, fala do impossível. Ela não se baseia em protocolos engessados, ela age no momento do ferimento. Ela faz algo crucial: falar do Real para não o tamponar.
O Real, segundo Jacques Lacan[5], é aquilo que “retorna sempre ao mesmo lugar – a esse lugar onde o sujeito, na medida em que ele cogita, onde a res cogitans, não o encontra.” (p. 55). Nessa perspectiva, a testemunha do Real nos remete inevitavelmente ao trabalho dos psicanalistas.
A Psicanálise lida com o Real, com o incompleto. E os psicanalistas, pelo fato de trabalhar com esse Real, são profissionais do incompleto. Daí que Jorge Forbes afirma[6]: “O psicanalista é o único a responsabilizar o sujeito na incompletude. É o único que se dedica a retificar a posição do sujeito diante dessa nova razão.” (p.167-168)
Diante de um Real impossível de se conhecer, vem o aumento da responsabilidade. Somos responsáveis pelo acaso e pela surpresa. “E como articulamos responsabilidade com acaso? A responsabilidade própria da psicanálise não se resolve em esquiva, explicação ou desculpa.”, diz Jorge Forbes[7] (p. 162) Ou poderíamos dizer também, não se resolve com protocolos ou “guias básicos”.
E é precisamente a segunda clínica de Lacan, a Clínica do Real, que envolve uma ética baseada no princípio responsabilidade. É uma clínica que visa a passagem do eixo da impotência ao eixo do impossível. A Clínica do Real aponta a um “homem pronto a todas as circunstâncias”8, que inventa e se responsabiliza por soluções singulares.
É por isso que a Psicanálise consegue responder aos desafios do século XXI, inclusive diante das tragédias e dos seus impactos na subjetividade, porque “a psicanálise está em todo lugar onde houver o humano e a incidência do Real.”[8](p. 82)
Nessa direção, e conforme nos aproximamos ao final de 2024, o IPLA se prepara para uma nova Conversação Clínica, sob a coordenação de Jorge Forbes. O tema da vez será “Os Desafios de 2025 para a Psicanálise e para os Psicanalistas”. Um tema bastante provocador e apropriado para lembrar, a nós psicanalistas, o nosso papel como testemunhas do Real.
[1] https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/entenda-as-prioridades-diante-de-um-desastre-natural-como-as-enchentes-no-rs/
[2] https://saude.rs.gov.br/upload/arquivos/202406/10141303-guia-basico-10-06-24.pdf
[3] https://www.instagram.com/reel/C7fHsTmvsPD/?igsh=cXpueTU1MDRmdTUy
[4] https://ipla.com.br/conteudos/trabalhos-cientificos/bula-de-sao-bento/
[5] LACAN, J. O seminário – livro 11 – os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
[6] FORBES, J. Da palavra ao gesto do analista. 2ª Edição. SP: Editora Manole, 2015.
[7] FORBES, J. Inconsciente e responsabilidade. Psicanálise do século XXI. SP: Editora Manole, 2012.
[8] FORBES, J. Pílulas de Psicanálise. Aforismos e Sentenças de Jorge Forbes. SP: Editora Manole, 2023.